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Um prato de dignidade nas frias noites de Curitiba

Cerca de dez garfadas de comida são mastigadas sem pressa. Mais umas três e a tampa volta à marmita de isopor. A sobra será o café da manhã e o almoço do dia seguinte. Porém, o estacionar de alguns carros traz uma nova quentinha. Desta vez um pouco maior e, assim, também o jantar do próximo dia está garantido com arroz, feijão, macarrão, frango ao molho e legumes. Come-se ali mesmo, sentado na calçada fria. A refeição, que forra o estômago de oito viventes, serve ainda como meio de socialização, uma lembrança de como é estar vivo, ter uma família e um pouco de conforto. Na fria noite de sexta feira, 5° conforme o termômetro em frente à Rodoviária de Curitiba, grupos de ajuda humanitária distribuem comida, roupas e cobertores a pessoas em situação de rua. Vindos de diversas regiões do Centro da capital paranaense homens e mulheres dormem na calçada lateral do Mercado Municipal. Bem iluminado e fornecendo um pouco de proteção contra os ventos e chuva, o local serve como um “quarto coletivo” onde, mesmo de longe, há a lembrança de um ambiente familiar.

Por volta das 21h30 cerca de dez pessoas chegam ao Mercado Municipal. Dos carros saem sacolas cheias de comida e roupas. O grupo, que existe há dois anos e meio, leva o nome de “Rango de Rua”. Formado por voluntários de vários bairros de Curitiba ele tem o Mercado como ponto de partida nas noites de sexta, dia da semana em que os donativos reunidos pelo grupo são distribuídos. Antes deles, haviam passado pelo local a “Turma do coração aquecido” que, liderados por Mauro Zorzato, existe há 15 anos e distribui comida no Centro e em bairros da periferia, como a Vila Torres.

Entre os voluntários há homens e mulheres. Alguns bem jovens e que participam do projeto pela primeira vez. Entre eles um rapaz de blusa azul se destaca. Reúne todos e passa as instruções da noite. O tom da conversa é sério, com exceção de uma anedota sobre sua dificuldade em guardar o nome dos novos voluntários. “Andamos sempre em dupla, nunca aconteceu nada nas vezes em que distribuímos as marmitas, só uma moça teve o celular roubado, mas não por moradores de rua, e sim por um ladrão oportunista”, diz Fernando de Moraes, um dos coordenadores do Rango de Rua.

Fernando de Moraes é um dos organizadores do Rango de Rua

Fernando de Moraes é um dos organizadores do Rango de Rua

O jovem, de cavanhaque e cabelo bem penteado, pode aparentar ser apenas mais um que busca apenas aquecer a noite e encher o estômago de pessoas em situação de rua e voltar para a casa com a consciência de “dever cumprido”. Mas não é. Idealista ele toma a tarefa como um desafio. Algo que pode até começar com uma “simples” distribuição de donativos, mas que talvez termine na recuperação total de uma vida. “Nossa intenção não é apenas entregar marmitas e cobertores. Esse gesto é também uma maneira de nos aproximarmos das pessoas em situação de rua e dar outros tipos de assistência como ajuda-los a fazer documentos, dar entrada em aposentadoria, passagem para os que querem voltar para sua terra natal, encaminhamentos para clínicas de desintoxicação, entre outros”.

O Rango de Rua tem esse diferencial. Ao longo do tempo, o grupo conseguiu aposentar quatro idosos e transformar completamente a vida de mais três pessoas que definhavam pelas ruas de Curitiba. “Acompanhamos três ex moradores de rua que hoje trabalham, não bebem e não usam mais drogas. Conseguimos ajudar estas pessoas a se tratar, arrumar encaminhamento para emprego e assim eles hoje andam com as próprias pernas”, diz Moraes. Por passarem diversas vezes no mesmo lugar e, muitas vezes entrar em contato com as mesmas pessoas, os voluntários do Rango de Rua acabam estabelecendo um vínculo e assim ganhando a confiança dessa população. “Como criamos esse laço essas pessoas se aproximam e pedem ajuda que vai além de comida e roupas. Aí começamos a trabalhar nisso. Não temos vínculo com Ongs, instituições religiosas ou órgãos públicos. Não é fácil porque hoje alguém te pede uma ajuda e quando voltamos no local, no outro dia, por exemplo, não o encontramos mais”.

A ajuda prestada pelos voluntários é como uma mão que alcança o fundo do poço e tira de lá aqueles com maior pré-disposição para sair. Um dos ex moradores de rua que é acompanhado pelo grupo trabalha em um projeto que pode parecer impensável para alguém que vivia à margem da sociedade: Ele pretende abrir sua própria padaria. “Eu chorei”, conta Fernando sobre sua reação ao saber do progresso do hoje amigo.

Esperança X resignação

“As pessoas não saem das ruas porque não querem”. Esse clichê é comum, seja nas mesas de bares ou nosIMG_0358 comentários das redes sociais. Uma visão rasa que revela que o interlocutor só conhece uma coisa: A localização de seu próprio umbigo. As diversas razões que levam alguém a vagar pelas ruas não cabem em uma simples conversa, muito menos em uma simples reportagem. Marcio veio do Rio Grande do Sul para trabalhar como pintor na capital do Paraná. Quando chegou, há pouco mais de duas semanas, estava convencido de que conseguiria um adiantamento de salário para assim alugar um local para morar. Mas, já no primeiro dia de trabalho, teve uma desagradável surpresa. “O patrão me disse que dinheiro só duas vezes por mês. Assim, devo pegar grana somente semana que vêm”. Enquanto não tem dinheiro Marcio se encontra em situação de rua. Trabalha durante o dia e dorme na calçada do Mercado Municipal à noite. Educado ele oferece um pedaço de cobertor para que o repórter sente durante a entrevista. Visivelmente abatido pela situação em que vive ele tenta ser otimista. “Vai dar tudo certo. Na semana que vem eu pego dinheiro e saio da rua”. A família, que vive na capital gaúcha, não sabe de sua situação. “Não quero preocupa-los”.

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Todos os pertences de Seu Jurandir Francisco da Cruz, de 52 anos de idade, cabem em uma pequena mochila preta. Nela, ele leva blusas, calças, cuecas e meias. Nos bolsos estão seus documentos pessoais e a carteira de trabalho. No documento, e na comprovação de 35 anos de registro, ele deposita suas esperanças. “ Semana que vêm tenho uma entrevista na Cavo. Mais um ano de serviço e consigo me aposentar”. Seu Jurandir não dorme nas calçadas do Mercado Municipal. “Há 60 dias durmo sentado em um banco na Rodoviária. Lá é mais seguro, o difícil é a dor nas costas”, revela sobre o desconforto. Há muito tempo ele não dorme em uma cama, nem se lembra da última vez. Sobre a família ele diz que estão todos no céu. “Meus parentes estão todos hoje com Jesus. Agora é só eu e Deus”, completa.

Violência

Não é apenas proteção contra o vento e a chuva que muitos moradores de rua procuram ao dormir nas calçadas do Mercado Municipal. Muitos temem também a violência. “Eles colocaram fogo no coitado. Ele nem viu quem foi”, diz Seu Jurandir sobre a violência contra um homem em situação de rua no centro da capital em junho de 2014.

Casos do gênero têm ocorrido, em média, uma vez ao ano em Curitiba. Em 2012, Ygor Holowska foi atacado na rua Desembargador Ermelino de Leão e teve queimaduras de segundo grau no tórax e nas mãos. Em fevereiro de 2013, outro morador de rua foi queimado às margens do canal do Rio Belém, no bairro Centro Cívico.

Tiago Gonçalvez dormia na região do Alto da XV quando foi acordado por meio de chutes desferidos por coturnos pretos. Em meio aos golpes ele tentava se levantar. Conseguiu ver que os três agressores eram carecas, trajavam preto e tinham diversos piercings no rosto. “Eles queriam me matar, não apenas me dar uma surra”, conta. Na fuga caiu e machucou a perna. Foi salvo por um grupo de pessoas que viu a agressão e começou a gritar. “Nunca mais durmo sozinho. Hoje poso aqui, tenho medo de encontrar aqueles loucos de novo”.

Depois da agressão Tiago sente muitas dores na perna. Se antes, quando se encontrava melhor de saúde, já era difícil encontrar um emprego, hoje a situação piorou de vez. “Quase não consigo caminhar. Além disso, minhas roupas são sujas, eu cheiro mal e perdi dois dentes da frente. Acha que alguém vai me dar emprego? ”.

Marco zero da fome                                                                                             

Do Mercado Municipal os voluntários do Rango de Rua vão para a Praça Tiradentes, em frente à Catedral de Curitiba. Simone Gonçalves, professora aposentada do Estado, segue com o grupo. No Pálio de Simone vão cobertores e marmitas. O grupo preparou para a noite de sexta 120 marmitas e arrecadou 30 cobertores. Em uma casa alugada no bairro Boa Vista a comida começou a ser preparada às 17h. “Ajudei a fazer essa comida. É uma realização pessoal participar desse projeto. É uma energia incrível fazer algo de bom”, conta.

Dezenas de pessoas em situação de rua buscam donativos na Praça Tiradentes

Dezenas de pessoas em situação de rua buscam donativos na Praça Tiradentes

Na praça a quantidade de pessoas em situação de rua é enorme. Há vários grupos distribuindo donativos e algumas filas se formam para pegar marmitas. Entre os voluntários há alguns que entregam roupas, como dois estudantes universitários que arrecadaram calças e blusas entre os colegas de faculdade. As doações trazidas pelos jovens são muito bem-vindas. Algumas peças são experimentadas ali mesmo, em frente à Catedral. Paulo Silva ganha uma calça jeans. Ele não está em situação de rua, mas aproveita a noite de doações para diminuir as dificuldades impostas pelo dia a dia. Quem também não está em situação de rua é Dona Maria de Jesus. Sem familiares ela mora em um quarto cedido por uma família no Centro. Aos 60 anos caminha com dificuldade. Os passos curtos são resultado da artrite que a acomete há anos. A saia longa revela que é evangélica. Dona Maria quer um cobertor. “O quarto onde durmo é muito frio. Se eu conseguir um cobertor essa noite será melhor”. Na fila ela espera ansiosa. Parece uma criança prestes a conhecer o Papai Noel. E o presente tão esperado vêm. A senhora sai abraçada ao cobertor como uma menina que ganha sua primeira boneca.

E assim as doações continuam. A comida do Rango de Rua ainda vai matar a fome de outras dezenas de pessoas que, dependentes da caridade alheia, passarão o dia a penar, mas com a certeza de que em breve sua invisibilidade desaparecerá quando grupos de ações solidárias trouxerem um pouco de comida e dignidade ao Centro de Curitiba.

Como colaborar

O Movimento Nacional dos Moradores de Rua estima que existam mais de quatro mil pessoas perambulando pela capital. É possível diminuir a dificuldade dessa população colaborando com grupos como o Rango de Rua. As doações podem ser feitas por meio de roupas, cobertores, alimentos, dinheiro ou mesmo no trabalho voluntário durante a entrega dos donativos. O grupo pode ser contatado em sua Fan Page no Face Book:

https: //www.facebook.com/RangoDeRua?fref=ts

E a Turma do coração aquecido pode ser contatada também por meio do Face Book:  https://www.facebook.com/turmadozorza

About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.