Coluna- Pão e Pedras: Amenidades e Poesia
O presente é um ponto. É a intersecção onde passado e futuro se encontram. O vento em meu rosto; a flor que cai; este verde; este azul; o ar em meus pulmões; a luz que penetra em meus olhos; um pensamento; uma voz. É a conjunção perfeita entre tempo e espaço, o que já foi e o que virá. Nele cabe toda a história, ele é a totalidade.
Este ponto – o presente – possui infinitas dimensões, infinitas perspectivas. O presente é a própria realidade. Realidade esta que é inatingível, pois o tempo escorre por entre minhas mãos e, basta um simples vislumbre e no mesmo instante…o presente se foi, já é passado. É a faísca que se apaga antes mesmo que a reconheçamos, é o canto do pássaro que não sei de onde vêm. É todo o peso da história, e das mudanças sucessivas no espaço que pesam sobre minhas costas neste instante. Instante que passou, mas que se reitera eternamente.
Cada ser vivo, ou morto, carrega diante de si tudo o que existe e, ao mesmo tempo, faz parte da carga que carrega sem perceber. O faz enquanto indivíduo e enquanto manada, coletivo. Eis o mundo, o eterno presente que não se cansa de começar-acabar a cada movimento do corpo.
Neste mesmo instante, milhares de indivíduos reais; materiais; vivos e mortos; interagem comigo e com tudo demais que existe. Eles não têm dimensão do passado, e a mim tampouco. Com isso criamos uma fronteira entre o racional e o irracional, o início e o fim, o bem e o mal, a civilização e a natureza.
Jogamos para o domínio do natural tudo aquilo que não compreendemos – lembremos que a totalidade; o presente é inatingível – todas as coisas que cremos existir desde sempre: o céu, o fogo, a vida, Deus. Esquecemos que tudo o que existe foi por nós concebido em algum momento do passado, socialmente reproduzido e transformado à fórceps em algo que existiu desde sempre.
Eis aqui que a ideia que se concebe do mundo real se concretiza. A abstração é real e o real é abstrato, e a naturalização de relações sociais, de modos de interpretar o mundo criam incêndios, sofrimento, morte, dor, classes sociais, fazendo com que todos os indivíduos humanos compreendam cada vez menos da totalidade em que vivem, enxergando-se como meros fragmentos de um todo que não concebem sequer a existência, jogando sobre si, enquanto indivíduos, todo o peso do processo social que o oprime.
A divisão entre homem e mulher, por exemplo, embora haja uma diferença biológica visível, foi só socialmente, a partir de condições materiais reais – divisão sexual do trabalho, etc. – que se estabeleceram as relações entre os sexos que hoje conhecemos. Não há uma diferença substancial entre um homem e uma mulher aos oito anos de idade – a não ser pelo fato de um ter um pênis e a outra uma vagina – em sua estrutura física. A diferença está nos comportamentos sociais outorgados a estes seres desde o seu nascimento: o rosa e o azul; a casinha e o futebol; etc., etc. A diferença física surge na diferença nas relações sociais de um e de outro pois, o homem realizando determinadas atividades durante sua vida, adapta seu corpo de tal forma a sua condição de vida que o faz ter uma maior massa muscular, testosterona, pelos mais abundantes por todo o corpo, etc.
Esta relação social, no entanto, é-nos vista como algo que sempre existiu, orgânica e natural. Esta forma binária de enxergar a sexualidade encontra problemas consideráveis quando homossexuais, transexuais, bissexuais e tantos outros “desvios” colocam-se em cena, não se encaixando na estrutura posta.
Com isso, podemos pensar que a própria ideia de “natureza” não é natural. Para os gregos, por exemplo, concebia-se a physis, o físico, tudo o que existe e do qual o ser humano seria parte integrante e em relação com todos os outros.
Portanto, para cada tempo histórico, com suas condições materiais e geográficas particulares faziam uma ideia diferente disso que hoje convencionamos chamar de natureza.
Voltando ao presente, ainda a título de exemplo, uma certa Ideia de “natureza se impõe através dos discursos ambientalistas difundidos aos quatro cantos do mundo pelas redes de televisão, rádios, jornais, discursos oficiais de líderes políticos e pelo boca-boca popular. Graças a esse discurso é possível expropriar uma comunidade quilombola de 300 anos para construir um resort sustentável, lucrar milhões com a compra e venda de créditos de carbono ou com a venda de produtos ecológicos. É possível deixar mais de 10 mil famílias sem teto para construir parques e ter uma resistência reduzida e massivo apoio popular em toda a metrópole.
Estas naturalizações, porém, são carregadas pelos indivíduos e por seus símbolos construídos em suas vivências particulares, se apresentando como uma escala de análise para entender a sociedade globalizada tal como a conhecemos. Em outras palavras, é necessário decifrar e intervir na cotidianidade das micro relações que se desenvolvem no urbano, e que carregam consigo/reproduzem também o discurso institucional globalizante.
Há uma linguagem cotidiana, coloquial, falada, livre, que se coloca nas relações interpessoais, e há uma linguagem institucional, formal, dura e supostamente neutra, propagada de maneira totalizante para realidades completamente distintas entre si. Os grandes jornais e veículos de mídia, por exemplo, apresentam uma realidade urbana muito específica dos grandes centros urbanos nacionais (São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília) de maneira a não distinguir as diferenças locais. Apesar disso, os habitantes de cidades menores, ou mesmo camponeses, indígenas, moradores das favelas, estranham esta linguagem, ao mesmo tempo em que se apropriam dela e a utilizam ao seu modo. A exclusão social que grande parte da humanidade vive corresponde necessariamente à busca da maior parte da população por um padrão de normalidade que é homem, adulto, macho, branco, citadino e consumista. Apesar de a maior parte das pessoas não se encaixarem neste padrão, a maioria delas é forçada a buscá-lo como referência para si e para suas famílias. É óbvio que este padrão nunca será alcançado, mesmo que estas pessoas passem a reprimir tudo o que são, seus potenciais e diferenciais para atingi-lo. A força que a mídia convencional tem sobre a subjetividade de crianças, jovens e adultos em todo o mundo é, no mínimo, avassaladora[1]. Nikolas Rose pensa a questão da seguinte maneira:
“As relações entre o poder e a subjetividade não estão, nessa perspectiva, confinadas às relações de constrangimento ou de repressão da liberdade do indivíduo. Na verdade, as características distintivas do conhecimento e da expertise modernas da psique têm a ver com seu papel na estimulação da subjetividade, promovendo a auto-inspeção e a autoconsciência, moldando desejos, buscando maximizar as capacidades intelectuais. Elas são fundamentais para a produção de indivíduos que estejam “livres para escolher”, cujas vidas se tornam válidas na medida em que estão imbuídos com sentimentos subjetivos de significativo prazer.”[2]
Neste sentido, podemos pensar que apesar da aparente escolha de identidade que o indivíduo tem para si mesmo, resta muito pouca margem de escolha pessoal de nossas ações quando esbarramos na identidade legitimada pelos outros. Esta ideologia, esta linguagem que é propagada age no indivíduo de maneira que este veja a si mesmo sempre como insuficiente diante do que lhe é imposto como “normal”. Este sempre se verá como muito gordo, muito baixo, muito negro, muito índio, muito mulher, muito pobre, muito incapaz, enfim, manteremos a nós mesmos sempre abaixo dos demais, exatamente como quer a hierarquia social estabelecida.
Assim podemos pensar, a partir da compreensão dos meios de comunicação como técnica e de suas relações com o território na formação e na expansão das cidades entre outros fenômenos sociais, que as redes comunicacionais tiveram e ainda têm o papel de levar informação e entretenimento a milhões domicílios, algo impensado até meados do século XX. O poder dos meios de comunicação em se apropriar de representações de espaço em escalas pequenas e realizar ações que visualizem uma representação imposta em grandes escalas[3], associa-se com uma conformação de redes, reforçando um movimento de integração do território nacional (não só o brasileiro), evidenciando aqui a concentração da produção de conteúdo midiático e seus fins ideológicos e estratégicos. Os resultados das eleições no Brasil e nos Estados Unidos, assim como o do plebiscito sobre a saído do Reino Unido da União Europeia, são ilustrações bastante claras de como a comunicação de massa determina opções de um grande número de pessoas que, aparentemente, as fizeram em absoluta liberdade de escolha.
Para Milton Santos[4] os espaços podem ser requalificados, resignificados, atendendo sobretudo aos interesses dos atores hegemônicos da economia, da cultura e da política e ser incorporados plenamente às novas correntes mundiais. A técnica é a cara geográfica da globalização, e tende a ser universalizante. O que Karl Marx diz em A Ideologia Alemã, quando afirma que a ideologia dominante é a ideologia das classes dominantes, permanece atual em tempos de redes sociais.
Então como, nesse contexto da globalização, da aceleração das atividades, disseminação de conteúdos em uma velocidade extremamente alta, criar um espaço de real comunicação entre os indivíduos? Esta pode aparecer como uma opção importante frente a ideia de humanidade que se impõe a milhares de jovens e adolescentes, adultos e velhos, todos ao mesmo tempo. É necessário recriar a técnica, ou utilizá-la ao nosso favor. Não se trata de acabar com a comunicação de massa. Nosso trabalho é inverter o sentido destas armas, e apontá-las em direção aos nossos inimigos, agora no poder.
[1] FOUCAULT, M. Conferência I. In:______. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2002.
[2] MEYER, J.(1986) apud ROSE, Nikolas. Governando a alma: a formação do eu privado. In: SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Liberdades Reguladas. Petrópolis: Vozes, 1988.
[3] SERPA, Angelo. Lugar e Mídia, Editora Contexto, São Paulo 2011.
[4] SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço, EDUSP, São Paulo, 2012.