A cerca de 350 quilômetros de Curitiba um conflito armado está prestes a acontecer. E ele envolve centenas de famílias indígenas da etnia Kaingang. Trata-se de uma disputa que se desenrola na Terra Indígena Ivaí, que fica encravada entre os municípios de Pitanga e Manoel Ribas, na região central do Paraná.
No último mês de março de 2024, centenas de famílias Kaingangs abandonaram a Aldeia Ivaí, que fica na Terra Indígena Ivaí. Elas migraram para Pitanga, cidade vizinha, onde criaram uma nova aldeia batizada com o nome de “Serrinha”. E esse movimento migratório, que fez com que mais de 30% dos Kaingangs abandonassem a aldeia onde viveram por décadas, tem relação direta com a violência na região.
O conflito em questão envolve as duas aldeias, Ivaí e Serrinha, e tem relação com o plantio de áreas agricultáveis e também com o arrendamento das terras indígenas, prática proibida por lei, mas que acontece na região deste 2005.
A Terra Indígena Ivaí tem 7.306,35 hectares. Destes, cerca de 900 alqueires são arrendados todo ano para o plantio de soja, trigo, milho, entre outras monoculturas. Uma prática que rende mais de R$ 1 milhão todos os anos para a Associação Comunitária Indígena Ivaí (Aciva), entidade criada em 2005 e que é a responsável por administrar o dinheiro de parte do arrendamento. A Aciva surgiu por meio de um grupo de lideranças e é ela que administra boa parte das terras que são arrendadas.
Com a divisão das aldeias, no entanto, a Aldeia Serrinha ficou com significativa parcela dos alqueires usados para plantio e também arrendamento. Agora, conforme destaca o cacique da nova aldeia, Valmir Oliveira, as lideranças da Aldeia Ivaí estão fazendo ameaças e prometendo invadir a área pertencente à Serrinha para realizar plantio e arrendamento. “Estamos sendo ameaçados aqui e nem o Ministério Público, nem a Funai está nos ajudando. A situação está bem complicada, as lideranças da Aldeia Ivaí estão ameaçando invadir a nossa aldeia, a coisa tá bem tensa aqui”, revela o cacique.
E a situação ficou pior quando um indígena da Aldeia Ivaí foi preso na cadeia da Aldeia Serrinha acusado de “espionagem”.
Antes, no dia 25/09 as lideranças da Aldeia Serrinha acionaram a Polícia Militar relatando que três indígenas vieram da outra aldeia e começaram a fazer fotos do local sem nenhuma explicação ou motivo aparente.
Por esse motivo, houve desentendimento e o cacique Valmir os prendeu e solicitou a presença da equipe policial. Diante disso, os policiais militares entraram em contato com a Polícia Federal (PF) por meio da delegada de plantão. A delegada orientou a equipe policial, que deveria mantê-la informada de eventuais desdobramentos. Ainda de acordo com relato policial, a delegada teria informado aos policiais militares, que a PF possui efetivo reduzido na Delegacia de Guarapuava, o que dificultaria um atendimento para a situação.
Histórico de conflitos e omissão do poder público
Há mais de um ano o Parágrafo 2 acompanha a violência imposta na região pelo arrendamento das terras indígenas para o cultivo de soja e outras monoculturas.
O Parágrafo 2 teve acesso a esse conflito em março de 2023, quando um menino de 10 foi anos estraçalhado por uma colheitadeira dentro da Aldeia Ivaí. A partir deste episódio, uma investigação levou a reportagem a descobrir uma série de assassinatos, agressões, mortes misteriosas, corrupção e atuação de grupos de milícia na Terra Indígena Ivaí.
A cronologia regressiva nos levou ao ano de 2005, quando o então cacique da Aldeia começou a arrendar terras indígenas para que não indígenas cultivassem soja e milho. Desde então, um conflito interno afeta toda a comunidade e desafia as várias esferas do poder público.
O arrendamento das terras indígenas tem perpetuado um grupo de lideranças no poder, além de influenciar eleições municipais, enriquecer grandes cooperativas e submeter a comunidade local a uma rotina de violência e pobreza.
A primeira reportagem da série pode ser lida neste link:
A segunda neste:
E a terceira neste:
Além de o arrendamento de terras gerar cerca de R$ 1 milhão por ano, os alqueires cultivados por indígenas também geram lucro. Mesmo assim, a maioria dos kaingangs da Terra Indígena Ivaí vive na pobreza. Sua principal renda vem de programas sociais como o Bolsa Família. Em agosto de 2022, segundo a prefeitura municipal de Manoel Ribas, 549 famílias da aldeia estavam inseridas no Cadastro Único (CadÚnico) do governo federal e 396 recebiam o Auxílio Brasil. E a subsistência é garantida também pela venda de artesanato em outras cidades do estado, incluindo Curitiba. Existem ainda os que trabalham em Manoel Ribas e aqueles que têm seu punhado de terra.
E essa miséria é causada pela concentração de renda das lideranças da Aldeia Ivaí, incluindo o cacique e o vice cacique. São eles que dominam o plantio, fecham acordo de arredamentos com agricultores da região e concentram o lucro na Associação Indígena. As demais famílias pouco se favorecem com o plantio da soja e de outras culturas.
Quem ganha também são comerciantes e políticos da região, como explica Roberto Antônio Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Sul. “Nos últimos anos, alguns caciques e lideranças passaram a negociar internamente a terra e se apoderar de todas as áreas produtivas, especialmente nas reservas indígenas. E essas pessoas, ligadas ao cacicado, é que fazem as intermediações do arrendamento com os produtores. Como o poder público começou a intervir fortemente para combater essa prática, houve, especialmente aqui no Sul do país, tentativas de negociação com a Funai e esses grupos para criar, no âmbito das comunidades, cooperativas e associações para gerir os arrendamentos. Mas essas cooperativas servem para burlar a lei”.
O indigenista enfatiza que os arrendamentos compõem um ambiente extremamente conflituoso. Primeiro por razões econômicas, os grupos de poder interno querem se consolidar no domínio da terra, e para isso excluem os demais e não permitem que tenham acesso às lavouras. Isso gera uma série de contestações e revoltas, se refletindo em violência. Aqueles que se rebelam contra o arrendamento costumam ser perseguidos, há muitos registros de espancamento, tortura, encarceramento e assassinatos. Muitas famílias são expulsas das reservas.
Mas há outras violências embutidas no arrendamento, conforme destaca Roberto. “Essa prática, que concentra as terras em poder das lideranças, gera a exclusão, a marginalização, a fome, a pobreza. Assim, em comunidades indígenas com bom potencial de produtividade econômica, existem famílias que não conseguem plantar um pé de mandioca porque elas não têm terra pra isso. Todo o controle das terras, da produção e dos recursos está na mão de grupos internos e externos, dos poderes inclusive locais”, diz o indigenista.
Na Aldeia Serrinha, os indígenas reclamam de omissão do poder público. A região já foi visitada, por exemplo, pelo Ministério Público do Paraná no dia 08 de maio de 2024. O MP organizou uma reunião da qual participaram o promotor de Justiça da Comarca de Pitanga, o coordenador da Fundação Nacional do Índio (Funai) no Paraná e lideranças das duas aldeias.
Na ocasião, foi ressaltada a necessidade de uma convivência pacífica entre as duas aldeias. Mas na prática, a tensão tem crescido e os indígenas cobram uma atuação mais incisiva da FUNAI, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal. “A gente precisa que eles venham aqui e organizem o plantio, que definam a área que cada aldeia vai plantar. Se não a coisa pode ficar bem complicada e um conflito grave pode acontecer”, avisa o cacique Valmir.
O Parágrafo 2 procurou as assessorias de imprensa da FUNAI, do Ministério Público Federal e da Polícia Federal pedindo uma posição sobre o conflito. Mas estes órgãos não responderam à reportagem.
Também pedimos uma posição da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), mas também não tivemos retorno.
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