Coluna Filosofia Di Vina
Quando ela apareceu, ainda na antiguidade, as pessoas acharam que aquilo era um castigo dos deuses. Quanto mais oravam e faziam sacrifício, mais ela matava. Não se sabe como ela veio e como ela se foi, mas deixou pilhas de gregos e romanos, pilhas que seus exércitos jamais conseguiriam imitar.
No século XIV, ela apareceu novamente, achou um bom terreno para se propagar, os péssimos hábitos de higiene eram um convite para a sua fome de morte. Tornou-se mais forte devido à ignorância da época, os homens, de repente acharam que os gatos eram criaturas demoníacas e a Santa Inquisição condenou todos à morte. Com o desaparecimento sumário dos felinos, os ratos ganharam a cena e, junto com eles, as pulgas, que tinham a peste.
Ninguém sabia de onde ela vinha. Inventaram roupas e máscaras macabras para a proteção, mas ela vinha das pulgas dos ratos e sua picada mortal. A humanidade não sabia o que fazer, os tratamentos eram ainda mais terríveis. Passar fezes nas feridas ou mercúrio quente era o que a crença mandava, o moribundo gemia de dor até morrer. Deram um nome a ela, Peste Negra, pois apodrecia as pessoas ainda em vida, uns chamavam bubônica. De cada três europeus, ela matou um. O ambiente era o ideal para a peste.
Quando ela reapareceu, aproveitou-se da “Rota da seda”, viajava com os mercadores e se espalhou por todos os cantos do mundo, nomearam-na de “Varíola”. Veio, muito tempo depois, de carona nas caravelas e encontrou, no “Novo mundo”, uma multidão de corpos saudáveis e indefesos para saciar sua fome de gente. Os europeus sabiam de sua fome e passavam tecidos coloridos nos já quase cadáveres que vinham de além mar. Depois disso, davam, ou deixavam, esses tecidos coloridos próximo às tribos, onde crianças pudessem encontrar, as crianças levavam para suas tribos a peste mortal. Ela e outras aliadas foram responsáveis por dizimar milhares de vidas, culturas e experiências de sociedade floresta a dentro. Graças a essa poderosa aliada, os portugueses conseguiram eliminar o indestrutível exército Guaitacá, os guerreiros invencíveis não resistiram àquele inimigo invisível. Doze mil pessoas morreram somente entre eles, a mais indomável das tribos morreu em pouco tempo, uma proeza que nenhum exército de branco jamais conseguira fazer.
Nos idos de 1827, a peste se aproveitou de novo da pobreza de instrução e de condições e se instalou na água. Os homens tomavam copos fatais e morriam sofrendo a cólera da natureza, esvaídos.
Ainda no XIX, ela fez novamente casa, aproveitou-se do contato e reapareceu nos beijos e nos copos. A tuberculose venceu a guerra contra os humanos por pelo menos cem anos, calou uma geração inteira de poetas e silenciou o violão dos boêmios em todo o globo.
Quando os homens inventaram uma guerra a fim de ter o direito de explorar os outros homens e a terra, ela surgiu novamente. Viajou com os soldados para suas casas, mostrando para a humanidade que os resultados de uma guerra vão muito além das trincheiras e tratados de paz. No Brasil, a “Espanhola” causou terror, matava os mais jovens afogados em plena seca. Os pulmões cheios de água, como se viessem de um naufrágio. Matou quase todos os coveiros, os homens mais fortes eram recrutados a golpes de chibata pela polícia para enterrar os corpos e se contaminarem. A água tônica e a caipirinha surgiram como remédios caseiros, mas nenhum remédio podia salvar aquela gente.
Quando o século vinte estava na metade, a peste ressurge, ataca em várias frentes, aproveita-se da miséria da África e vai competindo com a fome para ver quem mata mais, a igreja ajudou a combater o Ebola, com tiros de fuzil nos contaminados que se aproximavam dos saudáveis. Ela também apareceu para condenar o amor, se escondeu no sexo e dava um prazo de vida curto para quem se infectava, a sigla terrível da A.I.D.S alimentou o preconceito contra os homossexuais por décadas e levou embora as grandes vozes que ousaram embalar o sonho da liberdade.
No século XXI ela reaparece, com o nome de COVID-19. Ela mostra a face mais cruel da sociedade de consumo. Humanos presos ao modo de produção capitalista não têm chance contra ela. Desnuda a faceta mais terrível do capitalismo, a pobreza. Empurra milhares de pessoas para a morte dia após dia. Não dá chance para despedida, quando mortos, todos são iguais, em cova comum todos são simplesmente vítimas.
Todas as vezes que a peste apareceu, aproveitou-se do modo de vida da sociedade, ela mata por que se privilegia do funcionamento das sociedades em que ela está inserida. Uns dizem que ela é o sistema imunológico da Terra que tenta se livrar de um vírus destrutivo chamado humano, um vírus que fura, polui e mata. Uns ainda acreditam que é um castigo severo dos céus, m. O que se pode afirmar, no entanto, é que a peste é fruto do nosso próprio sistema de vida, ela é o resultado dos meios que criamos durante a história e somente por esses meios é que ela sai vitoriosa.
Em época que o humano avança sua ânsia de lucro, desmata e envenena a terra causando desequilíbrio na ordem natural das coisas, deixamos mais fortes os seres microscópicos que por milênios estavam em seu habitat, enquanto ficamos mais fracos alimentados por um lixo tóxico que a propaganda insiste em chamar de comida. Produzimos em escala industrial nossas próprias catástrofes.