Nesta segunda feira, primeiro dia de junho, protestos movimentaram a capital do Paraná. A manifestação, organizada pelo Facebook, intitulada “Vidas Negras Importam!” trouxe às ruas a temática da violência policial que tem como alvo a população negra. Estima-se que ato reuniu cerca de 1200 pessoas. Movimentos feministas, de mulheres negras, periféricos, de imigrantes, LGBTQI+, Antifascistas e mais um bando de inclassificáveis, conscientes e revoltados, aderiram às manifestações. O protesto foi acompanhado de perto pela Polícia Militar que, ao som do primeiro caco de vidro, mostrou seu poder de fogo e repressão para fazer jus ao slogan do ato.
O ato teve início às 18h com uma concentração na Praça Santos Andrade em frente à Universidade Federal do Paraná (UFPR) e após caminhou até o Centro Cívico. Tal como um soprano com seu canto, que à plenos pulmões pode quebrar uma taça, a voz do povo quando ecoa pelas ruas às vezes quebra a vidraça. Sim! Vidros foram quebrados, prédios apedrejados (já falo mais sobre isso). Assim como balas de borracha (creio que eram de borracha) foram disparadas pela polícia… ironicamente contra vidas negras novamente. Talvez se fossem bolsominions fascistas na paulista, ganhariam até um afago.
Repercussão
Em nota, os organizadores descrevem o protesto e reafirmam o motivo de sair às ruas em tempos de pandemia. “O ato foi um sucesso. Reuniu muitas pessoas, teve uma atmosfera esperançosa por dias melhores. Nossa luta é por igualdade, contra o racismo, a violência contra jovens negros nas periferias, a proliferação de grupos que propagam o ódio e o genocídio de brasileiros promovido pela falta de uma política clara de saúde durante esta pandemia”.
Já a grande imprensa fez o seu papel e cuidou de contar cada caco de vidro (em sua maioria segurados) espalhados pelo chão. Não se falou em quantos projéteis foram disparados pela polícia. Talvez uma informação desnecessária. Afinal que alvo eles perseguiam? Ah, vidas! Não me surpreende que a mídia tradicional traga em suas manchetes e discorra detalhadamente sobre o chamado vandalismo, em detrimento do tema que fez cada manifestante sair de casa para apanhar da polícia e ser chamado de vândalo por aí. Talvez as 5.804 vidas ceifadas pelo braço armado do estado no ano passado não sejam uma boa pauta. Quem sabe o fato de que em 75% dos casos de homicídios no Brasil as vítimas sejam negras também não renderia uma boa capa? Ver a grande mídia comprar a versão das instituições e da elite não é novidade. Mas curiosamente, mesmo neste momento crítico da política nacional, com um genocida fascista no poder, também vemos alguns veículos supostamente progressistas e independes, como o site Plural aqui de Curitiba, seguindo os mesmos passos dos conglomerados midiáticos.
Vidros importam?
Do alto de suas janelas, a classe média filma e xinga timidamente os manifestantes. Sentem a dor das vidraças ao chão. Cada investida contra o shopping center é uma apunhalada em seu mundo. “Amor do céu, tão destruindo o shopping”, lamenta uma amada por trás das lentes do seu smartphone. Sai do quadro o povo, e entra a polícia. Ao som das sirenes, pacificamente lança suas bombas de gás lacrimogênio e suas balas de borracha aos manifestantes. Em alguns momentos estes retribuem o carinho com petit pave. “Tão quebrando o shopping todo. Vocês têm que fazer alguma coisa”, grita desta vez o “amor” para a pequena legião fardada abaixo, que avança na Cândido de Abreu no encalço da primeira horda. O clamor do “amor” aos policiais soa desesperado. Creio que ele seja um dos donos ou acionista do Shopping Mueller, pelo apego à edificação.
Em outra parte da cidade. De uma janela, numa das esquinas da Rua Riachuelo – aquela em frente ao Cine Passeio – uma viatura recebe a cassetetes meia dúzia de jovens que caminham na calçada. Não há conflito, o que se vê é porrada comendo livre e solta pra cima de magrelos cabeludos que nem pedras carregam para contra-atacar.
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Os organizadores da manifestação, em nota, falam do vandalismo, do modus operandi da PM e de possível apropriação do ato por elementos com a intenção de criminalizar o movimento. “Infelizmente, no final do ato, em uma dispersão de alguns poucos, houve vandalismo contra o patrimônio público. O que, ao nosso ver, é muito estranho e suspeito e representa a presença organizada de infiltrados que desejam a criminalização do movimento. O uso de força excessiva por parte da polícia demonstra também a incapacidade de diálogo e a opção pela agressão”.
A meu ver, algumas pedras têm destino certeiro, e dizem mais da luta do que algumas palavras de ordem. Por que um shopping deve abrir suas portas em tempo de pandemia? Atualmente não há cura, tampouco tratamento efetivo para o corona vírus (SARS-CoV-2). O que nos resta é o isolamento social. Mas o mercado, sempre ele, prefere o Lucro à Vida.
A Fiep, sim, aquela do patinho amarelo que ajudou a dar o golpe na Dilma, também levou suas merecidas pedradas pelo desserviço à nação. A Prefeitura de Curitiba também contou seus cacos. De alguns tubos quebrados. Imagino o Greca lamentando o desperdício do nosso dinheiro pra arrumar os tubos. Dinheiro que poderia ser usado pra fazer mais asfalto em meio a pandemia. Ou pra encher os cofres dos Gulin (donos das empresas de transporte) que ganham mais pra rodar menos em tempos de Covid. Foi caco pra todo lado. Foi tiro, bomba e prisão também. Afinal “esses pobres e esses negros não sabem morrer em paz?! Porque reivindicar a vida? Ah, vamos usar de violência num protesto contra violência. Deve dar certo”, devem ter pensado nossos líderes.
Elucubrações à parte, fato é que outro alvo da ira dos homens de bem foi o roubo e incineração da bandeira do Brasil (ainda é com “S”?). O coronel Moraes, subcomandante-geral da PM, em entrevista à Banda B, vê o ataque à bandeira, que estava a meio-mastro, como uma ofensa aos agentes públicos falecidos ontem em um acidente na BR 277. A fala do subcomandante da ares de crime hediondo ao ato. Coloca os já classificados como vândalos como pessoas vis e sem compaixão. Pode ser que esteja certo. Mas não creio que a ofensa à memória destes agentes foi o que motivou o ato. Convenhamos que muita gente sequer sabe o significado da bandeira a meio-mastro ou tinha conhecimento do acidente.
Por um lado, a bandeira em chamas pode ser vista como um ataque ao governo federal e ao sistema que nos oprime. Essa mesma bandeira nos foi roubada, apropriada por seguidores do fascista do planalto por uma ideia de pátria, que mata seus cidadãos com uma criatividade característica de um genocida sociopata; uma bandeira que leva a cor da família real Bragança, que não tem relação com o povo do país, mas sim com seus senhores. Esse Brasil que vem da brasa, vermelha feito o sangue nas veias da árvore que lhe dá o nome – outrora encontrada em abundância nestas terras, mas que foi sistematicamente pilhada para encher o bolso da nossa metrópole. Sim, nossa bandeira sempre foi vermelha. Talvez o fogo na bandeira, que não nos representa tanto assim, seja um grito pela mudança deste país que nunca nos respeitou. Por outro lado, não me soa absurdo que um bando de nazifascistas/bolsonaristas possa se infiltrar no ato e atear fogo à bandeira brasileira – sua nova suástica – como um convite ao caos. Quem foi mesmo que bombardeou nosso navio e nos fez entrar na 2º Guerra Mundial? Os Alemães ou Norte Americanos?
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Estes seriam os antifascistas. "Fogo no Brasil!" Tirem suas conclusões! Todos estão atentos! Confiem no Presidente! pic.twitter.com/YI6setUL8S
— Carlos Bolsonaro (@CarlosBolsonaro) June 2, 2020
Pelo sim, pelo não, mais um elo dessa corrente se quebra e caminhamos rumo a dias cada vez mais sombrios. Na manhã de hoje um vídeo do lutador Wanderley Silva já circulava nas redes, convocando seus pares das academias para um ato de reposição, pacífica, da bandeira. A mim resta ficar aqui, como diz meu camarada Vitor Salmazo, violentamente pacífico, olhando o mundo adoecer a passos largos. Entre os barulhos dos tiros e dos cacos eu penso nas vidas. Afinal, “Vidas negras importam!”. Vidros, não! Vidros se repõem, vidros se recompram, vidros até se importam.
Texto: Everton Mossato
Fotos: Mário Luiz Costa Júnior
Sugestão de Título: Enéas Ribeiro
Confira na íntegra a nota dos organizadores:
“A organização do ato CONTRA O RACISMO EM CURITIBA vem a público manifestar que, diferentemente do vinculado nas redes sociais e na imprensa, os manifestantes, além de utilizar proteção para evitar a propagação da epidemia de COVID-19, comportaram-se de maneira ordeira, em defesa da democracia e contra o racismo!
O ato foi um sucesso. Reuniu muitas pessoas, teve uma atmosfera esperançosa por dias melhores.
Nossa luta é por igualdade, contra o racismo, a violência contra jovens negros nas periferias, a proliferação de grupos que propagam o ódio e o genocídio de brasileiros promovido pela falta de uma política clara de saúde durante esta pandemia.
Infelizmente, no final do ato, em uma dispersão de alguns poucos, houve vandalismo contra o patrimônio público. O que, ao nosso ver, é muito estranho e suspeito e representa a presença organizada de infiltrados que desejam a criminalização do movimento.
O uso de força excessiva por parte da polícia demonstra também a incapacidade de diálogo e a opção pela agressão.
Conclamamos a união de curitibanos de forma individual ou através dos movimentos sociais para a defesa da democracia contra o racismo.
Assinam esta nota
Movimento Feminista de Mulheres Negras, Bando Cultural Favelados da Rocinha FAVELA, União da Comunidade dos Estudantes e Profissionais Haitianos ( UCEPH), J23 – Juventude do Cidadania, Rede nenhuma Vida a Menos, Apoio do Grupo Dignidade e da Aliança Nacional LGBTI+ e Coletivo Enedina da UTFPR”