Setembro de 2021
Por José Pires
No último dia 08, em um voto que já pode ser considerado histórico, o ministro Edson Fachin, relator do processo de repercussão geral sobre demarcação de terras indígenas no Supremo Tribunal Federal (STF), rechaçou a tese do marco temporal e reafirmou o caráter originário dos direitos constitucionais indígenas, que ele caracterizou como cláusulas pétreas. O julgamento continua nesta quarta-feira (14).
Cerca de seis mil indígenas de 176 povos permaneceram por mais de dez dias em um mega acampamento próximo à Praça dos Três Poderes, em Brasília. No dia 30/08 se descolaram para um terreno da Funarte, também na Capital Federal. Eles aguardam o Supremo Tribunal Federal (STF) julgar o Recurso Extraordinário 1.017.365 que trata sobre pedido de reintegração de posse de uma área da Reserva Biológica do Sassafrás, no Alto Vale do Itajaí, em Santa Catarina. O trecho em questão hoje faz parte da Terra Indígena (T.I.) Ibirama La-Klaño onde vivem Xoklengs, Kaingangs e Guaranis. A decisão do STF terá repercussão geral, ou seja, depois dessa decisão pode haver uma revisão das Terras Indígenas já demarcadas e também dos processos de demarcação em todo o Brasil. É a chamada “Tese do Marco Temporal” que defende como Terra Indígena apenas aquelas ocupadas ou disputadas pelos povos originários na data da promulgação da Constituição de 1988. Para os indígenas esse é o “julgamento do século”.
Muito está em jogo. Em resumo, o destino de 725 Terras Indígenas já demarcadas e que juntas ocupam uma extensão total de 117.377.553 hectares (1.173.776 km2), com maior território na Amazônia Legal (424 áreas, 115.344.445 hectares).
Porém, além do julgamento que pode alterar a demarcação de Terras Indígenas, em Brasília se discute também, neste momento, o destino de boa parte da Mata Atlântica e dos recursos hídricos do país.
Entre os muitos projetos de Lei que tramitam hoje no Congresso Nacional dois tratam sobre Áreas de Preservação Permanente (APPs) em Zonas Urbanas. São propostas legislativas que visam flexibilizar a regra geral nacional estabelecida pela Lei nº 12.651/2012 (Código Florestal Brasileiro). Segundo as regras atuais, considera-se Área de Preservação Permanente, em zonas rurais ou urbanas, as faixas marginais de qualquer curso d’água natural perene e intermitente, que devem ter largura mínima variando de 30m até 500m, de acordo com a largura do rio. A definição dessas faixas de vegetação procura garantir que as funções dessas áreas sejam minimamente resguardadas no território nacional, tanto no espaço rural quanto no urbano. Os projetos em questão pretendem, entre outras mudanças, delegar aos municípios a competência de definir as Áreas de Proteção Ambiental, podendo elas serem drasticamente diminuídas conforme entendimento do poder legislativo e executivo municipal em todo o país.
Os dois projetos são parte de um pacote de ataques contra o meio ambiente que marcha em ritmo acelerado no Distrito Federal.
E no centro de tamanho retrocesso há um agente comum: O Estado de Santa Catarina. Tantos os PLs quanto o Recurso Extraordinário são frutos catarinenses. Além deles, o lobby político e ruralista do estado também promoveu a confecção e aprovação do Código Florestal Brasileiro de 2012, que os PLs já citados tentam “aprimorar”. O Código é considerado por especialistas como um dos maiores retrocessos nas leis de proteção ambiental.
Políticos, famílias do agronegócio e a Federação das Indústrias de Santa Catarina têm atuado há décadas para enfraquecer as políticas ambientais no Brasil. E as investidas catarinenses podem ser coroadas no primeiro dia de setembro quando o Supremo Tribunal Federal deve votar a Tese do Marco Temporal.
Santa Catarina e a demarcação de Terras Indígenas
A Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ está localizada entre os municípios de Doutor Pedrinho, Itaiópolis, Vitor Meireles e José Boiteux e fica a 236 km a noroeste de Florianópolis. A área tem um longo histórico de demarcações e disputas, que se arrastou por todo o século XX, no qual foi reduzida drasticamente. Foi identificada por estudos da Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2001, e declarada pelo Ministério da Justiça, como pertencente ao povo Xokleng, em 2003. Nela, hoje vivem Xoklengs, Kaingangs e Guaranis, além de cerca de 400 famílias de colonos e oito empresas, a maioria ligada a extração de madeira.
O Estado de Santa Catarina, por meio da Fundação Amparo ao Meio Ambiente (Fatma) – que hoje se chama Instituto do Meio Ambiente -, move uma ação de reintegração de posse de trecho da Reserva Biológica do Sassafrás que foi incluída na T.I. É contra esse pedido de reintegração que a Funai impetrou o Recurso Extraordinário 1.017.365 que será julgado pelo STF e cuja repercussão norteará as demais disputas por áreas onde existem Terras Indígenas.
Em resumo, a ação do Estado de Santa Catarina terá impacto em todo o país com possibilidade de prejudicar os povos indígenas, suplantar sua cultura, agravar a violência no campo e promover o desmatamento, já que os menores índices de derrubadas de florestas estão nas Terras Indígenas.
Para o Advogado do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rafael Modesto dos Santos, a aplicação do Marco Temporal será a legalização de todas a violência e injustiça impostas contra os povos originários no Brasil. “Os roubos das terras, os assassinatos, as caçadas humanas, as dinamites jogadas nas aldeias. A expulsão dos indígenas de suas terras até 1988 será legalizada. Os indígenas não estavam na terra naquela data porque foram expulsos para que as terras fossem entregues à colonização”, destaca.
Ele também alerta que a aplicação do marco temporal expulsará os povos originários para as periferias das cidades, gerando mais pobreza, marginalização e violência. Desarticulados e sem manutenção de seus modos de vida tradicionais, eles poderão perder suas culturas, crenças e até as mais de 274 línguas catalogadas.
A decisão do STF valerá também para outra importante ação germinada em terras catarinenses. Caso os ministros do Supremo votem contra o Marco Temporal, a Ação Cível Originária (ACO) 1100 de 22/11/2007 também será afetada. Ela trata de um pedido de anulação da demarcação da Terra Indígena Ibirama La-klaño. Essa ação foi movida por famílias de colonos que vivem em trecho da T.I. e uma empresa que explora madeira na região. Como assistentes na ação estão o governo do Estado e o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA).
A empresa que assina a ação ao lado do Estado é a Modo Battistella Reflorestamento (Mobasa), extratora de madeira com sede no município de Rio Negrinho. Ela pertence à Família Battistella, dona de um conglomerado que atua em diversas frentes do agronegócio e cujo poder de atuação foi um dos responsáveis também pelo novo Código Florestal Brasileiro.
Os Battistella
O império dos Battistella teve início em 1949 quando um gaúcho de Bento Gonçalves começou a extrair madeira na cidade de Lages, na Região Serrana de Santa Catarina. Emilio Fiorentino Battistella fundou um conglomerado que hoje é comandado pelos herdeiros Luciano Ribas Battistella e Mauricio Valente Battistella.
Hoje o legado de Emilio se transformou na holding Battistella Administração e Participações S.A. O grupo
possui, entre outras empresas, a Modo Battistella Reflorestamento que é uma homônima fabricante de madeira serrada de pinheiro (pinus), que possui uma unidade industrial com 70 mil metros quadrados, 420 colaboradores e capacidade de processar mais de 360 mil toneladas de toras anualmente. A família é também a idealizadora e fundadora do Porto de Itapoá. E possui a Cotrasa, revendedora de caminhões e peças Scania com sedes no estado do Paraná.
A família Battistella, por meio da Ação Civil Originária iniciada no ano de 2007, pode influenciar as demarcações de terras indígenas em todo o país. E, obviamente, o Marco Temporal é a “menina dos olhos” do Agronegócio brasileiro. O setor, baseado na monocultura que demanda grandes extensões de terra, tem muito a ganhar com a revisão das T.I.s já demarcadas e com aquelas que ainda estão em processo de demarcação.
E se o agronegócio ganha, os Battistella também. O grupo, além da extração de madeira por meio da Mobasa, atua no segmento de logística escoando a produção de monoculturas desde o campo até o exterior.
Em 2007 os Battistella perderam seu patriarca. Emílio Battistella faleceu no ano em começaram as obras do Porto de Itapoá, terminal de cargas idealizado por ele em 1993. O Porto começou a operar em 2011, é o maior de Santa Catarina e o terceiro maior do Brasil em movimentação de containers segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq).
O Porto de Itapoá pretende quadruplicar sua capacidade de operação e para isso seus acionistas realizaram um investimento de R$ 350 milhões. Entre os acionistas, a Família Battistella é representada pela Portinvest Participações S.A., que detém 70% do controle acionário e pertence a José Antonio da Rosa Neto e Maurício Valente Battistella.
Em 2017, O Porto Itapoá embarcou no fenômeno da “conteinerização” dos grãos, novidade implementada dois anos antes no porto paranaense de Paranaguá e solução logística adotada largamente pelo Paraguai. No primeiro trimestre daquele ano, no pico do escoamento da safra, Itapoá chegou a embarcar mais de 1.000 contêineres de soja por mês, o equivalente a 22 mil toneladas.
Outro nicho de logística onde atua a Battistella Administração e Participações S.A é o transporte rodoviário. O Brasil é o maior mercado para a Scania no mundo, segundo a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea). A marca deve aumentar suas vendas em 15% no país em 2021. Parte do crescimento previsto ocorrerá por causa do avanço do agronegócio. Assim como em anos anteriores, a previsão é de safra recorde. E a família Battistella é dona da Cotrasa, uma das maiores revendedoras de caminhões e peças da marca em todo o país, com sete unidades no estado do Paraná. Os Battistella já foram os maiores revendedores Scania no Brasil e a parceria com a fabricante de caminhões ajudou Emilio Battistella a fornecer madeira para as obras de construção de Brasília. Juscelino Kubitschek não teria dado vida à capital sem a madeira levada do sul e sudeste na carroceira de caminhões.
Família Battistella: política e o novo Código do Meio Ambiente de Santa Catarina
As ligações dos Battistella com a política não se resumem a fornecimento de insumos para obras, como aconteceu na construção da Capital Federal. Ela se dá também por meio da Federação das Indústrias do Estado de Santa Catarina (Fiesc). A influência foi tão eficaz que resultou na aprovação do Código Estadual do Meio Ambiente de Santa Catarina (Lei 14. 675 de 13 de abril de 2009) que serviu de base para o Código Florestal Brasileiro aprovado em 2012.
A Fiesc faz questão de ressaltar que contribuiu ativamente para a formulação do Código Estadual do Meio Ambiente, participando de todas as audiências públicas, apresentando propostas e colaborando com os debates técnicos e jurídicos. Em nota ao De Olho nos Ruralistas a Federação ressalta que “a Câmara de Desenvolvimento da Indústria Florestal é uma instância consultiva da Federação, por meio da qual a entidade ouve o setor para formular seus posicionamentos”. Essa Câmara, a Cadif, foi uma das grandes responsáveis por ajudar na formulação do Código Estadual do Meio Ambiente aprovado em 2009. Quem a preside é Odelir Battistella, um dos cinco filhos de Emílio.
O Projeto de Lei que deu origem ao referido “Código Estadual do Meio Ambiente” foi proposto pelo Governo do Estado de Santa Catarina e aprovado pelo Assembleia Legislativa do Estado. O PL foi alvo de inúmeras críticas de especialistas das mais diferentes áreas ligadas ao meio ambiente, além de alertas quanto a inconstitucionalidade de vários dispositivos nele contidos, por parte de representantes do Ministério Público Estadual e do Ministério Público Federal. A principal mudança trazida pela nova lei é com a relação ao tamanho das Áreas de Proteção Ambiental nas propriedades rurais. Segundo o Código Florestal Brasileiro vigente na época, essas áreas deviam ter um recuo mínimo de 30 metros a partir das margens, não havendo distinção entre pequenas e grandes propriedades. Já o Código Ambiental catarinense estabelece que a largura da APP ao longo dos rios ou de qualquer outro curso de água tenha o limite de 5 metros para propriedades de até 50 hectares.
Em 2009 o professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), João de Deus Medeiros, era Diretor do Departamento de Áreas Protegidas do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Ele destaca que a aprovação do Código de Santa Catarina trouxe muitos prejuízos, entre eles, o mote para precedentes perigosos, já que sua aprovação indicaria que as normas nacionais não precisariam ser observadas pelo cidadão. “É uma absurda atitude de desobediência governamental, algo completamente descabido, já que a administração pública não pode se afastar do princípio constitucional da legalidade. Com esta sinalização muitos proprietários se sentiram legitimados pelo estado para avançar sobre a vegetação em APP, gerando assim prejuízo ambiental”, explica.
Um dos argumentos utilizados pelos defensores do Código era de que as leis ambientais federais, se cumpridas na íntegra, trariam enormes prejuízos ou levariam à falência milhares de pequenos produtores rurais do Estado, empurrando-os para as periferias das cidades. Para João de Deus, esse argumento é falacioso na medida em que faziam uma projeção absolutamente exagerada da extensão das APPs e também porque no caso das pequenas propriedades a quantidade de passivos ambientais não é tão significativa. “Cumpre ainda frisar que, segundo dados de 2016 do Sistema Nacional de Cadastro Rural, Santa Catarina detêm 346.830 imóveis rurais de titularidade particular com dimensão até quatro módulos rurais, ocupando área de 5.140.453,5 ha, e 16.725 imóveis com área superior a quatro módulos fiscais, mas que no conjunto ocupam 3.832.383,1 ha. Em outros termos, os pequenos imóveis rurais, com área de até quatro módulos fiscais, perfazem 95,4% dos imóveis rurais do Estado de Santa Catarina, porém ocupam 57,3% da área total do Estado. Os imóveis maiores ocupam 42,7% da área total, porém representam tão somente 4,6% dos imóveis rurais do Estado”, ressalta o professor.
Para Wigold Schaeffer, ambientalista e Conselheiro da Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida (Apremavi), que foi um dos responsáveis pelo parecer das Secretarias de Biodiversidades e Florestas, Mudanças Climáticas e Qualidade Ambiental e Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente, as mudanças trazidas pelo Código Ambiental de Santa Catarina também tinham o objetivo de beneficiar médios e grandes proprietários que já estavam convertendo ou queriam converter campos de altitude em monoculturas agrícolas ou plantações florestais de espécies exóticas. “Isso fica claro pela adoção de um conceito político e não técnico para definir o que são Campos de Altitude. Utilizaram um parâmetro de altitude, dizendo que Campos de Altitude só ocorrem acima de 1.500, quando o correto é utilizar a definição técnica do IBGE que aponta que Campos de Altitude estão situados nos ambientes montano e alto- montano e podem ocorrer em altitudes acima de 600 metros dependendo da região. Aqui em Santa Catarina ocorrem a partir dos 900 metros. Outra coisa que o Código que nós chamamos de anti-ambiental fez foi reduzir as Áreas de Preservação Permanente para anistiar desmatamentos irregulares e ocupação de áreas frágeis de grande importância ambiental. Na época nós fizemos um estudo das plantações de arroz no município de agronômica, uma das regiões de maior produtividade de arroz do mundo. Para quem não sabe, o arroz é plantado por pequenos produtores e geralmente nas várzeas e muitas vezes até próximo às margens dos rios. Naquele município apenas 5,6% do arroz estava em APP, considerados os parâmetros de APP do Código Florestal. Fizemos esse estudo também para outras culturas como a maçã e a uva e verificamos que praticamente nada estava plantado em APP”, explica.
O Código do Meio Ambiente e a tragédia em Blumenau
Há 10 anos, o Vale do Itajaí foi atingido pelo meio maior desastre natural registrado no estado. A principal cidade da região, Blumenau, contabilizou quase 3 mil deslizamentos com a enchente. Foram afetadas 60 cidades e atingidas 1,5 milhão de pessoas. Dessas, 9.390 ficaram desalojadas. Houve 135 mortes.
Levantamentos realizados na região atingida mostraram que as pessoas e infraestruturas mais fortemente atingidas pelas cheias e deslizamentos de terra foram aquelas que ocupavam as áreas muito próximas aos rios, riachos e encostas com grande declividade. Levantamentos da época apontaram que os prejuízos econômicos e perda de vidas humanas teriam sido significativamente menores se as faixas de APPs fossem maiores e estivessem livres de ocupação.
Estudos do Centro de Informações de Recursos Ambientais e Hidrometeorologia de Santa Catarina (Epagri-Ciram), órgão do Governo do Estado, apontaram que 84,38% das áreas atingidas por deslizamentos na região do Morro do Baú, que compreende os municípios de Ilhota, Gaspar e Luís Alves, alguns dos municípios mais atingidos e com maior número de perda de vidas humanas, haviam sido desmatadas ou alteradas pelo ser humano. Nessas áreas predominavam reflorestamentos com eucaliptos (23,44%), lavouras de banana (18,75%), capoeirinha (17,19%) e solo exposto (10,94%). Por outro lado, apenas 15,65% dos desbarrancamentos ou deslizamentos ocorreram em áreas com cobertura florestal densa ou pouco alterada.
E o histórico de desastres naturais em Santa Catarina é latente. Em 1974, chuvas fortes na região sul do Estado provocaram uma tragédia na cidade de Tubarão, contabilizando-se a época, 199 mortos e 65.000 desabrigados. Em 1983, desta vez na cidade de Blumenau e vizinhas, as cheias provocaram oito mortes e 197.000 desabrigados. O mesmo fenômeno voltou a assolar a cidade e região no ano seguinte, 1984, dessa vez deixando um saldo de 16 mortes e 155.000 desabrigados. Em 14 de outubro de 1990 uma enxurrada deixou 21 mortos, arrastou casas inteiras e deixou um rastro de destruição no bairro Garcia na Região Sul de Blumenau. Florianópolis e outras cidades da região sul, em 1995 contabilizaram 69 mortes e 28 mil desabrigados em decorrência das cheias. Em 2004 o inédito furacão Catarina deixou um rastro de destruição na região sul do Estado, com saldo de 11 mortes e 35.000 desabrigados.
Uma sinistra coincidência é que a tragédia catarinense de 2008 em Blumenau e região ocorreu na semana em que a Assembleia Legislativa concluiu as audiências públicas sobre o Código Ambiental. Alerta produzido no mesmo ano por um grupo de pesquisadores e especialistas ligados ao Comitê Itajaí, órgão colegiado integrante do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos destaca que o projeto de lei proposto pelo Estado de Santa Catarina era o resultado da pressão de fazendeiros, fábricas de celulose, empreiteiros e outros interesses, apoiados na justa preocupação de pequenos agricultores que dispõe de pequenas extensões de terra para plantio.
Para João de Deus o Código aprovado beneficiou os grandes latifundiários, entre eles empresas de extração de madeira como o Modo Battistella. “Ainda que lei não necessariamente esteja associada a extração direta da madeira em APP, muitas empresas de reflorestamento que atuam no Estado detêm grandes passivos de APP, e com a nova regra estadual elas se beneficiam duplamente, não precisariam recuperar as APPs ocupadas irregularmente e poderiam manter a expectativa de utilização desse espaço com a atividade de silvicultura”, afirma o professor.
Luiz Henrique da Silveira (falecido em 2015) era o governador de Santa Catarina à época da proposição do novo Código Ambiental. O político do MDB tinha relações estreitas com agronegócio. Prova disso são os doadores de sua campanha para o governo do Estado em 2006. Naquele pleito o MDbista arrecadou mais de R$ 7 milhões, boa parte deste montante vindo de construtoras e empresas ligadas ao agronegócio como a Cecrisa que doou R$ 400 mil, e de celulose como a Kablin que apoiou o candidato com R$ 290 mil.
Outro político que trabalhou intensamente para a confecção e aprovação do Código do Meio Ambiente de Santa Catarina foi o então deputado Valdir Colatto (MDB). Para os Xoklengs da T.I. Ibirama La-Klaño ele simplesmente é o “inimigo número 1 dois indígenas”. Também em 2008 Colatto protocolou, ao lado do também deputado catarinense João Matos (MDB), o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 480/08 pedindo a suspensão da homologação da T.I. Ibirama La-Klaño.
O novo Código Florestal Brasileiro
Tanto Fiesc como representantes da política catarinense se orgulham em dizer que o Código do Meio Ambiente de 2009 foi a grande inspiração para o novo Código Florestal Brasileiro, Lei 12.651 de 25 de maio de 2012.
No entanto, não foi apenas a inspiração que os catarinenses forneceram. Valdir Colatto (deputado federal à época) foi o propositor do projeto e Luiz Henrique da Silveira (então senador) foi o relator no senado.
A cobertura de vegetação nativa no Brasil é de 569 milhões de hectares, o que representa 66% do território do país. Desse total, 53% ocorrem em propriedades privadas. No caso do estado de São Paulo, por exemplo, a cobertura com vegetação nativa dentro de imóveis rurais tem uma relevância ainda maior, visto que representa 69% da vegetação nativa do estado. O novo Código Florestal, regulamenta o uso e a proteção de florestas e demais tipos de vegetação nativa dos imóveis rurais privados.
Uma das principais mudanças do novo Código é com relação às APPs. O texto prevê redução para 15 metros de recuperação de mata para rios com largura de até 10 metros e a obrigação, aos proprietários com até quatro módulos fiscais – o módulo varia entre estados de 20 a 440 hectares -, de não exceder a recuperação em 20% da área da propriedade.
Novo ataque às APPs
Os dois projetos de Lei mencionados no início desta reportagem tentar modificar pontos específicos do Código Florestal Brasileiro de 2012. A definição sobre quais seriam as áreas de proteção ambiental, ficariam, conforme os PLs, a cargo dos municípios brasileiros.
Trata-se do PL 2.510/2019 que já foi aprovado na Câmara dos Deputados e do PL 1.869/2021 que está tramitando no Senado. Ambos são iniciativas catarinenses: o Deputado Rogério Peninha Mendonça (MDB) é o autor do PL aprovado, seu relator foi o deputado Darci de Matos (PSD) e Ângela Amim, deputada federal de S.C. do PP fez um pedido de urgência. Assim, tocada pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, a boiada antiambiental avançou mais rapidamente na Câmara onde foi aprovada. Fecha o pacote o senador Jorginho Mello (PL) com o Projeto de Lei 1.869/2021.
Wigold Schaeffer esclarece que a tentativa de remeter a definição de APP ao legislador municipal mostra-se intrinsecamente associada ao desejo de legitimar a redução de seus limites, não é acompanhada de qualquer justificativa técnica minimamente plausível e desconsidera que existem fartos estudos sobre o tema, feitos por diferentes pesquisadores e instituições, a maioria destes estudos corroborando os parâmetros da norma geral nacional, ou indicando a necessidade de sua ampliação em determinados casos. “Fica difícil compreender que propostas legislativas como estas aqui avaliadas surjam de representantes de parlamentares catarinenses. As tragédias observadas em Santa Catarina, que infelizmente são hoje frequentes em diversas outras regiões do país, apontam que a proteção conferida pelas APPs é de extrema importância e relevância”, diz.
Já o professor João de Deus Medeiros compreende que tais iniciativos são o retrato de um estado essencialmente conservador e dominado politicamente por grupos com estreitas relações com o setor empresarial. Nesse contexto, aprovar leis flagrantemente conflitivas com as normas nacionais são uma maneira de demonstrar força e tensionar para que as mudanças implementadas redundem numa pressão política para mudança de regras nacionais. “Esse ‘sonho’ dos ruralistas foi concretizado com a aprovação na câmara dos deputados do relatório do então deputado Aldo Rebello, a atual versão da lei 12.651 reflete as mudanças promovidas durante a tramitação da matéria no senado. A insatisfação com o texto aprovado ainda é enorme, o que tem motivado inúmeras propostas de alteração da lei 12,651, a exemplo do PL 2510/2019”, finaliza.
O que dizem os envolvidos
O Parágrafo 2 procurou os citados na reportagem. O Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) respondeu por meio de nota sobre o julgamento do Recurso Extraordinário relativo a pedido de reintegração de posso de território da terra indígenas dos Xoklengs: “Em relação ao julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365/SC, que trata sobre terras indígenas e tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), marcado para a próxima quarta-feira (01), a Procuradoria-Geral do Estado (PGE/SC) que representa o Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA). O órgão requer a reintegração de posse de parte da Reserva Ecológica Estadual do Sassafrás, no município de Itaiópolis, no Planalto Norte catarinense. Em 2009, cerca de 100 indígenas invadiram uma parte da reserva, que é de propriedade do IMA. À época, a então Fundação do Meio Ambiente de Santa Catarina (FATMA) buscou reaver a área por meio de uma ação de reintegração de posse contra a Fundação Nacional do Índio (Funai), que foi julgada procedente. Porém, o órgão indigenista apresentou o RE em que alega que o acórdão publicado pelo Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF-4) “violou o artigo 231 da Constituição”, defendendo que a Carta Magna “adotou a teoria do indigenato e, portanto, a relação estabelecida entre a terra e o índio é originária e independe de título ou reconhecimento formal”.
Nos autos, a PGE/SC defende que seja definido um estatuto jurídico constitucional que traduza a justiça demarcatória, garantindo pressupostos materiais e processuais decorrentes da Constituição de 1988. A Constituição incentiva o resgate da dignidade dos povos indígenas, superando a “diretriz de integração” e constituindo o “paradigma da interação”, sem que para isso se violem “outros direitos fundamentais igualmente relevantes à sociedade brasileira e decorrentes da Carta”.
As alegações da PGE/SC buscam garantir a segurança jurídica, o direito de propriedade e impedir a violação do ato jurídico perfeito, pois um entendimento diferente do que tem sido prestigiado pelo STF implicaria na revisão e no desfazimento de diversos atos jurídicos ocorridos em todo o País.
A Fiesc também respondeu por meio de nota, na qual destaca sua atuação na confecção do Código do Meio Ambiente de Santa Catarina: “A FIESC contribuiu ativamente para a formulação do Código Estadual do Meio Ambiente, participando de todas as audiências públicas, apresentando propostas e colaborando com os debates técnicos e jurídicos.A Federação, por meio da Câmara de Desenvolvimento da Indústria Florestal, de sua diretoria e de seu corpo técnico, defendeu e defende o princípio da razoabilidade como uma baliza fundamental da interpretação constitucional, buscando a adequação das normas à realidade. A Constituição Federal determina que cabe à União definir normas gerais e a estados e municípios as normas específicas. O Código catarinense tem como um de seus principais méritos aproximar as regras da realidade regional, já que a lei federal não considera a realidade geográfica, climática e social de Santa Catarina, o que torna o cumprimento difícil e, muitas vezes, impossível. Não faz sentido que a legislação ambiental seja completamente centralizada e uniforme, definindo os mesmos parâmetros específicos para regiões distintas como a Amazônia, o Serrado ou a Mata Atlântica em Santa Catarina.
Com o Código Ambiental catarinense, foram valorizadas as peculiaridades regionais, conciliando a preservação com a produção, em especial nas áreas que já estavam consolidadas. Está em sintonia com o Código Florestal Brasileiro e sua aplicação estimula a preservação. Mais do que ser apenas uma carta de intenções, a legislação precisa ser posta em prática para atingir os seus propósitos.
A Câmara de Desenvolvimento da Indústria Florestal é uma instância consultiva da Federação, por meio da qual a entidade ouve o setor para formular seus posicionamentos. A FIESC norteia suas manifestações sempre pela visão de que é necessário conciliar a proteção aos recursos naturais com desenvolvimento socioeconômico, considerando fundamentos técnicos e científicos”.
A reportagem também entrou em contato com o advogado do Grupo Battistella, Cesar Marçal Cerconde. Ele respondeu que, por questões familiares, não conseguiria responder às perguntas enviadas.
Procuramos também Valdir Colatto, mas não recebemos resposta.
Não conseguimos contato com o deputado Rogério Peninha Mendonça e o senador Jorginho Mello.