Seis anos separam as mortes de Marcondes Namblá e Hariel Paliano. Os dois eram indígenas Xokleng Laklãnõ, da Terra Indígena Ibirama La Klãnõ no Alto Vale de Santa Catarina e foram mortos de maneira semelhante. Ambos vítimas de um racismo histórico que tem como principal cumplice o estado brasileiro.
Hariel foi morto a pauladas e queimado parcialmente na manhã do último sábado (26/04). Seu corpo foi encontrado em uma rua na localidade de Bom Sucesso, na Aldeia Bugio, no município de Doutor Pedrinho em Santa Catarina.
De acordo com lideranças Xokleng, ele saiu de casa para comprar alimentos numa mercearia quando foi cercado numa emboscada. Depois de tirarem sua vida, os bandidos ainda atearam fogo no barraco onde vivia. Hariel estava sozinho em casa há alguns dias, sua mãe e padrasto estavam em Brasília participando de atividades do Acampamento Terra Livre (ATL).
A família de Hariel tinha sido atacada duas vezes nas semanas que antecederam sua morte. A primeira em 29/03, Sexta – Feira Santa, e a segunda num domingo, 07/04. Nas duas ocasiões, pistoleiros dispararam diversas vezes contra o casebre de madeira onde Hariel, sua mãe, seu padrasto e outras pessoas viviam.
A família mora na Retomada Kakupli, território tradicional do povo Xokleng que foi expropriado pelo estado e entregue a imigrantes europeus no período colonial. Depois dos ataques sofridos, eles imploraram por uma atuação eficaz da Polícia Federal, das polícias estaduais, do Ministério Público Federal e da Funai.
No primeiro dia do ano de 2018 o professor Marcondes Namblá, também do povo Xokleng, foi espancado a pauladas no município de Penha, litoral de Santa Catarina. Depois de dois dias internado não resistiu aos ferimentos e faleceu. Ele, que era formado pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também vivia na Terra Indígena Ibirama La Klãnõ e trabalhava como vendedor no litoral do estado durante a temporada como forma de aumentar a renda da família.
A polícia identificou o assassino. Gilmar César de Lima, de 22 anos, disse que Namblá tinha mexido com seu cachorro. A família do professor indígena questiona a acusação. Na época, eles explicaram que Namblá tentava impedir rinhas de galos na Terra Indígena Ibirama La Klãnõ e sofria ameaças por isso.
Marcondes e Hariel engrossam as estatísticas. Segundo relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entre 2019 e 2022, foram registrados 795 assassinatos de pessoas indígenas durante o governo anti-indígena de Jair Bolsonaro. O dado representa um aumento de 54% em comparação aos governos de Dilma Rousseff e Michel Temer (entre 2015 e 2018), quando 500 indígenas foram assassinados no Brasil.
Neste período, o estado com o maior número de assassinatos foi Roraima com 208 homicídios, onde se localiza parte da Terra Indígena Yanomami. Em seguida, o Amazonas e o Mato Grosso do Sul são os estados com maior número de assassinatos, com 163 e 146, respectivamente.
O relatório do Cimi também comparou entre os governos os casos de abuso de poder contra os povos indígenas: foram 89 casos no governo Bolsonaro, uma média de 22,2 casos por ano, sendo mais que o dobro da média sob os governos de Dilma e Temer, quando foram registrados cerca de 8,7 casos por ano.
Os Xokleng estão no epicentro de uma disputa pela chamada tese do Marco Temporal. No dia 21 de setembro de 2023, eles protagonizaram uma das maiores vitórias de sua história. O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou e rejeitou, naquela data, a tese do Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas.
Eles estavam no centro do processo que buscava instituir a Tese do Marco Temporal porque o Estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Amparo ao Meio Ambiente (Fatma) – que hoje se chama Instituto do Meio Ambiente –, move uma ação de reintegração de posse de um trecho da Reserva Biológica do Sassafrás, localizada dentro da Reserva do Xokleng. O argumento do Estado baseava-se na tese utilizada pela Advocacia-Geral da União (AGU) por meio de um parecer sobre a demarcação da reserva Raposa-Serra do Sol, em Roraima, que usou o critério do Marco Temporal. Foi contra esse pedido de reintegração que a Funai impetrou o Recurso Extraordinário 1.017.365, julgado e rejeitado pelo STF.
Essa vitória teve impacto em povos indígenas de todo o país. Proporcional a essa conquista, entretanto, foi o ódio que recaiu sobre os indígenas desta etnia, principalmente contra os que vivem nas nove aldeias da Terra Indígena Ibirama La Klãnõ, nos municípios de José Boiteux, Vitor Meireles, Itaiópolis e Doutor Pedrinho.
Depois da derrubada do Marco Temporal, os cerca de 3 mil habitantes da Reserva perceberam que o clima de hostilidade, que sempre existiu entre indígenas e não indígenas, se intensificou na região. Ameaças, racismo, omissão e ações truculentas do governo estadual são, na visão dos indígenas, represálias por conta da vitória no Supremo Tribunal Federal.
Em novembro de 2023 o Parágrafo 2 ficou uma semana na região e produziu duas reportagens sobre a realidade de 460 estudantes indígenas que estavam sem aulas. Eles não conseguiam chegar à escola porque em 7 de outubro daquele ano, o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), decidiu fechar as comportas da barragem. A decisão teve como objetivo evitar alagamentos na cidade de Blumenau, que sofria com as fortes chuvas e iniciava a tradicional Oktoberfest.
Com o uso de grande efetivo da Polícia Militar, o governo do estado fechou as comportas, o que não ocorria há dez anos. Os indígenas tentaram impedir, mas foram atacados com bombas de efeito moral, gás de pimenta e balas de borracha.
A barragem estava há mais de 10 anos sem operação e manutenção. Em 2021, um laudo apontou falhas e problemas em sua estrutura, mostrando o descumprimento de uma resolução da Agência Nacional de Águas (ANA), que determina a inspeção regular de barragens no país.
Quatro dias depois do fechamento das comportas, o reservatório transbordou e deixou embaixo da água estradas e pontes que ligavam as aldeias da região. Centenas de famílias ficaram isoladas.
Vai correr sangue
A perseguição aos Xoklengs remonta ao final do século XIX e começo do século XX quando os indígenas vagavam pelas matas de Santa Catarina para fugir de assassinos contratados pelo governo estadual por governos da região e por ricos fazendeiros.
Eram as chamadas Patrulhas de Bugreiros, que passaram a matar e capturar os Xoklengs, na época chamados também de Botocudos. Havia um conflito com imigrantes europeus que tinham se instalado na região. Essas famílias compraram e ganharam propriedades do governo de Santa Catarina. Mas a terra já tinha dono, era dos indígenas, e eles resolveram resistir de diversas maneiras.
Com isso, passaram a ser perseguidos por bandos armados. Durante décadas, foram caçados nas matas de todo o estado. Estima-se que cerca de 20 mil foram mortos, incluindo mulheres e crianças. Orelhas arrancadas a facão eram o comprovante entregue pelos bugreiros ao governo do estado para receber o dinheiro pelo serviço feito.
Esse genocídio nunca se apagou na memória dos Xokleng, nem na dos habitantes dos municípios onde fica a Terra Indígena. Ao longo dos anos, outras ofensivas foram feitas contra os povos originários.
Essa história é construída por vários capítulos violentos, alguns entre indígenas e colonos da região, outros impostos e até incentivados pelo estado de Santa Catarina e por administrações municipais do Alto Vale do Itajaí.
Colonos e indígenas convivem lado a lado. Na cidade de José Boiteux, por exemplo, trabalham centenas de indígenas. Eles também são mão de obra constante nas lavouras de fumo da região. Mas é uma convivência tensa, um barril de pólvora que parece que vai explodir a qualquer momento. /
De fato, já explodiu outras vezes, como em 2016, quando colonos colocaram fogo na casa de uma família indígena em Vitor Meireles, um dos quatro municípios onde fica a Reserva Indígena. Na época, os Xokleng reagiram e sequestram duas pessoas que foram mantidas reféns e liberadas depois da intervenção da Funai e do Ministério Público Federal.
Desde que a tese do Marco Temporal começou a ser debatida pelo STF, a tensão entre agricultores e indígenas aumentou. Em Vitor Meireles, por exemplo, cerca de 800 famílias de produtores rurais temem perder suas propriedades diante da possível ampliação da Reserva Indígena.
Esse medo tem sido alimentado pelo discurso de deputados catarinenses, senadores do estado e também pelo governador Jorginho Mello. São falas que “alertam” os agricultores da região sobre possíveis despejos das propriedades rurais e, em alguns casos, em “banho de sangue”.
Essas declarações repercutem fortemente entre os produtores rurais da região, e, na visão de muitos, um conflito armado é apenas questão de tempo. Ao Parágrafo 2, um agricultor de Vitor Meireles falou sobre essa tensão. Ele se dispôs a dar um relato sob a condição de anonimato.
O agricultor, que tem 60 anos, nasceu e cresceu na região. Para ele, a derrubada da Tese do Marco Temporal representa uma grave ameaça às famílias agricultoras e, em algum momento, os colonos tomarão atitudes drásticas. “Olha, acho muito difícil que não aconteça um conflito mais cedo ou mais tarde. As pessoas não vão entregar suas propriedades para os índios. Tem gente armada aqui, se o governo não fizer nada, infelizmente vai correr sangue”, enfatizou em novembro de 2023.
O discurso dele é um eco das declarações de políticos de Santa Catarina. Uma audiência pública realizada pela Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) no dia 15 de maio de 2023 para discutir o marco temporal, foi palco de discursos inflamados de parlamentares e produtores rurais.
“Se isso acontecer (a tese ser derrubada) cerca de 30% do território nacional vai passar para a mão dos indígenas. Temos noção do derramamento de sangue que vai ser nesse país, no nosso estado?”, disse na ocasião o deputado estadual Sérgio Guimarães (União Brasil).
“Banho de Sangue” foi também um termo usado pela deputada federal de Santa Catarina, Caroline de Toni (PL). Ela afirmou, durante uma coletiva de imprensa da Frente Parlamentar Agropecuária antes do julgamento do STF que “a decisão do Marco Temporal, que vem relativizar a propriedade privada e gerar uma imensa insegurança jurídica, vai trazer um banho de sangue no campo brasileiro. Temos milhares e milhares de famílias de pequenos agricultores que serão expropriadas de suas terras sem direito à indenização. E eles não querem indenização, eles querem ficar na terra”, disse a deputada.
Em 24 de maio de 2023, o mesmo discurso foi reproduzido pelo governador do Estado. “Isso nos deixa preocupados, pois se o Marco for derrubado, uma tragédia irá acontecer. Então, conversamos sobre o assunto e [tentamos buscar] como nós, dos governos estaduais, podemos encontrar um caminho para isso. Um caminho pacificador, que dê a garantia de políticas básicas aos indígenas, mas que principalmente garanta terra para o agricultor, que produz, que trabalha e gera desenvolvimento para o Brasil”, disse na época Jorginho Mello à Agência Catarinense de Notícias.
Marcondes Namblá e Hariel Paliano são vítimas da atuação do poder público, principalmente nas esferas do legislativo e do executivo. Como contra-ataque à derrubada do Marco Temporal no STF, em 27 de setembro de 2023 o Senado aprovou o projeto de lei que estabelece regras para a gestão e demarcação de terras ocupadas por povos originários no país. Entre outros pontos, a iniciativa fixa o Marco Temporal de terras indígenas em 5 de outubro de 1988, dia da promulgação da Constituição Federal.
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