Foto principal: Casa de Claudio e Salete.
É relativamente fácil descrever um barraco de 2mx2m. Oito chapas de compensado, meia dúzia de folhas de Eternit e uma porta feita de tábuas. É isso. Pequeno e simples. Complexo, no entanto, é imaginar o que pode se abrigar dentro dele. E não falo aqui de móveis e pertences, já que o espaço não comporta muita coisa. Me refiro à imensidão de sentimentos que pode se esconder sob as chapas amarelas de madeira. O mundo de alguém se comprime ali. Vidas completas se espremendo em cada centímetro quadrado. Se espalhando sobre as poucas panelas, inundando a terra fria que ainda não foi coberta por um piso de cimento.
Na última rua da Ocupação Vila Nova Esperança – novo bairro da cidade de Campo Magro na Região Metropolitana de Curitiba – há vários barracos de 2mx2m. Vizinhos da mata (e dizem que também de uma onça) eles ocupam seu devido lugar em terrenos de 10mx20m. Um olhar desatento vê apenas terra e madeira. Um olhar mais grave vê questões judiciais envolvendo a posse do lugar. Outro olhar, por sua vez, enxerga os números que mostram o abismo social num país onde milhões não têm casa própria. Já eu vi “Claudio e Salete”. Os dois nomes numa placa branca pendurada em uma árvore. Entre eles um coração, simbologia máxima do que representa a vida em um barraco de 2mx2m.
Não os conheço e eles não estavam em casa. E espero que não se importem por estar citando seus nomes em uma reportagem. Não sei se Claudio e Salete têm filhos, de onde vieram ou quando chegaram. O que sei é que um casebre ao lado da mata, num município a 20 km do Centro de Curitiba, pode representar o que há de maior nessa vida, a reconquista da dignidade por meio de um lugar pra chamar de seu.
Mesmo não conhecendo Claudio e Salete sei os motivos que os levaram à Ocupação Vila Nova Esperança. O casal está entre os mais de 30 milhões de brasileiros que não têm moradia própria. O país tem, pelo menos, 6,9 milhões de famílias (cerca de 33 milhões de pessoas) sem casa para morar. Do outro lado existem no Brasil cerca de 6,05 milhões de imóveis desocupados há décadas. As informações são do urbanista Edésio Fernandes, professor de direito urbanístico e ambiental da UCL (University College London) e foram reveladas em uma entrevista à BBC em maio de 2018. No Paraná, segundo a Companhia de Habitação Paranaense (Cohapar), existe um déficit habitacional de 400 mil moradias. Quase meio milhão de famílias paranaenses não têm casas adequadas para viver.
Foi essa realidade que levou o Movimento Popular por Moradia (MPM) a ocupar a área no município de Campo Magro no dia 25 de maio. Chegaram num grupo de 50 pessoas, hoje são mais de 2 mil. A área onde fica hoje a Ocupação Vila Nova Esperança tem 42 alqueires e é um pedaço de chão distinto dos demais. Se chamava Fazenda Solidariedade, uma simetria semântica com a ocupação criada pelos novos moradores. Por ela passaram, durante anos, aqueles com os quais a sociedade não quer se responsabilizar. A fazenda pertence ao governo do estado do Paraná, mas foi cedida à Fundação de Ação Social (Fas) de Curitiba e abrigava uma clínica para dependentes químicos e também servia de abrigo para pessoas em situação de rua. Em 28/08/2009 a clínica foi fechada pela Prefeitura de Curitiba sob a alegação que o alto custo não era condizente com o percentual de recuperação dos dependentes.
Hoje, Nova Esperança faz jus ao nome que tem e por ela trafegam casais, crianças, jovens, idosos. Um vai e vem constante de pessoas e histórias. Um sentimento comunitário que reúne todos a um objetivo comum: o direito à moradia. Esse direito, amparado pelo Artigo 25° da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que reconhece que todo ser humano deve ter um padrão de vida suficiente para garantir a si e a sua família saúde e bem-estar, e isso inclui a habitação, é também protegido pela Constituição Brasileira ao destacar, no artigo 6º, que a moradia é um direito social.
Kauê Avanzi, Mestre em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) com a dissertação “Entre foices e engrenagens: crise, mobilidade do trabalho e a contradição urbano-agrário no estado do Paraná”, ressalta que o direito à moradia é um dos pilares da justiça social. “Imagine que você não tem um teto para voltar, ou que o local onde você vive não tem a infraestrutura básica para te dar dignidade na sua vida cotidiana. Depois de um dia todo em um trabalho precário, seu local de descanso seja ao relento, ou ao lado de um rio sujo e fedido, ou que não tenha luz, ou que alague sempre que chove. Não há como haver justiça social sem que o direito à moradia seja para todos. Mas não basta ter onde morar. Porque muitas pessoas que tratam destas políticas públicas para habitação entendem que se o Estado fornecer um teto qualquer para a pessoa o problema tá resolvido, mas a questão é maior que isso. Em São Paulo, muita gente que, nas décadas de 1980 e 1990 conseguiu um apartamento de COHAB em Itaquera, ou Cidade Tiradentes, por exemplo, preferiu continuar vivendo em cortiços no Centro por entender que o local de moradia ficaria muito longe do local de trabalho, gastando dinheiro e muitas vezes mais de três horas de locomoção entre um e outro. Vi muito disso acontecendo quando fiz meu trabalho de pesquisa no Bairro da Luz”, destaca Avanzi.
Vitória contra “Casagrande”
A Ocupação Vila Nova Esperança está cercada paradoxos. A posse da terra é um exemplo. Moradores mais antigos de Campo Magro dizem que ela, na década de 1940, pertencia ao governo alemão. Depois foi da igreja, do governo do estado, da prefeitura de Curitiba e agora é de pessoas como Cláudio e Salete.
Também há cobiça pela terra entre os poderosos da cidade, como o prefeito Claudio Casagrande (PSD). No primeiro ano de mandato ele sonhava em instalar a sede da prefeitura na área onde hoje fica a Ocupação. Não conseguiu. Quando percebeu que o lugar recebia novos habitantes se mostrou um péssimo vizinho. Desprezando as milhares de vidas e histórias que habitam a fazenda ele decidiu empreender verdadeira cruzada contra as famílias.
Correndo o risco de cair em um trocadilho de mal gosto, preciso dizer que Casagrande não quer casa, nem grande, nem pequena. Talvez prefira senzalas, já que nelas não havia o direito do voto. Hoje, os milhares de eleitores que vivem na Ocupação Vila Nova Esperança podem mudar a realidade política da cidade, podem renovar a Câmara Municipal e a prefeitura. Será que Claudio e Salete votariam em Casagrande? Acho que não.
Ameaçado pelo poder popular o prefeito tem empreendido muitas ofensivas contra Nova Esperança. Proíbe que a secretaria municipal de saúde atenda os moradores da Ocupação, corta linhas de ônibus para dificultar a vida dos trabalhadores, obstruí vias com entulho para impedir o acesso ao novo bairro, orienta comerciantes a não venderam para as famílias recém chegadas.
O Parágrafo 2 entrou em contato com assessoria de imprensa do prefeito para questionar todas essas informações. Mas novamente não recebemos resposta.
A maior cartada de Casagrande, entretanto, era o um pedido de reintegração de posse emitida pelo juiz Alexandre Moreira Van der Broocke, da segunda vara civil da regional de Almirante Tamandaré. Os moradores da Ocupação tinham até o dia 21/07 para deixar o lugar. Mais de duas mil pessoas seriam jogadas ao relento em plena pandemia.
Muitos movimentos sociais têm lutado para que no Brasil sejam suspensas as reintegrações de posse durante a pandemia. Um exemplo é a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Reforma Urbana e dos Movimentos de Luta por Moradia, formada por diversos parlamentares juntamente com os Movimentos Sociais e Organizações da Sociedade Civil, que defendem a suspensão do cumprimento de medidas judiciais, extrajudiciais ou administrativas que resultem em despejos, desocupações, reintegração de posse ou remoções durante o estado de calamidade pública decretado por causa da COVID-19. Nota emitida pela Frente destaca que “é dever do poder público tomar medidas de excepcionalidade voltada a diminuir o impacto social causado pela crise sanitária que atravessa o país. Enquanto a Organização Mundial da Saúde recomenda o máximo de isolamento social, as três esferas do Estado ainda não se sensibilizaram para as milhares de famílias que poderão ficar sem teto em meio a essa grave crise”.
Na Ocupação Vila Nova Esperança, para desespero de Casagrande, os barracos de 2mx2m continuarão lá. No dia 07 de julho advogados do Movimento Popular por Moradia conseguiram, por meio do Tribunal de Justiça do Paraná, uma liminar de agravo que suspende a reintegração de posse. Foi dia de festa na Ocupação, com discurso inflamado de Valdecir Ferreira da Silva, liderança do lugar. Todos festejaram, e acredito que Claudio e Salete também.
Dr. Felipe Mongruel Magal, um dos advogados da Ocupação, destaca que o embate jurídico com a prefeitura municipal é constante e ainda deve se estender por muito tempo. “A prefeitura de Campo Magro entrou com uma ação de ‘obrigação de fazer’ dirigida à Fundação de Ação Social de Curitiba (Fas) para que ela tomasse uma iniciativa. A Faz, no entanto, não fez conta e foi marcada uma audiência no Tribunal do Júri do Fórum de Almirante Tamandaré onde estavam presentes a procuradoria do município de Campo Magro, a Procuradoria do Estado do Paraná, o Ministério Público a Defensoria Pública e os representantes da Ocupação. Na ocasião foi feito um acordo que cessaria a construção de novas casas e também as roçadas e aberturas de novas ruas. A prefeitura iria parar com ataques, entretanto não parou. O acordo foi firmado e mantido e em uma semana foi pedida a reintegração de posse sob a alegação de que a Ocupação não estava cumprindo o acordado. Conseguimos suspender a ordem, mas o processo continua”, revela o advogado.
Enquanto a batalha é travada no meio jurídico a vida segue em Nova Esperança. Cada barraco ganha cor, características e identidade própria. Alheias aos problemas criados por adultos, meninos e meninas correm ignorando diferenças de idioma, se utilizando da linguagem universal das crianças pequenos brasileiros e pequenos haitianos desbravam cada palmo da terra que os acolhe. A Banca da Baiana continua a servir, a meu ver, a cerveja mais gelada da Ocupação (mas topo fazer a prova em outro comércio do bairro se convidado for). Cheiro de café é levado pelo vendo do sábado à tarde. Zezé Di Camargo e Luciano nunca saem de moda e reverberam na caixa de som em frente ao casebre de um casal apaixonado. Será que a dupla também toca no barraco de 2mx2m de Claudio e Salete?
Você pode ajudar a Ocupação Vila Nova Esperança. Saiba como no vídeo abaixo: