Texto José Pires
Fotos: Everton Mossato
A fala no título desta matéria dá uma dimensão da relação que os agentes da Saúde Indígena têm com os povos para os quais prestam atendimento. Paulo Rogério Ferreira é enfermeiro da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e trabalha na Aldeia Mococa, município dos Campos Gerais Paranaenses. Desde o dia 08/04 ele está acampado ao lado de outros agentes de saúde e também de indígenas na sede da Sesai, na Vila Izabel, em Curitiba. Dormindo em uma barraca ele espera, sob intensa incerteza, o desfecho que porá fim ao suplício de três meses sem receber salário. Em janeiro, o Ministério da Saúde decidiu paralisar os contratos da Sesai, com cinco das oito entidades conveniadas que prestam atendimento à população indígena em todo o país. No mês passado, as outras três ONGs tiveram seus pagamentos suspensos. Assim, 13 mil trabalhadores, sendo 57% deles indígenas, estão sem salários. Quase oito mil não receberam nenhum pagamento neste ano, segundo o Sindicato dos Profissionais e Trabalhadores da Saúde Indígena, o Sindcopsi. Quase 800 mil indígenas estão sem atendimento.
A greve deflagrada pelos agentes da Saúde Indígena é mais um capítulo de intensas ofensivas do Ministério da Saúde contra esse atendimento diferenciado ofertado aos povos originários. Há menos de um mês o chefe da pasta, Luiz Henrique Mandetta, pretendia extinguir a Sesai e transferir a responsabilidade pelo atendimento de saúde dos indígenas do país para estados e municípios. Depois de diversos protestos e ocupações, o ministro desistiu. No dia 28 de março, o governo informou que decidiu, junto com lideranças indígenas, manter o funcionamento da Sesai e criar um grupo de trabalho para discutir a assistência e a fiscalização dos recursos. No entanto, os salários dos agentes, que incluem enfermeiros, técnicos de enfermagem e médicos (com exceção dos que participam do Mais Médicos e têm recebido em dia), estão atrasados há três meses, o que obrigou os profissionais a paralisarem as atividades.
Paulo é um exemplo de quanto o trabalho realizado pelos agentes de saúde nas aldeias transpassa a relação comum entre atendente e atendido. Ele atua no Polo de Londrina, que é responsável por oito aldeias. Percorre mais de 120 km de estrada de terra para chegar a uma delas. Lá, entre os Kaingangs da Aldeia Mococa, estabeleceu um vínculo de confiança que supera portarias, discursos odiosos, ou interesses do Agronegócio.
Esse elo, crucial para o trabalho dos agentes, é profundo. Paulo conhece as demandas de cada paciente. Essa relação faz com que ele tire dúvidas dos indígenas por telefone a mais de 100 km de distância, mesmo tarde da noite. Que seja consultado por uma mãe que recebe o duro diagnóstico médico de que o coração do feto que carrega no ventre parou de bater.
– Paulo, o médico me disse que o coração do meu filho não bate, e que não tem comoc ele sobreviver. Disse que precisa urgente de cirurgia pra retirar o feto, o que faço?
Pergunta a indígena que possuí um diploma acadêmico. Que recebe o veredito de um especialista, mas que sente a necessidade de consultar o enfermeiro da aldeia, um não indígena que goza, depois de muita dedicação, de grande prestígio entre os Kaingangs.
Os agentes de saúde, parte não indígenas e parte indígenas, sendo estes últimos uma ligação importante no respeito às tradições e também na superação das barreiras impostas pelos idiomas, são de fundamental importância para o bem-estar dessa população.
A Saúde Indígena é complexa em sua natureza. O nascimento de uma criança, por exemplo, é um acontecimento cercado de rituais em muitas etnias. Desde ritos envolvendo a placenta, até a amamentação feita por mais de uma indígena, a cultura dos 305 povos originários espalhados pelo país é imensa em suas especificidades. “O atendimento em Saúde Indígena é diferenciado, tem gente que não acredita só porque a aldeia é próxima do município e, assim, muitos acham que os indígenas já estão completamente imersos na cultura dos não indígenas e isso não é verdade. Existe uma valorização das culturas por parte dos descendentes de poloneses, ucranianos, entre outros. Com os indígenas não é diferente, eles lutam pra manter sua cultura viva, assim como os imigrantes eles também têm orgulho em falar de seus antepassados”, diz Paulo.
O trabalho dos agentes da saúde indígena leva atendimento a povos que vivem a centenas de quilômetros de uma Unidade Básica de Saúde. A presença de enfermeiros, técnicos de enfermagem e médicos não se limita apenas ao atendimento primário, mas também na continuidade de tratamentos. “Muitos deles têm dificuldade em tomar remédios na hora certa ou na quantidade certa, por isso estamos sempre perguntando e cobrando”. A paralisação dos trabalhos da Sesai afeta principalmente crianças e idosos, muitos com doenças crônicas como Diabetes ou Hipertensão. Campanhas de vacinação como a contra a Gripe também não estão acontecendo. Tal quadro pode se refletir em muitas mortes. Há pacientes acamados, que carecem de atendimento contínuo, muitos precisam ser deslocados constantemente para tratamentos fora das aldeias.
A presença dos agentes da Sesai não traz apenas remédios e receitas médicas, mas tratamento digno e afetivo. E essa relação é tão forte a ponto de indígenas oferecem o que lhes é mais caro na esperança de manter estes trabalhadores em sua aldeia. “Um indígena, vítima de alcoolismo, me abordou certa vez e perguntou se eu não trabalharia mais lá, porque sua mãe e sua irmã tinham dito isso. Respondi que continuaria sim. Ao que ele me disse que prometia parar de beber se eu não fosse embora. Ou seja, ele oferecia o que lhe era mais difícil, deixar a bebida, para que eu continuasse a trabalhar na aldeia”, desabafa Paulo, enquanto tenta em vão engolir o choro.
Carência e mortalidade
O Relatório “Violência Contra Povos Indígenas no Brasil” constatou que 735 crianças indígenas menores de 5 anos vieram a óbito em 2016. Em comparação com o ano de 2015, em que o índice foi de 599 mortes, houve um crescimento de 22,7%.
Entre as principais causas prováveis das mortes estão pneumonia e gastroenterite de origem infecciosa; pneumonia não especificada; septicemia não especificada; morte sem assistência; desnutrição proteico-calórica grave não especificada; entre outras causas mal definidas e não especificadas. O estudo ainda revela que, apesar da falta de maiores informações sobre as mortes dessas crianças, o próprio órgão oficial reconhece mortes por falta de assistência e desnutrição grave. “Dentro das comunidades indígenas trabalhamos com população carente. Com taxas de mortalidade infantil alta quando comparada ao restante da população do país. Isso nos dá uma responsabilidade emocional enorme, quando acompanhamos uma gestante a gente pensa ‘meu Deus, não podemos perder essa criança’, diz o enfermeiro, e completa “se uma criança indígena morre, eu morro junto, de forma lenta e dolorosa”.
Três meses de contas atrasadas e incertezas
Jaqueline Kuita Rodrigues, enfermeira da etnia Kaingang, trabalha na Casa da Saúde Indígena (Casai) de Curitiba. Jaqueline está com o fornecimento de água cortada, devendo pro banco e sem condições de ir trabalhar já que precisa pagar o deslocamento do próprio bolso. Tudo isso é reflexo dos três meses sem salário. “O Ministro está investigando o contrato com as fornecedoras de serviço e enquanto não estiver tudo regular não fará o repasse. Mas é nós, não temos culpa disso. Os atendimentos não podem parar. As mortes vão aumentar, sabemos que vão. Existem pacientes crônicos, que precisam de atendimento todos os dias, principalmente os idosos e as crianças. Temos crianças com baixo peso nas quais fazemos atendimentos diários, trabalho de nutrição. Agora teve início a campanha de vacinação contra a Gripe e está tudo parado. Precisamos de uma garantia, não apenas dos salários atrasados”, desabafa.
A Saúde Indígena
O subsistema de saúde indígena do Sistema Único de Saúde era gerido pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), que, durante anos, foi alvo de denúncias ligadas a corrupção e deficiências no atendimento. O movimento indígena lutou para que a gestão da saúde indígena passasse às mãos de uma secretaria específica, diretamente vinculada ao Ministério da Saúde – demanda que foi atendida pela presidência da República no ano de 2010.
Hoje os DSEIs são de responsabilidade da Secretaria Especial de Saúde Indígena e foram delimitados a partir de critérios epidemiológicos, geográficos e etnográficos. O Distrito Sanitário Especial Indígena Litoral Sul é responsável por ações de saúde para mais de 8 mil indígenas em 14 aldeias localizadas nos estados de São Paulo, Santa Catarina, Paraná, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro
O controle social dos DSEIs se dá por meio dos Conselhos Indígenas de Saúde (Condisi), que garantem, ao menos no plano da legislação, a participação dos índios na gestão. Os conselheiros são escolhidos pelas comunidades atendidas e participam de reuniões periódicas organizadas pelos gestores de cada DSEI. Na prática, a relação entre os povos indígenas e esses gestores é tensa, permeada por problemas relacionados à gestão e a aplicação de recursos.
Os mais de 225 povos indígenas sempre sofreram gravemente com questões ligadas à saúde pública ao longo da história. São exemplos as mortes por desnutrição das crianças Guarani Kaiowá no Mato Grosso do Sul, a volta da epidemia de malária entre os Yanomami de Roraima e Amazonas, o alto índice de vítimas fatais causados por acidentes ofídicos no Alto Rio Negro, o falecimento de dezenas de crianças Apinajé no Tocantins e Marubo do Vale do Javari, no Amazonas.
Hoje esse sistema encontra-se constantemente ameaçado. As ofensivas sempre aconteceram, mas se intensificaram depois de Bolsonaro se tornar presidente da República. Em dezembro de 2018, cerca de 8 mil médicos que participam do Programa Mais Médicos deixaram o Brasil depois que Cuba decidiu tirar seus profissionais do país diante de ofensivas e ameaças feitas pelo presidente recém-eleito. A saída dos médicos cubanos, teve um grande impacto no atendimento aos povos indígenas. Segundo dados de 2017, 90% dos médicos que atuavam pelo programa em áreas indígenas eram cubanos. Os números são do monitoramento do Mais Médicos feito pela Organização Panamericana de Saúde (Opas) e pela Organização Mundial de Saúde.
“É uma questão pessoal do Mandetta”
Elói Jacinto, liderança Guarani da Aldeia Tupã Kretã do município de Morretes lembra que o ministro Mandetta sempre teve problemas com os indígenas e suas ações se refletem em perseguição. “Nós sabemos que o ministro tem um histórico de problemas com os povos indígenas, é uma questão pessoal dele. O interesse dele não é apenas municipalizar a saúde indígena, é acabar com a Sesai, ele já afirmou que a secretaria é um peso para o estado. Mas não vamos aceitar que o governo extermine uma política que foi conquistada pelos povos indígenas”, destaca Elói.
Na sexta feira (12/04) lideranças indígenas, agentes de saúde e representantes da Irmandade Santa Casa de Andradina, empresa responsável pelos trabalhadores da Sesai no Dsei Litoral Sul participaram de uma reunião no Ministério Público do Trabalho do Paraná para tratar da questão dos atrasos nos salários. Na ocasião, foi informado aos trabalhadores que até o próximo dia 23 os salários serão normalizados.
Em nota ao Parágrafo 2, o Ministério da Saúde confirma a informação:
“O Ministério da Saúde informa que, em todo o Brasil, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) presta serviços de saúde a 765.600 indígenas de 305 etnias que vivem em 5.614 aldeias e falam 274 línguas diferentes. Esses atendimentos ocorrem nas próprias comunidades, por intermédio de mais de 800 Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) vinculadas aos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). São equipes formadas por médicos, enfermeiros, dentistas, técnicos de enfermagem, técnicos de saúde bucal, além de Agentes Indígenas de Saúde (AIS) e de Agentes Indígenas de Saneamento (AISAN).
Sobre os recursos destinados ao pagamento da prestação de serviços prestados por Organizações Não Governamentais (ONGs) aos DSEIs, o Ministério da Saúde informa que o pagamento foi autorizado e até a próxima semana será realizado, concluindo, assim, o trâmite de liberação dos recursos.
No último dia 28 de março, ficou acordado entre a pasta e lideranças indígenas, após reunião, a manutenção da SESAI. No mesmo encontro, foi definida a criação de um Grupo de Trabalho para discutir a melhoria e os avanços na assistência à saúde indígena e a fiscalização dos recursos”.
Até que se regularize a situação, os cerca de 200 indígenas estão acampados na Sesai em Curitiba e precisam de ajuda com alimentos, produtos de limpeza, cobertores e colchonetes, roupas de frio para adultos e crianças e copos e pratos descartáveis.
As doações podem ser levadas na Sesai que fica na Rua Brasílio Ovidio da Costa, 639. Vila isabel em Curitiba.