Foto: Francisco Herochi
Coluna Encantamentos Poéticos
Autoria: Camila Grassi e Liz Meira Góes*
Os dias de risco à vida humana trazem atenção tanto à vida lá de fora como para a vida que pulsa dentro de cada um nós. Nestes tempos somos levados a realizar esse encontro, nos conectamos como parte de um todo. Dele, são trazidos a luz do dia e dos sonhos da noite, mensagens singelas sobre um necessário renascimento. As mensagens que chegam a nós sobre o repensar da própria vida são muitas: elas vêm por meio dos seres que vivem no ar, na terra e na água, elas vem sendo ditas de muitos lugares e de várias maneiras.
Na cidade de Curitiba, com a ausência dos carros e o aparecimento do céu mais azul que já se pode avistar, pôde-se apreciar em uma só semana três casais de ave de rapina que nem sempre vemos por aqui. Um casal de gaviões carijó, que com seu canto estridente de rapina acordou numa manhã de domingo os moradores do bairro Cristo Rei; um casal de falcões quiri-quiri que cantavam ao caçar pequenos animais no bairro do Alto da Glória; e um casal de carcarás, também avistados voando baixo, deslizando sobre os prédios silenciosos com sua grandeza, bem no centro da cidade.
Outros eventos marcaram os dias de isolamento no território paranaense. A presença de uma harpia foi percebida nas matas do interior do Paraná, e noticiada com fotos pelos jornais. Uma ave de rapina de grande porte considerada em extinção, cujo último registro de aparição ocorreu apenas no começo do século passado, apesar de estar simbolizada no brasão do estado do Paraná. A colonização, com sua monocultura (da mente e da vida), trouxe o progresso do desmatamento, produzindo a imensidão de um deserto verde. A harpia nunca mais havia sido avistada, animal de topo de cadeia, habita as regiões de grandes áreas florestais. Seria a paz da ausência humana nas ruas que a teria trazido aos céus dessa terra novamente? Ou foi a paciência de um olhar desacelerado do momento pandêmico que permitiu ao ser humano poder admirá-la? Que mensagem o “céu” paranaense nos traz nestes dias? Que mensagem nossa sensibilidade traz ao “ouvi-la”?
Nestes dias de breve passado e inteiro presente, até mesmo as águas doces e salgadas de nosso planeta também nos comunicam à sua maneira. Os rios que já foram potentes e límpidos outrora e que vemos poluídos margeando as cidades, com a ausência de parte da poluição humana, muitos voltaram a ter vida. O noticiário celebrou até mesmo as águas que banham o mar do Caribe. Nele, a vida marinha luminescente reapareceu na beira das praias, após de 60 dias inabitada.
O silêncio dos carros nas ruas das cidades inclusive fez uma pausa na retirada das entranhas da Terra: navios petroleiros ficaram “encalhados” aguardando para poder descarregar quando houvesse demanda. De onde vem todo o plástico que polui o planeta, de onde vem todo combustível que polui o ar, houve uma pausa na exploração. O ar ficou mais limpo do que nunca, inclusive próximo aos grandes arranha-céus.
Apesar desses efeitos, o Paraná vive a maior estiagem de abastecimento hídrico dos últimos trinta anos. Parte dos rios flutuantes que evaporaram da Amazônia para o sul do país tem diminuído muito por conta das queimadas na Amazônia, realizada no ano passado e que continuam ocorrendo esse ano. Como dizem as lideranças indígenas e ambientalistas “os garimpeiros, madeireiros e grileiros não estão em quarentena”. O avanço contínuo do agronegócio e mineradoras nos últimos anos combinado ao desmatamento, agrava a escassez das chuvas. Os jornais já apontam para a possibilidade de falta de água na capital em meio a pandemia.
Há duas sínteses que podemos extrair desse conjunto de elementos: a primeira é que sem floresta não há água e sem água não há vida. A segunda, é que toda a vida extra-humana da Terra, respira melhor com a ausência da devastação que tem sido aceita por uma parcela grande da humanidade. A natureza não precisa de nós, nós é que precisamos dela para viver.
Outro elemento importante nesta quarentena foi a produção de um texto realizada por Ailton Krenak, importante intelectual indígena e ambientalista que publicou o livro intitulado “O amanhã não está a venda” no qual aponta para a necessidade de transcendermos a concepção antropocêntrica de vida na Terra, arraigada na relação de dominação da natureza pelo homem. Em sua obra, elenca um conjunto de elementos que apontam que se não a superarmos, estaremos condenados a extinção. É, portanto, uma necessidade histórica que certa parcela da humanidade, nós, moradores dos grandes centros, possamos aprender junto aos povos indígenas outras formas de nos relacionar com a natureza, já que somos parte dela.
A pergunta que temos feito nestes dias é: se somente uma parcela da humanidade tem garantido os direitos humanos, como poderemos coletivamente considerar a natureza como um ser igual a qual merece nosso respeito? Como garantir os direitos da natureza se a colocamos historicamente como elemento a ser dominado, explorado, fatiado e privatizado? Como garanti-la em tempos de grandes injustiças sociais e ambientais?
Fazemos parte de uma história em que desumanizamos uns aos outros e colonizamos, matamos, destruímos os saberes. Realizamos isso através de decretos viabilizados pelo poder Estatal, pelo olhar colonizado que deseja extrair toda e qualquer diversidade. Matamos uns aos outros com olhares, palavras, armas, mentiras contadas de geração em geração. Nos desumanizamos uns aos outros na forma pela qual nos relacionamos. Descartamos e humilhamos seres da mesma espécie por sua crença religiosa, raça, orientação sexual, origem, posição social e pela hierarquia presente nas relações de poder. Há um ímpeto colonizador produtor da morte que habita silencioso em boa parte de nós, e que nascido de uma cultura autoritária, goza com o extermínio da diversidade cultural, natural e humana da qual fazemos parte.
Adoramos a padronização da vida e das formas de viver. Achamos correto o avanço do processo colonizador que expande a muitos uma sociedade doente de pessoas adoecidas. Promovemos o ódio e o assédio moral ao diverso, matamos mulheres com quem temos relações amorosas, dizendo amá-las. Assassinamos lideranças indígenas que têm como relação profunda não a propriedade da natureza, mas sim o uso comum e comunitário de territórios sagrados, permeado por seres não humanos que são respeitados. Como diz a liderança Casé Angatu Xukuru Tupinambá “Não estamos defendendo a natureza, somos a natureza se defendendo”.
Desumanizamos através da educação, os filhos da nossa própria espécie. Se negamos o direito coletivo à uma vida digna e segura para os nossos, como poderemos assegurar o direito comum de vida da própria natureza e de todas as formas de vida que dela fazem parte?
Eis o verdadeiro desafio para a nossa geração: valorizar o que herdamos de melhor das gerações passadas e construir no presente e no futuro uma nova forma de viver, capaz de assegurar os direitos do ser humano e da natureza da qual somos parte.
Isso demanda que quebremos a ignorância, a contra-formação, o apagamento da memória imposta à maioria da população. É preciso desconstruir na prática a razão fria sob a qual estamos submetidos. Isso demanda que comecemos a sentir, que coracionemos juntos a vida. Parte de nós vive sob um mundo sedento de amor e sua falta é como a ausência das florestas: faz secar as águas que dão vida ao nosso interior.
Sobre o semear deste novo sentir-pensar da produção da vida, o isolamento social tem muito a nos ensinar. Por conta dele, muitas pessoas passaram a comprar alimentos de produtores locais em vez de comprá-los de grandes corporações que abastecem os grandes mercados. Muitos de nós passou a praticar a solidariedade mútua, a qual diverge substancialmente do conceito clássico, individualista, elitista e vaidoso de caridade. Pela necessidade, a solidariedade nos fez perceber como somos entes interdependentes. Evidenciou-se que somos mais que indivíduos: somos uma sociedade e cada ação tomada por um, interfere diretamente na vida deste conjunto do qual fazemos parte.
Eis o verdadeiro desafio para a nossa geração: valorizar o que herdamos de melhor das gerações passadas e construir no presente e no futuro uma nova forma de viver, capaz de assegurar os direitos do ser humano e da natureza da qual somos parte.
Outro movimento interessante foi o despertar de uma parte importante da população brasileira sobre os riscos a vida coletiva que a adesão cega a um líder pode promover. A identificação e a admiração ao perfil autoritário que aprendemos desde a infância por métodos também autoritários de educação, fez com que muitos brasileiros não tivessem a capacidade de compreender a entrada do país em um regime fascista, que se assenta não apenas na política, mas na cultura produzida e fortalecida por parte da mídia e por veículos de conectividade digital. Fomos forçados pelas circunstâncias concretas da realidade em enxergar os traços autoritários e de limitação das capacidades intelectuais e emocionais que existe em cada um de nós.
Neste sentido, a Pandemia pode sim, ser considerada para muitos de nós, um período de renascimento. Ele o é também, para a natureza e a biodiversidade que nos compõe. Que abandonemos a monocultura da mente, que acolhamos os modos de vidas indígenas como exemplos de vida diversa e coletiva. Poderíamos ver nascer em nós criações de uma nova vida pautada na diversidade, nos unindo a luta indígena desde os nossos pequenos atos que envolvem a vida individual, até os maiores atos coletivos, que compõe nossa vida pública. Como bem alerta Ailton Krenak “a pandemia veio para dar um choque de realidade nas pessoas, porque só os humanos tiveram que parar e observar que a natureza ao nosso redor está celebrando nossa parada”.
Quem sabe pela compreensão profunda do presente e do passado e com o anúncio de um futuro mais curativo para os seres humanos e a natureza, possamos fazer, como nos diz Paulo Freire: o anúncio de um recomeço fortalecedor das diferentes formas de vida.
*Liz Meira Góes é bióloga, educadora popular e doutoranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento. Apoiadora do Coletivo de Jovens – Kunumingue e Kunhataingue Mbya Kuery Araxa’í.
*Camila Grassi Mendes de Faria cientista, pedagoga e educadora popular. Atua como pesquisadora no grupo de pesquisa EM-Pesquisa e no Observatório do Ensino Medio-UFPR.