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Quando caetanearam o gospel

Coluna Evangélico à Esquerda

Na poesia eloquente e chique, toda refinada do Djavan, é lugar-comum mencionar Caetano Veloso como um verbo poético em si. Ele faz isso em mais de uma canção, e usa muito a figura de Caetano para reverberar justamente o que sua poesia é: arrojada, transcendente, elegante. Caetano é um verbo nas músicas do Djavan, e não é sem razão. Esse baiano é algo na música brasileira que não tem paralelos em outro lugar. Não existe um Caetano norte-americano, não há algo semelhante à sua figura na música global. É por isso que ele era admirado por pessoas como Kurt Cobain, Beck, David Birne, Bill Clinton, ou qualquer gringo que entenda de música e escute o que ele faz. Caetano é mesmo transcendental. Tem algo na sua música de muito profundamente espiritual.

Kleber Lucas é um cantor gospel, conhecido no meio. Sempre criativo, e relutante em caber nas caixinhas. A música gospel brasileira tende a carecer de criatividade, tende a buscar um padrão incipiente, francamente chato. Acho bastante curioso, pois que isso não acontece lá fora. O caso é que esse Kleber Lucas sempre pareceu ter interesse em quebrar o paradigma. Fazer música mais sentimental, mais profunda, mais soul. Trabalho bacana o dele, tá num canto na música gospel brasileira que ousa ir contra os cantores e cantoras de voz afetada, cantando sempre a mesma deixa, fazendo música burocrática pra virar louvor nas ministrações e pra manter o padrão força-barra de voz xarope da grande maioria. Tô criticando geral aqui, mas é lógico que há exceções.

Agora me diz: que tem haver o gênio Veloso, bastião da música brasileira, com o gospel fora da casinha, experimentador de sons Kleber Lucas? Tem haver que eles regravaram juntos “Deus cuida de mim”, hino gospel famoso e muito bonito. E a coisa ficou boa, pah!!! Mas se fosse só a música gravada juntos, um avanço para a música de crente, e uma prova da versatilidade e qualidade do Caetano, não seria interessante eu falar aqui nesse espaço. Eu quero falar disso por causa da repercussão que isso teve, e pra fazermos ideia do panorama nefasto e deteriorado que vivemos na igreja hoje.

Primeiro, fora os fãs do Kleber Lucas ou do Caetano, e os bons ouvidos que ouviram sem preconceito a bela canção, a repercussão foi negativa. Crente bolsonarista achou heresia. Falam que Kleber Lucas é desviado. Já não gostam do Caetano, pois bom gosto não é o forte nessa seara…

Esse irmão, o Kléber Lucas, tem nas costas uma história das mais bonitas que já ouvi falar entre os cantores crentes: depredaram um terreiro de umbanda (coisa comum, e normalmente os vândalos são crentes, do tipo intolerante e incapaz de conviver com a fé alheia). Bom, o Kleber Lucas não achou isso legal e ajudou na reconstrução do templo. Atitude louvável, vindo de alguém de um meio que condena tanto a fé de raiz afro. Aí ele foi convidado a louvar na gira de reinauguração do terreiro que ele ajudou a reconstruir, que provavelmente foi depredada pelo povo que ele representa. E ele foi, e isso é lindo de ver. Mas a crentelhada achou ruim, achou feio, achou rude. Condenou ele ao inferno porque o sujeito estava lá, louvando o Senhor com irmãos que praticam a fé de outra forma, mas cujos princípios de irmandade e caridade são condizentes com Cristo. Eu acho estranho ainda que crente destrua terreiro de umbanda, de raiz afro, mas costume manter intocadas as casas kardecistas, o espiritismo de gente branca. Não tô falando pra começar a quebrar os templos deles também, não! Nem estou querendo destilar preconceito a qualquer forma de fé diferente da minha. Estou só comentando que o alvo do preconceito de fé do crente costuma ser preto, da periferia, frágil, que se mantém quase sempre na dificuldade financeira. O Kleber Lucas foi um cara consciente disso, teve uma atitude legal demais aí. Mas isso crente condena… A Flordelis, outra cantora gospel que matou o marido e vivia em orgias bizarras, essa ainda tem defensores. O Samuel Mariano, que tem um punhado de escândalos sexuais nas costas, esse ainda é santo. Mas o Kleber Lucas ajudou terreiro, esse herege! E cantou com o Caetano, aquela entidade excepcional da música brasileira. Lástima ver que tem gente que não sabe apreciar. Mas graças a Deus nós podemos ouvir essa canção, na voz do Caetano. Desculpa, sou fã do Caetano. E depois de saber dessa da reconstrução do terreiro, sou fã também do Kleber Lucas. Espero que isso abra uma porta pra ele gravar também com o Djavan. Acho que a música dos dois tem tudo haver.

Deus é mais musical do que o gospel as vezes nos permite perceber. Acho que a voz dele está mais na voz do Caetano com o Kleber Lucas, do que nessa voz suja ecoando nos quartéis e na bancada evangélica. Mas a voz de Deus insiste, e insiste graças a Deus…

Rafael Bührer é estudante de Teologia na Faculdade Unida de Vitória/ES, EAD, Marxista-leninista, Cristão, ex-músico independente, recepcionista bilíngue, marido, torcedor do Coritiba e cearense naturalizado.

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