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Carta da Morte ou como pensar a questão ambiental em terra arrasada

Oh morte, tu que és tão forte
Que matas o gato, o rato e o homem
Vista-se com a tua mais bela roupa quando vieres me buscar
Que meu corpo seja cremado e que minhas cinzas alimentem a erva
E que a erva alimente outro homem como eu
Porque eu continuarei neste homem
Nos meus filhos, na palavra rude
Que eu disse para alguém que não gostava
E até no uísque que eu não terminei de beber aquela noite

                                                                                     Raul Seixas

A conjuntura nacional não está fácil àqueles dotados de uma maior sensibilidade e empatia, tanto quando se refere à crise social que vivemos, com o crescente aumento da pobreza, do preço dos alimentos e da concentração de renda; quanto refletimos sobre a situação ambiental, como a falta de água em grandes metrópoles (no caso do Paraná, o Estado inteiro), as queimadas sem controle de ambientes como Pantanal, Amazônia e Cerrado, entre outros. Nestes momentos aparecem as defesas, às vezes ingênuas e bem intencionadas, outras oportunistas, daquilo que nossa sociedade chama de meio-ambiente, ou de maneira ainda mais vaga, de Natureza.

Neste sentido, a “simplicidade” é sedutora, pois as soluções para a crise ambiental são sempre, à direita e à esquerda, “muito simples”. Em outras palavras, o capitalismo é responsável pela criação de problemas cuja responsabilidade é posta sobre outros, no caso, a classe trabalhadora, os povos indígenas, os “caboclos”, etc., e depois aparecem soluções milagrosas que, no geral, causam o aumento da repressão e exploração. No final os inocentes são condenados pelos culpados a pagarem por seus crimes.

A noção de Natureza, tal como a conhecemos atualmente, não existiu desde sempre. Ela foi social e historicamente desenvolvida de acordo com as condições materiais existentes em cada época. É necessário enfatizar, portanto, que a Filosofia e, junto dela, a ideia de natureza, surgem a partir da constituição da política, da propriedade privada e da necessidade de explicação racional e desvinculadas dos deuses sobre os fenômenos do mundo. Logo, na medida em que a humanidade “cria” a natureza, começa a criar a si mesma enquanto distinta desta, em formas variadas no decorrer de toda a história humana. Ou seja, o ser humano cria a si mesmo no momento de criação da natureza, produzindo a natureza e o espaço a partir das condições históricas presentes em cada civilização, em cada época, de maneiras distintas em diversas partes do planeta.

Esta visão que enxerga árvores, minérios, terra, animais, seres vivos e comunidades tradicionais como recurso a ser explorado e consumido para realizar o enriquecimento de uma parcela ínfima dos seres humanos é produto das relações tipicamente capitalistas nas relações sociais e ambientais. Pra resumir a peça, podemos dizer que os problemas ambientais são, antes de qualquer coisa, problemas sociais, que dizem respeito à forma como nos socializamos uns com os outros e com os ambientes ao nosso redor. O escritor indígena Ailton Krenak, em seu livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, diz o seguinte sobre este nosso modo de ser e viver:

“Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter neste local, alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio. Porque, afinal, é preciso fazer algumas coisa com o que sobra do lixo que produzem, e eles vão fazendo remédio e um monte de parafernálias para nos entreter.

(…) Enquanto isso, a humanidade vai sendo descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra. Os únicos núcleos que ainda consideram que é preciso ficar agarrados nessa terra são aqueles que ficaram meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes – a sub-humanidade. Porque eles têm uma humanidade, vamos dizer, bacana. E tem uma camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra. Parece que eles querem comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra. A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe.”[1]

Quando vemos ambientes sociais e naturais tão diversos quanto a Amazônia, o Cerrado, a Mata Atlântica, o Pantanal, entre outros, queimados para serem substituídos por plantações de soja, criações de gado ou pelo garimpo ilegal, o que isso diz sobre a nossa forma de viver em sociedade? O que dizer dos “correntões”, ato que consiste em prender uma grande corrente entre dois tratores para derrubar árvores centenárias? A morte avança, dia-a-dia sobre estes ambientes através dos incêndios criminosos, a desregulamentação ambiental, no vírus levado às comunidades indígenas por garimpeiros e agricultores, dos assassinatos de lideranças. Lembremos que o Brasil é o terceiro país onde mais se assassinam ativistas ambientais do mundo[2].

E aí que a carta da morte, no Tarot, talvez nos traga uma alegoria interessante para pensarmos o momento que vivemos. Nesta carta, há a ilustração de um esqueleto com uma foice nas mãos ceifando partes de cadáveres largadas sobre a terra. Para além de significar o fim de algo, esta carta representa o renascimento que, para ocorrer, necessita que recolhamos nossas partes perdidas e larguemos para trás nossas antigas referências, para que vivamos grandes transformações que, necessariamente, implicam sofrimento. Esta dinâmica de vida-morte-vida, nisto que chamamos de natureza, está para além do pouco tempo que, como humanidade, habitamos este pedaço de rocha chamado Terra. Carlos Walter Porto Gonçalves, citando o Filósofo Edgar Morin em seu livro Os (Des)caminhos do Meio Ambiente se refere a este movimento da seguinte maneira:

“(…)a cadeia trófica nos mostra que toda podridão se converte em alimento, que todo resíduo se converte em ingrediente, que todo subproduto se converte em matéria prima, que todo resíduo morto é reintroduzido no ciclo de vida. As decomposições, excreções, defecações são os festins de um fervilhar de insetos e microorganismos; adubam e remineralizam os solos que alimentam a vegetação. O ecossistema come não só a sua própria vida e sua própria morte, mas come também sua própria merda, e o excremento pode tornar-se o alimento do alimento do seu defecador.”[3]

Entre a carta da morte no Tarot e a cadeia trófica dos ciclos naturais expostas por Morin, há uma lição importante para o nosso momento: que todo resíduo se volta contra nós na forma de mais vida ou mais morte, a depender da maneira como lidamos socialmente com o ambiente. Há uma imensa relação entre o grande aumento nos desmatamentos e nas queimadas nas áreas florestais do Brasil (um aumento de 34% em relação ao ano passado, onde já se apresentava um aumento de 50% em relação ao ano anterior[4]); o avanço do agronegócio produtor especialmente de soja e gado (com aumento do PIB de 4,52 para agricultura e 9% na Pecuária[5]) e a falta de água e de chuvas em diversas regiões do Centro-Sul do Brasil, em especial, no Estado do Paraná. A umidade das florestas são as maiores responsáveis pela transferência de água na forma de vapor para a atmosfera, interferindo direta e imediatamente nos regimes de chuvas de todo o país. Sabemos que no capitalismo são as comunidades mais pobres, no geral, que sofrem da escassez de riquezas naturais. São os bairros periféricos, os indígenas, os pobres no geral que arcam com suas vidas (ou mortes) por nossa insistência na livre concorrência e exploração dos ambientes naturais no Brasil e no mundo. Será mesmo que uma sociedade que considera que uma floresta derrubada é mais importante que em pé é racional?

É necessário deixar para trás nossa economia atual e predatória em nome de regimes de convívio mais amistosos com isso que chamamos de Natureza. Mas há algo de profundo em uma transformação destas. Modificar as matrizes energéticas ou o tratamento de resíduos por formas mais “sustentáveis” e outras soluções individuais não são suficientes. A sociedade capitalista e a acumulação de riquezas e desigualdades que estão em seus fundamentos, não é conciliável com uma concepção de humanidade integrada aquilo que chamamos de Natureza. Neste grande ciclo de vida e de morte, é necessário que disputemos outra organização social. Ou o capitalismo morre, ou quem morrerá, de fome e de sede, somos nós.


Imagem em destaque: Composição com arte da artista Russa russa Nadia Khuzina (capa da revista piauí nº164)

[1] KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Companhia das Letras. São Paulo. 2019. p. 22-3.

[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-07-28/brasil-e-o-terceiro-pais-mais-letal-do-mundo-para-ativistas-ambientais-so-atras-de-filipinas-e-colombia.html

[3] Citação de Edgar Morin em GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (Descaminhos do Meio Ambiente. Editora Contexto. São Paulo. 1990.

[4] https://jornal.usp.br/ciencias/desmatamento-da-amazonia-dispara-de-novo-em-2020/

[5] https://www.cnabrasil.org.br/noticias/pib-do-agronegocio-cresce-4-62-de-janeiro-a-maio-de-2020

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.