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Um futuro para o presente

Coluna Encantamentos Poéticos 

Texto de Camila Grassi 

Um grande intelectual da educação paranaense e dedicado estudioso da formação humana disse, semana passada em uma live, a seguinte frase: todo ser humano necessita ter um futuro no presente.

Domingos Leite falava sobre os ataques à educação pública realizada por atores que representam o capital transnacional na política educacional dos últimos anos. Apesar de tocar em um tema muito específico, o eco da sua colocação continuou ecoando em mim por vários dias, mexendo no senti-pensar sobre o presente.

O mundo de incertezas que vivemos, antes mesmo da Pandemia, parecia já sufocar parte das forças do grupo social com maior potência para promover mudanças: a juventude. O vácuo do amanhã, não é uma simples perspectiva que fragiliza o presente. Ele tem retirado as forças de parte das pessoas que caminham ao lado de muitos de nós, reverberando no adoecimento emocional. É difícil sair ileso ao adoecimento da alma e do corpo que estamos submetidos na sociedade do presente.

A vida nos pede: ainda que o mundo nos negue, é preciso construir um futuro bonito e abundante no presente. A lógica neoliberal é, de diversas formas, uma cultura que parece sufocar os ares necessários para a produção de uma vida renovada. Ela anuncia no silêncio cotidiano de um mundo objetificado, que as pessoas são descartáveis assim como a vida e o futuro. Tende a tornar a vida e as relações algo usual e utilitarista, objetificando o ser humano.

São tempos em que, se não ouvirmos  a profundidade que os nossos corações nos trazem, corremos o risco de apenas viver a história dada, e não produzir a história. A história, como está dada no presente, não é uma história producente de vida. Produzir história é produzir futuro.

Laços sociais profundos, almoços de domingo com a família, amores com partilha para elaborarmos juntos nossas dores e sonhos, amigos que conhecem nossas almas apenas por um olhar, não são detalhes. São os troncos que sustentam a árvore da nossa vida. Sem laços sociais profundos, ainda que tenhamos condições materiais dignas de vida, nos tornaremos ansiosos pela incerteza de uma vida sem perspectiva de futuro.

Sem comunidade, o ser humano, enquanto bicho de bando, torna-se ansioso. A ansiedade se reverbera em palavras, em pensamentos e em ações. A ansiedade é, no fundo, um desejo de alcançar o futuro onde seja possível apenas contemplar a beleza do presente.

De alguma forma, essa busca parece indicar também que estamos buscando um sentido de comunidade. O bando é o nós. São nossos “eus” individuais somando para construir um espaço comum possível entre pares capazes de tornar a união em uma potência, a potência do “nós”. Apenas pelo fortalecimento de nosso eu individual e coletivo, que se torna possível a construção de um futuro seguro, digno e soberano. 

A ansiedade que sentimos generalizada em nosso eu coletivo hoje, parece ter um fundo de desejo: o desejo de ter um futuro no presente.

Sem um futuro no presente, corremos o risco de virarmos consumidores inssaciáveis e famintos. Uma fome de alma, que por vezes acha fuga no mundo das coisas.  Tendemos a nos apoiar a eventos pontuais como fermento motor da vida. E se algo não ocorre como desejamos, voltamos ao ponto de ansiar. Corremos ainda o risco de achar soluções simples para problemas e necessidades complexas, desviando nossa energia das construções que nosso ser realmente almeja.

Um futuro prospectado demanda que sonhemos juntos, demanda que possamos construir tempos e espaços comuns onde possa existir o “nós”.  Quanto mais profundos forem nossos laços sociais, mais possibilidades temos para construir um futuro no presente. Há ainda, nesta configuração, maiores chances de aprendermos uns com os outros e nos tornarmos melhores para nós, para aqueles que caminham conosco e para o mundo. O isolamento e a desconexão entre as pessoas por longo prazo nos mostra que a reclusão alongada é um dos caminhos mais efetivos para fragilizar o humano.

A conexão é curativa para os seres humanos, é em si humanizadora. É apenas pela conexão que pode nascer o amor e tudo aquilo que pode ser construído através dele.   Mobilizar nossas capacidades mais profundas de amar é uma necessidade de sobrevivência no presente. Apesar das incertezas de um mundo causador de medos, a coragem de amar, é certamente aquilo que precisamos mobilizar para sobreviver.

O amor seguido de prática, mostrou-se salvador de vidas em meio a pandemia. Ele é presença nos agricultores do MST que doam toda semana a maior parte de sua produção alimentar aos moradores das periferias das grandes cidades. Ele está nas pessoas que cozinharam neste dia as marmitas destinadas à população de rua, que triplicou em nossa cidade nos últimos meses. Ele está nas campanhas de solidariedade construídas pelo Movimento de Organização de Base em todo o Brasil, ele move a luta por vida digna.

O amor é a palavra primeira, a palavra mais corajosa e verdadeira. Nutridora da vida, carrega uma força mágica para aquele e aquela que com ele caminha.

O amor é uma construção social, que existe quando nos conectamos entre pares. É um elemento briófilo, ou seja, que nos dá potência de vida. Nada realmente grandioso pode ser construído isoladamente. Adaptar-se à incerteza é negar a própria natureza humana de produzir história. 

Fecho esse texto com um poema escrito ano passado em parceria com uma grande amiga numa tarde ensolarada. É em momentos como estes que somos capazes de construir um espaço comum onde existe o “nós”, lugar em que nos permitimos ser mais do que um e melhor que antes, através das trocas sociais que tecemos. Esse poema é um produto de um dos meus “nós’, feito em parceria com minha amiga-companheira de caminhada numa tarde de sábado.  Que possamos nos lembrar que não é apenas possível, mas necessário construirmos no presente os futuros que desejamos, uma vez que a história não acaba.

 

Corpos e almas incolonizáveis

Autoria: Carla Correia e Camila Grassi

 

CUIDADO

Tem uma força

Que opera silenciosa

A colonizar a vida.

 

Coloniza teu corpo

Teu rosto

Teu gosto

Tua lida.

 

Coloniza tua essência

Teu cheiro

Tua veste

Tua vivência.

 

O que saboreias

A conexão de tuas teias

O que há de pulsar em tuas veias!

 

FORTALEÇA

As almas incolonizáveis

Que encontrar no teu ciclo

As naturezas indomáveis dos pequeninos

Os corpos indomesticáveis dos dançarinos

As sementes intrangenicáveis dos campesinos

Os corações inrrompíveis do feminino.

 

CONSTRUA

Companheiras fiéis

Que fortaleçam teu caminho.

 

OLHE!

SINTA!

A força do amor

Que juntos e juntas

Estamos construindo.

 

 

 

About Camila Grassi

Camila Grassi Mendes de Faria é cientista, pedagoga e educadora popular. Encontra na poética um veículo particular de fruição das experiências senti-pensadas que advém do cotidiano e dos acúmulos de seu ofício profissional.