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Quando o sambista chora. O desabafo de Ricardo Salmazo

Debruçado sobre o corpo a madeira do bom pinho, as cordas gastas, soa a voz embargada do compositor pela sala de casa, enfeitada pelos quadros de Candeia e Paulinho da Viola, ele e o seu cavaquinho. Apenas ele, tão sozinho. Assim cantou, desaguou, desabafou, quando o sambista chora, o ritmo cai e perde-se a cadência. Ricardo Salmazo músico, sambista, integrante do Samba do Compositor Paranaense e do grupo Sindicatis, fomentador e cidadão honorário da cena artística de Curitiba, publicou uma reflexão em forma de samba alguns dias atrás nas redes sociais, no post a seguinte pergunta: “Quanto vale o Show?”.

A composição de Salmazo indaga aos frequentadores da noite o quanto vale o trabalho do artista e contextualiza as situações corriqueiras enfrentadas para fazer o show acontecer. O compositor paranaense dá voz a classe artística sendo cronista da própria história em que não é herói nem vilão apenas um operário da música, semelhante a tantas outras profissões, e que, apesar de descontente com alguns aspectos da labuta, segue cantando, compondo. Transformando aquilo que aprendeu e sente, inclusive a dor, em canção.

Enquanto na visão de boa parte do público a profissão transparece certo glamour na aura transluzente do músico, por traz do som da platinela não há nenhum romantismo. Para chegar ao resultado sonoro esperado exige-se dedicação, pesquisa de repertório, ensaios sem fim, perrengues e desencontros. E, ainda, necessita da manutenção periódica dos instrumentos tocados com empolgação. Sem falar no transporte, vaga de estacionamento, nem pensar em deixar o carro na rua, os roubos de equipamentos são frequentes.

Fora o barulho externo dos desafinados ou do coro febril, nem sempre dentro da cadência, embebido pelo lúpulo, malte, levedura, e, claro, do milho. São as pequenas idiossincrasias da noite. Da persistência de quem escolhe, como tantos, a música como ofício. Pois é, nem só de belas porções de batata frita e cerveja de graça, vive quem traz alegria a nós. Não é fácil ser um bamba.

Mesmo assim, o combatente do ritmo, pelo trabalho de duas, três ou quatro horas de gogó pulsante, ritmo e simpatia, recebe entre R$100,00 ou R$150,00, brutos, não esqueça os descontos citados acima. Apenas um adendo: isto quando o dono do bar paga ou justifica-se cinicamente “não deu tanto movimento hoje” pagando valor menor do combinado. Quanto Vale o show? Conforme lamenta o samba, para muitos, “vale menos que um copo de cerveja”.

Logo, os artistas buscam como alternativa passar o chapéu pelas ruas e contar com a boa vontade das massas, admiradores, que possam contribuir de forma voluntaria para o espetáculo. Cada um apoia como pode e do jeito que pode, a prática  acontece democraticamente e consciente de valores, pois o artista de rua objetiva trazer ao público a reflexão ideológica, tomada de consciência, mudanças de conceitos e paradigmas, com a fruição estética levando a música aonde o povo está.

O desabafo consciente do sambista, num momento que a cultura carece de cuidados e valorização, sendo jogada para debaixo do tapete, carregada de importunações ideológicas, propõe ao público “Quanto vale o Show?”. Para tal a resposta sincera: Não há como quantificar, precificar a expressão artística, para alguns muito para outros menos que um copo de cerveja. No entanto, pois bem, entenda, ora veja, a alma também se alimenta de samba, não apenas de cerveja.

Segue o vídeo e a letra:

https://www.facebook.com/salmazoricardo/videos/519911452233441/

Quanto vale o show?
(Ricardo Salmazo)

Ta rolando um papo aí que o meu som vale menos que um copo de cerveja,
Ora, vejam, moças e moços, se há cabimento
Quase que não me aguento, dá vontade de chorar

O Malte do samba são horas de estudo e ensaios sem fim
Deslocamento de um ponto ao outro, vaga pra estacionar
As cordas do instrumento que, na empolgação, chegam a arrebentar
O coro que fura e a platinela que insiste em rachar

O Lúpulo do nosso encontro , equilibra o doce e o amargor
É a pesquisa do compositor desconhecido da massa
Mas pra que sua mensagem, aos vossos ouvidos, chegue com clareza
é necessário que haja bastante atenção e silêncio em volta da mesa

A Levedura da roda é a rouquidão, que deixa o intérprete quase na mão
No fim do show, por cantar num som ruim
Isso aliado a bebida que cai pelo chão,
Grudando o sapato, fedendo o salão
É o fermento aromático, posto no fim

Por fim, a água compõe a maior porcentagem
De amor, doação e respeito à linhagem
Lavando as almas de quem se dedica a cantar
Mas, se a mente, no impulso, pedir mais cerveja
Se interiorize e sua alma veja,
Pois ela também quer se alimentar com samba!

About Mario Luiz Costa Junior

Jornalista e Músico, integrante colaborador do Parágrafo 2. Cronista urbano e repórter de cultura e sociedade, tem como referência os textos literários e jornalísticos de Gabriel Garcia Márquez e Nelson Rodrigues, da lírica de Cartola e da confluência de outras artes, como o cinema, no retrato do cotidiano no enfoque da notícia. Acredita que viver é um ato resiliente no caminho de pedra para a luz.