Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesias
Diz a lenda que durante muito tempo, um grupo de missionários e bandeirantes, entre eles, Baltazar C. Dos Reis, Mateus Leme e Ébano Pereira (todos homenageados como nome de ruas centrais na cidade hoje), tentavam erguer uma capela para Nossa Senhora da Luz. Devido ao terreno pantanoso e úmido da região entre os rios Barigui e Iguaçu, todos os projetos foram frustrados e desabaram em pouco tempo. Um pequeno aldeamento se estabelecia ali, já que era ponto de parada no escoamento de minérios extraído pelas mãos de escravos negros nos atuais Estados de Goiás e Mato Grosso. O convívio com os Kaigang era de pouca amistosidade. Eles aceitavam pouco a presença do homem branco, e não se integravam com tanta facilidade à dinâmica de trabalho dos aldeamentos. Estamos em 1668.
Tindiquera, cacique dos Tinguis, aponta-lhes um local onde poderiam construir sua igreja sem que esta desabe. Lança uma flecha no Horizonte, que vai cair no terreno mais lodoso da região. Tindiquera diz apontando: Core’y Tuba: terra de muito pinhão. Assim se funda a Vila de Nossa Senhora da Luz e Bom Jesus dos Pinhais de Coreatuba, a qual chamamos hoje de Curitiba. Darei aqui o primeiro salto mortal na história.
Tentemos compreender o anuncio de aumento na tarifa técnica para R$ 4,50, que, no entanto, foi derrubado por liminar judicial da 2º Vara da Fazenda Pública da Capital, liminar esta que também foi derrubada dias depois mantendo o aumento. Para compreender mais essa proposta de aumento, é necessário saber um pouco da história urbana da cidade. Não é incomum viajar-se pelo Brasil e ouvir de pessoas, nos mais diversos lugares, que a cidade de Curitiba é uma “cidade modelo”. Há uma imagem bastante consolidada no imaginário popular, de que se vive, em Curitiba, em uma cidade civilizada, sem desigualdades sociais, onde os serviços públicos são eficientes, ruas planejadas e esteticamente modernas. Não à toa, entre habitantes também se cultiva este imaginário. A imagem do prefeito Jaime Lerner (1979-83 e 1989-92), indicado pelo governo militar e depois eleito democraticamente, está diretamente associada ao momento em que a capital adota um planejamento urbano que vai (re)definir os usos do espaço à escala municipal e metropolitana.
Seguindo a tendência modernista do planejamento urbano radical e a geométrica de Paris, e na tendência da cidade como máquina de crescimento de Nova York e Chicago, o município de Curitiba foi organizado criando uma infraestrutura que alterou a cidade em nível metropolitano. Tal fato só foi possível, na escala em que foi realizada, devido à forte articulação entre bancos (capital financeiro), imobiliárias, empresas de transporte urbano, os industriais e o Estado. As reformas urbanas iniciadas no “Plano Agache” e que se seguiram até o início da década de 1990 trouxeram transformações substanciais na cidade, tornando-a ícone do urbanismo na América Latina. No entanto, na implementação do planejamento e organização, criou-se um processo de valorização do solo urbano que empurrou a massa de pobres viventes, e aqueles que chegavam como migrantes das cidades do interior do Paraná, para as bordas por meio da criação de uma espécie de “anel de gentrificação” ao redor do centro, fazendo com que os núcleos mais pobres estivessem distantes de qualquer acesso no centro planejado. Conjuntos Habitacionais e loteamentos populares foram constituídos em locais na Zona Sul da cidade (em bairros como Boqueirão, Sítio Cercado, Vila Osternack, CIC, Bairro Novo, Tatuquara, entre outros); ou nos municípios próximos da Região Metropolitana (Colombo, Araucária, Almirante Tamandaré, entre outros). Lafaiete Neves, em seu livro Movimento Popular e Transporte Coletivo em Curitiba, afirma o seguinte:
Os loteamentos clandestinos surgem em Curitiba como resultado da especulação das imobiliárias. Esses loteamentos são abertos por imobiliárias, muitos deles de forma irregular e até clandestina. Por não terem infraestrutura mínima, como arruamento, água, luz, esgoto e inclusive a extensão do transporte coletivo, tornaram-se acessíveis à população de baixa renda (p. 52.).
O marketing urbano da cidade será protagonista neste processo, já que a criação de uma cidade que seguiu a cartilha modernista na arquitetura e que altera e intensifica um projeto de classe para uma cidade não pode aparecer como tal e ao mesmo tempo colocar-se como “modelo” a ser seguido por outros municípios. É necessário criar e vender uma representação, estimulando um “patriotismo de cidade”. As contradições devem ser escondidas e ocultadas sempre que possível. Se por um lado temos a criação de um espetáculo urbano, por outro temos milhares de excluídos, que vão viver às margens da cidade. Sobre o processo de formação das periferias em Curitiba, está presente no boletim “Notícias de Casa” das Filhas da Caridade de São Vicente de Paula, no Bairro do Boqueirão, em Maio de 1970 a seguinte descrição:
São aproximadamente 1500 famílias que vivem ali. É uma área pantanosa, inabitável, segundo os princípios urbanísticos, mas que foi se povoando pelo simples fato que ali os terrenos eram mais baratos, e, para quem vem de longe para se instalar na capital, era a única saída. Ainda agora, apesar de estar quase toda ocupada, não conta com serviços urbanos regulares. Não há coleta de lixo, a iluminação é precária, as ruas de chão batido, não tem traçado regular. Não existe água encanada, a água dos poços não é tratada. Não existem serviços sanitários. Em tempo de chuva, a área se alaga facilmente e obriga muitos moradores a abandonarem suas casas. (…) a maioria não é proprietária nem do terreno, nem da casa e pagam alugueis relativamente elevados considerando-se as condições insalubres da região. (…) Aqueles que vieram de longe, procuravam fugir de uma situação de miséria e buscavam a cidade grande como solução. E aqui, a vida se torna tão ou mais difícil do que era antes. (CEFURIA, 2007. p. 78-9)
Neste mesmo momento a cidade passa a ser planejada por um grupo de empresários que começa a realizar vultuosos e lucrativos empreendimentos imobiliários. As linhas de ônibus são exemplo claro disso. Quando se estabeleceram as empresas que operam as linhas municipais de transporte público, grande parte delas estava ligada à família Gulin, recebendo repasses em dinheiro da prefeitura por quilômetro rodado, ou seja, quanto maiores os trajetos realizados pelas linhas de ônibus, maiores eram o lucro dos empresários. Isso fez com que o setor imobiliário se organizasse para vender loteamentos irregulares em zonas distantes do centro urbano, forçando a prefeitura municipal a levar linhas de ônibus para os novos núcleos urbanos e aumentando ainda mais o rendimento das empresas de transporte. Lafaiete Neves, em entrevista realizada em Julho de 2016, relata o seguinte quadro:
O Jaime Lerner realmente fez um trabalho de mídia e propaganda muito bem feito, tá? Porque ele estava vendendo não apenas o transporte coletivo, ele tava vendendo a Volvo, foi ele que trouxe a Volvo. Ele tava vendendo a Volvo. Os motores são Volvo, os Chassis são Volvo, tá? Então ele tava vendendo um produto muito maior do que o transporte, e a Volvo realmente se fez em Curitiba. Ela é hoje a maior produtora de caminhões de pesadas toneladas do país e ela começou com o transporte coletivo. E ela tinha que disputar com a Scania (…) que ela estava entrando. E ela já entrou com mercado. As experiências de inovações tecnológicas que a Volvo fez no transporte e continua fazendo no transporte coletivo. Porque o ônibus híbrido foi desenvolvido aqui em Curitiba, o sistema biarticulado, triarticulado, quatro eixos, foi desenvolvido aqui, entendeu? Então, esse sistema que foi montado, foi um sistema montado junto com a Volvo, não é? Com a empresa sueca que realmente se instalou aqui pra vender pro mercado nacional e internacional, que é o que está fazendo hoje, e o Jaime Lerner exportou esse modelo de transporte para a América Latina. Então você tem Peru, você tem Equador, você tem Colômbia com a implantação do sistema curitibano. E outros países da África estão importando também, o modelo. Então é muito mais, é um grande negócio na verdade. É muito mais do que transportar passageiros na cidade de Curitiba. E eu acho que ele conseguiu vender essa imagem. Uma cidade, na verdade, que foi produzida do ponto de vista do merchandising que foi feito e que se torna uma referência.
Por meio do planejamento urbano, um negócio extremamente lucrativo para os industriais, os especuladores imobiliários e os empresários do transporte público se estabelece, em detrimento dos mais pobres que trabalham construindo a cidade, mas que não tem o direito de usufruí-la. Neste sentido, um grande projeto de desfavelamento foi realizado, com investimentos vultosos do BNH, estimados à época, em 65,5 milhões de cruzeiros. Alexandre Banvenutti, em sua tese de doutorado intitulada Planos de Humanização para Curitiba: Remodelação urbana e imobiliária da metrópole afirma que:
A experiência piloto iniciou em Abril de 1976 envolvendo as favelas do Capanema, Afonsinho e Britânia, totalizando 376 “barracos”. Pela proposta, os moradores foram “realocados”, ou seja, transferidos para outras áreas ou bairros, recebendo uma casa com área inicial de 22 metros quadrados, também chamada de “embrião”, disposta em terreno de 200 metros quadrados; ofertados mediante pagamento mensal total de Cr$ 105,00, sendo 80 pela casa e 25 pelo terreno. (…) Os conjuntos seriam constituídos de, no máximo, 50 unidades de “habitação básica” (…) Na visão dos técnicos, a ausência de forro, assoalho, pintura e, inclusive, esquadrias, não comprometeria a qualidade de vida dos moradores. (…) envolveu episódios de conflitos entre Estado e moradores e, inclusive, em vários casos, como registrados pela imprensa, predominando o uso da força policial contra as comunidades pobres residentes nas áreas ocupadas. (p. 217.)
As favelas apareciam como que manchando a imagem que se pretendia vender de Curitiba que, diferente das outras grandes metrópoles brasileiras, teve o crescimento ordenado por um planejamento urbano de grandes proporções. O plano de desfavelamento, portanto, mostra o viés autoritário deste projeto, que visava desde os seus fundamentos transformar a cidade em ferramenta de lucro e ao mesmo tempo livre dos pobres que tornavam Curitiba menos atrativa aos investimentos de capital Para Benvenutti:
A presença das favelas constituía uma “preocupação” que estava além da questão estética, pois afetava diretamente a produção imobiliária de mercado voltada à acumulação de capital, visando atender classes mais abastadas ou aqueles em condições de pagar para usufruir das “linhas puras da arquitetura” residencial e de empreendimentos comerciais e de serviços. Apesar do espaço não se constituir como elemento de produção, visto que é um bem natural, a apropriação deste é condição fundamental para a construção dos empreendimentos imobiliários. (p. 221)
Neste sentido, a construção dos famosos parques, que hoje são atração turística na cidade, veio com a intenção explícita de “preservar áreas passíveis de serem invadidas pela expansão urbana inadequada” (SERETE; IPPUC, 1972, p. ii Citado em: BENVENUTTI, 2016. p. 222). O mesmo fenômeno se desdobra no setor de transporte coletivo, e analisar os relatórios da CPI dos transportes em Curitiba pode ser esclarecedor.
A CPI foi feita por meio de um pedido realizado na câmara dos vereadores em 26/06/2013, e sua aprovação foi reflexo das mobilizações ocorridas neste período em todo o país ao redor do tema da mobilidade urbana e transporte público, levando milhares de pessoas às ruas. O Movimento ligado a luta por transporte, onde o MPL (Movimento Passe Livre) e depois o Coletivo Tarifa Zero eram parte, pressionava a tempos uma posição da prefeitura sobre o monopólio exercido pela família Gulin nas empresas de transporte urbano e conseguiu a promessa da realização de uma investigação sobre os editais de concessão do transporte público a estas empresas. Esta CPI tinha como objetivo “apurar e investigar os indícios de lucro excessivo e irregularidades no processo licitatório, na planilha de cálculo tarifário das empresas, bem como no recolhimento do ISS das empresas da Rede Integrada do Transporte Coletivo de Curitiba” (p. 6)
O transporte público consome 17% dos gastos públicos do município e, ainda assim tem-se tarifas que sobem vertiginosamente, chegando a ser a capital com a tarifa de ônibus mais alta do Brasil. Os recursos com transporte são mobilizados e administrados por onze empresas, três consórcios, constituindo um dos setores mais cartelizados da administração municipal, sendo que o próprio município não apresentava qualquer controle de custo do sistema de transporte geridos por estas empresas, conforme afirma Lafaiete Neves, relator da CPI:
O componente de custo só os empresários têm. E o número de passageiros só os empresários têm. O que se tem, é que a prefeitura terceirizou o serviço de controle de passageiros, e isso é um absurdo. Você terceirizar o controle de passageiros é entregar o galinheiro pra raposa tomar conta. Porque quem disse que o controle de passageiros que o ICI está fornecendo, que presta o serviço de controle é real? Ninguém sabe. Porque vai no relatório que nós fizemos em 2013, você vai no relatório da CPI dos transportes, referendam o nosso, você vai nos relatórios do TCE, referendam o nosso. A gente já tinha apontado isso em 2013, Porque? Porque descobrimos dentro da prefeitura, dentro da URBS, que ela não tem controle. Os relatórios de despesas das empresas já não são entregues há anos. Então você não sabe o custo. Então esse é um negócio que se não quebrou, é porque ele está lucrativo. Nenhuma empresa opera por muito tempo no vermelho só, tem que quebrar. Se não quebra é porque está muito bom o negócio. Está muito bom, não é? É um raciocínio simples. Isso que é um monopólio. Porque que é um monopólio? Porque você fez uma licitação fraudulenta, e isso era o que todos os relatórios apontavam, fraudulentas…
No edital de licitação, onde empresas deveriam se candidatar para gerir o sistema de transportes, empresas com menos de 25 anos de atuação no modal tecnológico de Curitiba foram impedidas de concorrer o edital, o que fez com que somente as empresas que já estavam instaladas no serviço pudessem concorrer, mantendo o cartel. O componente de custo permaneceu o mesmo que da década de 1980, em detrimento dos avanço tecnológico e barateamento na manutenção dos ônibus e gastos com combustível desde então. Além disso, o relatório da CPI aponta que “foi constatado forte indício de irregularidade como, o direcionamento do Edital de Concorrência visando o favorecimento das empresas que já operavam o transporte coletivo em Curitiba”. (p. 21-2) visando que “o edital previu a possibilidade de prorrogação da concessão do serviço público de quinze para vinte e cinco anos, independentemente da realização de nova licitação, “nos casos de elevados investimentos em bens reversíveis, decorrentes de fato superveniente, não sendo considerado para esse fim investimento na renovação e ampliação de frota”.” (p. 80)
Pediu-se às empresas concorrentes do edital que estas dispusessem, de antemão, do montante de R$ 8.657.236.823,29 divididos em três lotes (Lote 1 no valor de R$ 2.787.903.168,12; Lote 2 no valor de R$ 2.560.926.362,89; e Lote 3 no valor de R$ 3.308.407.292,28) de dotação orçamentária para poder concorrer ao edital, capital este que somente as empresas que já operavam o sistema de transporte do município possuíam em créditos dados pelo próprio Estado, via BNDS, pela operação das linhas de ônibus. O Relatório da CPI dos transportes de Curitiba aponta ainda o seguinte:
“O que se depreende é que, fortes se mostram os indícios de combinação da URBS com as empresas, para que estas se beneficiassem e vencessem o certame como forma de receber os valores em atraso, bem como dessem continuidade ao serviço com vantagem na disputa do certame sobre as demais empresas que porventura participassem.” (p. 92)
O documento da CPI ainda aponta para evidências na formação de cartel na concorrência de tal edital:
“Conforme discorrido nos itens anteriores, fica evidente que possivelmente tenha havido combinação entre as empresas que venceram o certame para que cada consórcio ganhasse um lote da licitação. Note-se que cada lote teve apenas um participante que o arrematou, ou seja, não houve disputa na licitação.” (p. 93-4)
Se observarmos os nomes dos empresários vencedores dos três lotes, as tabelas 1, 2, 3 e 4, a seguir, podem nos apresentar um quadro importante na compreensão da composição dos transportes da capital paranaense:
Nota-se, entre os nomes dos empresários vencedores da licitação, uma forte presença da família Gulin nos três lotes. A matéria da Gazeta do Povo de 31/07/2017 aponta o seguinte quadro para o final do processo licitatório:
A formação dos três consórcios para a licitação marca ainda o fortalecimento da família Gulin no transporte coletivo de Curitiba. Sobe de 4 para 5 o número de empresas que vão operar as linhas urbanas da capital e a família conseguiu estar presente nos três lotes, controlando ou participando da operação em todas as regiões.
Além das quatro empresas atuais administradas pela família (Auto Viação Marechal, Auto Viação Redentor, Transporte Coletivo Glória e Viação Cidade Sorriso), agrega-se a Auto Viação Santo Antônio, que operava somente na região metropolitana, e faz parte do consórcio Pioneiro.[1]
A tabela 4, a seguir, dá conta de mostrar a força da família Gulin no setor de transporte urbano:
Pode-se concluir, portanto, à partir do levantamento realizado na CPI dos transportes de Curitiba uma forte cartelização e a constituição de monopólio no transporte público da cidade onde, através de uma articulação do Estado com capitalistas, nacionais e estrangeiros, dos setores imobiliário, financeiro e de transporte urbano a constituição de um planejamento que visa, sobretudo, garantir a lucratividade de grupos familiares e empresariais que fazem da cidade um negócio. Isso em detrimento da grande exploração do trabalho e degradação das condições de vida de grande parte da população curitibana. A passagem do transporte coletivo aumenta mais uma vez, restringindo ainda mais o direito de se mover pela cidade, em especial aos mais pobres. E mais uma vez discurso – ultrapassado – de transporte modelo e seus altos custos de manutenção é utilizado como justificativa. A pergunta que fica é: por quanto tempo aguentaremos pagar esta conta sem fazer nada?
[1] http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/endividadas-empresas-da-capital-sao-vendidas-9ygl9f5qzersldbt1hn375j66 acessado em 31/07/2017.