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“Quem vive na rua tem muitas doenças, esse Coronavírus que entre na fila”

Texto e fotos: José Pires. 

 

Eles saltam aos olhos. Parecem emergir de bueiros ou pular de marquises. Na Curitiba quase deserta, poucos comércios ainda teimam em abrir e alguns trabalhadores caminham, no fim de tarde, em direção aos pontos de ônibus. Em meio ao “não caos”, tão incomum no Centro da capital, é impossível não os ver. Parece que se multiplicaram em questão de dias. Mas, quase imperceptíveis à maioria, já que vitrines com roupas e aparelhos eletrônicos auxiliam os olhos a evitar o contato com a miséria, sempre estiveram lá. Agora, no entanto, quando o risco de contágio pelo Novo Coronavírus obriga milhões de pessoas a ficarem em casa, eles deixaram de ser parte invisível da paisagem e se tornaram protagonistas das calçadas, dos bancos, das praças.

Uma verdadeira afronta aos valores puritanos e higiênicos da fria Curitiba. Jogam sua miséria na cara daqueles que andam pelo Centro, sem nenhum pudor. Colocam no banco dos réus, no tribunal do sinaleiro, os motoristas que, desavisados, trafegam pelas ruas da metrópole. São milhares. Existem, segundo o Cadastro Único do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), cerca 2,3 mil pessoas em situação de rua na capital paranaense. Os dados são de julho de 2019. O número registrado pelo órgão representa um aumento de 200% em comparação ao que foi apontado em 2013, quando foram contabilizados 776 moradores em situação de rua, como aponta apuração feita pelo Livre.jor.

Alheios à pandemia que contabilizava, na tarde do dia 25/03, 34 mortes em todo o Brasil, pouco sabem sobre o contágio ou seus sintomas. Calejados por uma série de mazelas físicas e emocionais, dão de ombros ao Covid -19. Acumulam infortúnios e sua noção de autocuidado é muito mais modesta do que pregam as cartilhas de saúde. Franklin Oberdam Ferreira, que carrega uma bolsa de colostomia grudada à coxa esquerda, saiu do hospital no último domingo (22/03). Um chute dado na Boca, que atingiu a bexiga, o deixou em internamento por oito dias. Numa noite, na Boca Maldita, no centro curitibano, um desafeto o encontrou deitado na calçada e cobrou, com um pontapé, uma dívida antiga. Precisando de remédios, passa o dia com dores. Para ele, uma cartela de Amoxilina seria mais bem-vinda do que um vidro de álcool em gel. “Eu tinha um vidro de álcool em gel, ganhei lá no hospital, mas já acabou”, diz. “Eu também tinha, faz uma semana que perdi”, conta uma voz rouca e quase inaudível que faz companhia a Franklin em um banco da Praça Santos Andrade. É Marcos, que vive vagando pelo Centro há sete anos. Ele também não se importa com o Novo Coronavírus, ruim mesmo é ficar sem um corote, bebida que é rapidamente comprada logo que recebe o valor combinado por conceder a entrevista.

Para Marcos, um corote é o alento do dia.

Na Curitiba quase deserta, sentadas em frente aos comércios fechados na Rua Riachuelo, prostitutas descansam o queixo entre as palmas das mãos. Esperam que a quarentena tenha abafado apenas o movimento das ruas, não a libido dos clientes. A correria em busca de drogas é muito mais perceptível do que nos dias “normais”. Os gritos daqueles que já perderam a lucidez também. Na Rua José Bonifácio, ao lado da Catedral, uma senhora grita. As frases desconexas fazem eco nas paredes do santuário. A poucos metros de distância dois guardas municipais contemplam a praça com olhar de desamino. A vontade de terminar o plantão, aliada à impossibilidade de prender os dezenas de moradores de rua que se reúnem na Praça Tiradentes – já que ser miserável ainda não é legalmente considerado crime no Brasil – dão um ar de melancolia aos dois. Apesar da passividade dos GMs, existe um clima de tensão no ar. Algumas vozes exaltadas são direcionadas às mulheres que bebem em meio ao grupo de homens. Elas são a minoria nas ruas, mas as mais expostas à violência conforme revelam registros do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). No geral, as mulheres são mais agredidas que os homens: 50,8% frente a 49,2%.

“Jesus vai me proteger”

Em uma cadeira de rodas Seu João fita, sem expressão, o agito dos grupos que bebem na Praça, a louca que grita ao lado da igreja e o trôpego que zanza com uma máscara azul. Além das informações dadas a ele pela GM, também se informa da pandemia por meio do rádio que escuta no aparelho celular. Mas ignora o vírus. A hipertensão, um problema no quadril e uma bactéria nos pés, o fizeram perder a fé na medicina. “Foram os médicos que me colocaram nesta cadeira de rodas, não confio mais neles”, confessa. A fé que ainda mantém é a que se volta à providência divina, pois é nela que se fia para enfrentar a noite fria com uma calça fina de pijama e os pés descalços. “Confio em Jesus, sou católico e tenho muita fé. É ele quem vai me proteger deste vírus”, sentencia.

Seu João não teme o Coronavírus – “Jesus vai me proteger”, diz ele.

Seu João não tem mais família. Se tem, prefere não contar. Como escolhe não dizer seu sobrenome. “Só João tá bom né?”. Aos 58 anos idade ele vive há pouco mais de um nas ruas. Há cerca de seis meses pegou uma bactéria em um dos pés. Sem os cuidados necessários, o outro foi afetado em questão de dias. Caminhava com o auxílio de uma muleta, mas caia constantemente. Ganhou então uma cadeira na Igreja Batista. “Dizem que veio lá dos Estados Unidos”, conta com certo orgulho. Os pés inchados e vermelhos expulsam constantemente camadas de pele, o que causa dor e formigamento. Impossível calçar um sapato.

Se por um lado Seu João exala fé, por outro deixa transparecer descrença. O paradoxo ganha força quando revela uma apatia triste, contrariando o otimismo fundamentado na espiritualidade. “Quem vive na rua tem muitas doenças, esse Coronavírus que entre na fila”.

A maioria faz parte de grupo de risco

Conforme destaca o Dr. Ricardo Sirigatti, um dos coordenadores do projeto Médicos de Rua, que atende centenas de pessoas todo mês em Curitiba, as pessoas em situação de rua se encontram em grupo de risco primeiramente pelas condições em que vivem. “Nesta população temos muitos idosos, pessoas com doenças crônicas como diabetes e hipertensão, pessoas com problemas pulmonares como asma e alergias, tabagistas, himunodeprimidos, entre outros”, ressalta o médico. Além disso, lembra Sirigatti, o fato de eles estarem em situação de rua os leva a ter um tipo de imunidade restrita porque se encontram mais expostos às intempéries e também a péssimas condições de higiene.

Há seis meses uma bactéria afeta dos pés de Seu João.

Jeremias Profeta quase não se preocupa com o Novo Coronavírus. Tem problemas maiores pra enfrentar. Escorado em uma bengala feita com um cabo de guarda-chuva, já que lhe roubaram a que era feita com cabo de vassoura, ele luta para conseguir comida e um abrigo seguro para dormir, enquanto perambula com 28 pinos na perna esquerda. “Tá mais difícil pra comer agora que está tudo fechado. Quase sempre durmo sem janta, mas durmo lá perto do Shoping Estação porque é mais seguro”. Se higienizar para prevenir o Covid-19 não é uma de suas prioridades. O cheiro de urina o precede. O tom escuro, que foge pela jaqueta e escala a pele até a metade do pescoço, revela que o seu último banho provavelmente foi há semanas. “Lavo a mão de vez em quando lá no Terminal Guadalupe. Mas só quando tenho R$ 1, 00 para pagar e entrar no banheiro”, diz. Aos 54 anos de idade, vivendo há dois nas ruas, ele se despediu, ali nas calçadas frias de petit pavê, da beleza que provavelmente teve quando jovem. Restaram os olhos azul turquesa, cujo brilho definha, assim como o Profeta.

Um coletivo de entidades ligadas aos Direitos Humanos divulgou uma carta, no último sábado (21), na qual manifesta que “repudia o silêncio da Prefeitura de Curitiba e do Estado do Paraná até o momento sobre as medidas tomadas em relação à proteção e bem-estar do segmento e contenção do espalhamento do vírus perante esses indivíduos”. O manifesto teve a intenção de cobrar o poder público para medidas de urgência em relação a pessoas em situação de rua em Curitiba.

A Fundação de Ação Social de Curitiba (FAS), por sua vez, destaca que estabeleceu um protocolo de atendimento à população em situação de rua para reduzir os riscos de contaminação pelo Coronavírus. Segundo sua assessoria de imprensa, a Prefeitura de Curitiba vai abrir dois abrigos emergenciais para acolher pessoas em situação de rua com suspeita de Covid-19. Com eles, serão três espaços (120 vagas) exclusivos para atendê-las. Além dos novos espaços, a FAS destaca que os Centros de Referência Especializados para População de Rua (Centros Pop), a Central de Encaminhamento Social 24 Horas, a Unidade de Resgate e Cidadania (URC) e a Casa da Acolhida e do Regresso (CAR) são locais de acolhimento e cuidado.

Jeremias Profeta, porém, quer distância dos abrigos da prefeitura. Na última vez que dormiu em um deles pegou piolhos na barba, nos cabelos e nos pelos pubianos. “Dormi num colchão rosa onde dava pra ver os piolhos pulando a noite inteira, nunca mais fui”, conta. Hoje dorme com outras dezenas de pessoas perto do Shoping Estação.

Jeremias Profeta – Os cuidados com o Novo Coronavírus tem pouco espaço na rotina de quem vive pelas ruas.

Parece redundante exigir isolamento social para aqueles que se encontram à margem da sociedade. Mas boa parte dos curitibanos não se faz de rogado quando o tema é distanciamento físico e afetivo. Se antes, a repugnância carecia de certa descrição – com exceção do Prefeito Rafael Greca que confessou ter vomitado ao tentar colocar um morador de rua em seu carro – agora ela é aprovada pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Mas eles não se largam. A aglomeração é muito comum entre a população de rua, inclusive quando dormem, e é um fator que pode contribuir para a disseminação do Covid-19 entre eles, como alerta o Dr. Ricardo Sirigatti. “Tudo que essas pessoas não têm é isolamento, nem durante o dia, porque costumam ficar em grupos, fumando o mesmo cigarro, bebendo na mesma garrafa e nem durante a noite, porque é uma estratégia que usam para se aquecerem. Assim, o risco de contágio entre eles é muito grande”, alerta.

“E não é que vocês voltaram mesmo”

Thaís Abicalaf também foi para o banco dos réus no tribunal do sinaleiro. Tinha 12 anos quando viu uma família de pedintes no semáforo. Ao contrário da maioria, não conseguiu ignorá-los e os carrega com ela desde então. Os carregou em cada mesada dada pela avó quando comprava ingredientes para o pai, chef de cozinha, preparar refeições para sua família distribuir aos moradores de rua. Os carregou quando ingressou no projeto “Junta Mais”, iniciativa que trabalha em diversas frentes sociais. E os carrega hoje, todos os dias, quando, ao lado de colegas do Junta Mais, distribui refeições para pessoas em situação de rua na Praça Tiradentes.

Uma menina jovem, formada em jornalismo, que poderia passar a quarentena no conforto do lar, se vale de máscara e luvas para evitar o contágio quando ajuda a servir em média 300 refeições todas as noites. Nem os próprios moradores de rua acreditaram quando ela e os companheiros prometerem que voltariam. “Um deles me perguntou se eu ia voltar, eu disse que sim, e ele duvidou. No outro dia, quando voltamos, ele me disse: não é que vocês voltaram mesmo”.

Thaís ajuda a distribuir centenas de refeições todos os dias.

O Junta Mais depende da ajuda de voluntários para angariar alimentos e também materiais de higiene pessoal que são distribuídos em kits todas as noites. Centenas de pessoas trabalham no projeto, nem todos, obviamente, vão às ruas distribuir refeições. “Com o crescimento no número de infectados pelo Coronavírus, percebemos que muitos projetos sociais que distribuíam refeições no Centro pararam de entregar. E nós, que fazíamos a entrega uma vez por mês, passamos a levar centenas de refeições à Praça Tiradentes todos os dias”, conta Thaís.

Vivendo há sete anos nas ruas do Centro, Eziel de Oliveira se alimenta quase todos os dias por meio da ajuda de grupos como o da Thaís. Para ele, cuidados com o Coronavírus não são essenciais, alimentação, corotes diários e dormir em um lugar seguro é que são. Suas noites também terminam nas escadarias da antiga estação de trem na Avenida Sete de Setembro. Lá, os degraus são largos e lembram, pelo menos na forma geométrica, um colchão de casal. Eziel também não quer ir para os abrigos da prefeitura. Quer mesmo é dormir na Arena da Baixada, pois lhe disseram que farão lá um enorme abrigo para acolher as pessoas em situação de rua. “O jogador Daniel é que está bancando tudo. Imagine, dormir lá no estádio, ainda mais em um colchão macio, aí sim eu tô realizado”, sonha ele.

Para ajudar o Junta Mais entre em contato com a Thaís pelo whats (41)99660-6027 ou pelas redes sociais: @juntamais.brasil; ONG Junta Mais no facebook e @ong.juntamais no picpay.

 

About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.