Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia
A polícia tem uma função social importantíssima para a sociedade em que vivemos: a de servir e proteger. Ouso dizer que esta corporação a cumpre com a maior eficiência possível, e se notarmos os recentes acontecimentos envolvendo-a no Brasil, esta verdade é praticamente inquestionável.
Muito antes da repressão policial nas favelas, uma parte das comunidades humanas que viviam gens, que eram comunidades familiares autossuficientes e autogeridas, onde as decisões coletivas eram tomadas por meio de assembleias conduzidas pelo Pater, o patriarca da comunidade. Na época a família tinha uma estrutura totalmente diferente da que conhecemos, todas as crianças eram filhos de todos os adultos que ali viviam, pois tudo pertencia a todos e não havia o que hoje chamamos de herança. Com o crescimento das atividades comerciais e a imposição da propriedade privada alguns homens passaram a acumular riquezas e, por isso, possuir mais bens e poder por se apropriarem privadamente do que antes era coletivo por meio da força e da violência. Daí começam a aparecer o que hoje conhecemos como classes sociais: ricos e pobres, exploradores e explorados, aqueles que tinham que trabalhar e aqueles que não mais precisavam disso. A família que hoje conhecemos, onde o pai é o dono da mulher e dos filhos, surge da necessidade destes novos ricos de transmitirem suas riquezas aos herdeiros, aprisionando seus todos bens dentro de seu núcleo familiar. É da estrutura familiar paternalista que surgem as primeiras formas de Estado na humanidade, e com isso as primeiras corporações deste mesmo Estado.
Era óbvio que aquelas pessoas que não foram beneficiadas com a criação da propriedade privada, a imensa maioria que foi forçada a trabalhar para sobreviver e sustentar uma classe poderosa que tinha em torno de si a maior parte da riqueza não iriam aceitar caladas que alguns vivessem na bonança enquanto todos os outros eram destituídos dos meios de produção e de sobrevivência. Rebeliões se espalharam e foi necessária a organização de uma instituição que controlasse as classes mais baixas, para que estas não tomassem à força a riqueza que lhe foi tomada. Eis que surge a nossa saudosa corporação: a polícia.
Surge então na Grécia antiga para que os milhares de esfomeados fossem mantidos sob controle, e que não ousassem ir contra o novo modelo social que lhes foi outorgado. A polícia surge junto com a propriedade privada, para reprimir a ira dos pobres. Mas para os valores da época, esta era uma profissão tão indigna que ninguém se submetia a fazê-la. O Estado nascente começa a organizar campanhas de guerra com o objetivo de capturar escravos para exercer esta humilhante função.
Recontar esta história da maneira tosca que fiz aqui serve para ver qual é, desde as origens, o caráter desta instituição tão defendida pelas grandes mídias do poder enquanto mata, extermina e encarcera espacialmente os negros e negras das periferias deste país, ao mesmo tempo em que reprime com extrema violência manifestações da revolta popular, conforme pudemos comprovar pelo episódio do Massacre da favela do Pinheirinho, em São José dos Campos-SP, onde mil e quinhentas famílias foram expulsas de forma violenta (incluindo relatos de diversos homicídios e estupros realizados pela polícia) de um terreno ocupado por oito anos e alegadamente pertencente ao especulador Naji Nahas.
A polícia aqui contrata pobres, miseráveis e desesperados que, por um salário um pouco maior que o da média da população se submetem à qualquer ordem sem questioná-la, aqueles que por necessidade econômica submetem-se a uma lavagem cerebral que lhes introduz toda uma série de preconceitos que acabam por virar estes indivíduos contra a classe a qual pertencem. A polícia no Brasil surge para organizar os capitães do mato que eram em sua maioria negros, para a captura de escravos fugitivos e na repressão daqueles escravos que organizavam a resistência contra o cativeiro. Qualquer semelhança com a forma de agir de hoje da polícia não é mera coincidência, pois os policiais, que no Brasil são militares, continuam por aqui como sempre: submissos e mal pagos. Não à toa, não são incomuns os relatos de militares que durante o processo de treinamento, tenham sofrido tortura. A matéria da BBC de 5 de Janeiro de 2016 intitulada “’Rituais de sofrimento’ em treinamento alimentam a violência policial, diz capitão da PM” retrata um ambiente onde é comum a “privação do sono, pauladas, tarefas em salas impregnadas de gás lacrimogêneo e pimenta, almoço misturado com água e consumido com as mãos imundas de terra e pus e assédio moral realizado por superiores”. Os índices de doenças mentais nas corporações militares brasileiras são altíssimos.
Mas, como eu disse no início deste texto, a polícia cumpre como ninguém o seu papel de servir e proteger. Mas cabe-nos perguntar, servir e proteger o que? De quem? Serve aos privilegiados capitalistas que detém o poder e os meios de produção, protegendo estes da revolta dos esfarrapados, miseráveis e esfomeados que nada possuem além de si mesmos e sua capacidade de trabalhar. Aos negros e pobres das regiões periféricas resta a morte, a humilhação e a prisão. Temos a quarta maior população carcerária do mundo, composta em sua imensa maioria por jovens de 18 à 29 anos que não completaram o Ensino Fundamental e negros. Devíamos olhar para as nossas prisões com a mesma vergonha com que olhamos para os navios negreiros na época da escravidão. A polícia militar, junto à uma mídia policialesca que justifica esta violência policial – lembremos do apresentador Marcelo Resende comemorando a morte de um rapaz em uma moto perseguido por um agente da Polícia Militar de São Paulo – são responsáveis diretas e parte essencial na manutenção desta situação violenta e desigual de nosso país.
Polícia para quem precisa! Quem precisa?