O frio não chega a incomodar. Ainda assim a toca preta não sai da cabeça, mesmo sob o sol que faz brilhar o chão pintado do pátio externo. As calças finas de agasalho ficam curtas em alguns, afinal jovens crescem o tempo todo e a roupa que hoje serve daqui a pouco não cabe mais. A sonolência toma conta de uns poucos, é depois do almoço que a vontade de tirar um cochilo aparece. Assim, a ala fica em silêncio por um curto espaço de tempo. Mas nem todos dormem. Frederico (nome fictício) senta-se no comprido banco do refeitório e com certo receio espera as perguntas da entrevista. As respostas são secas, sem muitos detalhes e sem muitos rodeios.
A pouco mais de dez quilômetros dali, Rodrigo (nome fictício) também acabou de almoçar. Mesmo com alguns trabalhos escolares para fazer ele precisa terminar uma missão que deixou salva em um jogo no Play Station 3. Ele também veste moletom. A calça não é tão curta e, ao invés de sentar, prefere empunhar o controle do vídeo game sobre o peito que forma um suporte agradável enquanto joga deitado no sofá da sala.
Frederico mostra receio. Afinal, em algumas das vezes em que passou por questionamentos e interrogatórios as coisas não terminaram bem. Rodrigo, ao contrário mostra desenvoltura e segurança ao falar. Sobre os pais, Frederico se lembra muito pouco. Os dois foram assassinados pela Polícia quando ele ainda era uma criança de colo. Ficaram no mundo além dele, um irmão e uma irmã que devem estar em abrigos, ele não tem certeza. Rodrigo, por sua vez, convive com os pais e divide a mesa com os dois em todas as refeições.
Questionado sobre as melhores recordações envolvendo sua família Rodrigo diz que as mais marcantes são as reuniões do Natal. Já Frederico fica calado. Não há lembranças nesse sentido. No quarto onde dorme Rodrigo há uma cama simples, mas confortável. Um carpete toma conta de todo o chão e uma pequena TV serve de companhia até o sono chegar. O quarto de Frederico tem chão de cerâmica e uma janela bem no alto. Ao lado da sua cama há mais uma. Há cerca de 30 dias ele posa nesse quarto. Antes posou em outros, em algumas camas, às vezes em um colchão, em um papelão e muitas de suas noites tiveram como proteção a marquise de uma loja qualquer no centro de Curitiba.
Como muitos adolescentes Rodrigo come bastante. A lasanha servida no almoço de domingo, quando os irmãos e primos vêm para uma refeição em família, é seu prato predileto. Não há banquetes ou iguarias sofisticadas, mas a comida da mãe raramente sobra. Já Frederico viveu de sobras durante boa parte de sua vida. O que era cuspido no prato pelas pessoas em restaurantes da capital paranaense eram a refeição da semana toda. E o braço que adentrava o saco de lixo na frente da pizzaria saia de lá com um pedaço onde ainda havia queijo e, com um pouco de sorte, algumas azeitonas.
Pela casa de Rodrigo há várias fotos suas nas paredes sem reboco. Os retratos de Frederico podem ser encontrados nas instituições onde esteve internado. Rodrigo gosta mesmo das fotos que tira todos os anos quando, no mês de janeiro, depois de a família apertar o orçamento, consegue passar uns dias na praia. Frederico só conhece o mar por fotos.
Rodrigo cursa o 1º ano do Ensino Médio. Frederico, por sua vez, estudou até o 5º ano do Ensino Fundamental. A janta e a cama sempre estão prontas quando Rodrigo chega em casa à noite depois do colégio. Frederico hoje come refeições regulares na instituição onde está internado. Amanhã não sabe.
Os dois tem 17 anos e mesmo vivendo em um país onde muitos pregam uma tal de “igualdade”, têm realidades bem diferentes. Frederico vive em abrigos desde que os pais foram assassinados pela Polícia, quando ele ainda usava fraldas. Desde então divide o tempo entre instituições e as ruas do centro da capital. Viciado em cocaína e cola de sapateiro ele descobriu, quando ainda era menino, que a vida não dá as mesmas oportunidades para todos. “Comecei a fugir dos abrigos e ir para as ruas. Procurava por cola e cocaína. Todo dia era a mesma coisa”, conta o jovem que hoje é interno da ala de desintoxicação de adolescentes na Associação San Julian em Piraquara, Região Metropolitana de Curitiba.
Aos 12 anos ele foi preso pela primeira vez. Foi pego logo depois de roubar uma loja. As botinadas na boca do estômago e os socos na cabeça ainda o fazem se arrepiar. Frederico tentou tomar a armar de um Guarda Municipal no momento de sua prisão. Grave erro. “Levei uma coronhada e tive o braço quebrado. Depois que sai do hospital fui para um educandário”. Aí, as coisas só pioraram. Continuou a cometer crimes para manter o vício. O objetivo dos dias era um só: Dar muitas inaladas em um pacote com cola de sapateiro, daquelas que fazem tremer braços e pernas, quando parece que a alma tenta, por alguns instantes, abandonar o corpo. Depois, alterado pelo inalante, a busca era pela primeira carreira de cocaína. Na procura não havia limites. Afinal não esperava mais nada da vida, a não ser o prazer momentâneo proporcionado pela mistura química. “Fui preso várias vezes. Também fiquei internado em várias clínicas de desintoxicação”, conta.
Rodrigo por sua vez nunca cometeu um delito. Fica com medo só de pensar nessa possibilidade. “Eu nunca teria coragem de fazer isso. Acho que se eu achar uma carteira procuro o dono para devolver”, diz. Rodrigo foi criado com esses valores. A família sempre o orientou e repreendeu quando preciso. As repreensões sofridas por Frederico foram mais enérgicas. Voadeiras, tapas na cara, chutes no estômago e tiros que passaram muito perto. “A Guarda Municipal já tentou me matar. Não posso mais ficar no Centro de Curitiba porque se não eles me matam”, diz.
Rodrigo às vezes se irrita com as cobranças do pai e da mãe para que se dedique mais aos estudos. Por vezes reclama, discute, mas as coisas sempre acabam bem. Frederico não tem ideia de onde os pais estão enterrados. Levados à terra como indigentes não tiveram tempo de aconselhar o filho ou incentivá-lo a se esforçar nos estudos. “Ás vezes vejo os filhos abraçados com seus pais e penso porque isso aconteceu comigo? Ás vezes eu choro”.
Oportunidades?
Rodrigo sonha em morar em Los Angeles, nos Estados Unidos. Para isso se esforça nas aulas de inglês no colégio e busca conhecer mais sobre o idioma na internet. Sabe que talvez esse sonho ainda demore a se realizar, mas tem certeza de que conseguirá. “Ainda vou morar em Los Angeles. Quero juntar dinheiro, aprender inglês e depois me mudar para lá”, diz. Frederico também tem sonhos. Prestes a se alistar no Serviço Militar ele quer ser soldado. “Eu quero servir o Exército e seguir carreira”. Mas parece que nem ele acredita que isso seja capaz. “Mas acho difícil. Quando terminar meu tratamento vou voltar para um abrigo, daí não sei se o Exército aceita quem mora em abrigos”.
Frederico faz parte de uma realidade que muitos preferem não ver. Negro, morador de rua e viciado em drogas. É estorvo em quase todos os lugares.
– Bandidinho!
Essa frase pareceu saltar dos olhos de muitos que cruzaram seu caminho ao longo dos anos. “As pessoas sempre me olharam diferente. Muitas passam para o outro lado da rua quando me veem”. Um chute aqui, um soco ali e o cidadão que grita da sacada do prédio ao ver o adolescente tomando mais uma sova da Polícia:
– Pau nesse vagabundo!
Segundo o Mapa da Violência 2015 jovens entre 15 e 29 anos são as principais vítimas das mortes por armas de fogo no Brasil. Ao todo 24.882 pessoas nessa faixa etária morreram em decorrência do disparo de algum tipo de arma de fogo, o que corresponde a 59% dos 42.416 óbitos desse tipo registrados em 2012. Negros, como Frederico, são as maiores vítimas. Das vítimas em 2012, 28.946 eram negros e 10.632, brancos – a diferença nos números mostra que as vítimas desse tipo de morte foram 2,5 vezes mais de negros do que de brancos, segundo o levantamento.
Já a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República realizou uma pesquisa em 75 cidades do país no primeiro semestre de 2015 e constatou cerca de 24 mil meninos e meninas em situação de rua. Os motivos, segundo o levantamento são: discussão com pais e irmãos (32,3%); violência doméstica (30,6%) e uso de álcool e drogas (30,4%).
Frederico está inserido nestes números. Porém, mesmo que as pesquisas comprovem sua vulnerabilidade, o que conseguiu do Estado foram alguns tratamentos como o que se submete hoje. Para a Assistente Social e professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina, Eliana Santos, que estuda a relação do adolescente em cumprimento de medida socioeducativa com a escola, e as outras políticas sociais, são muitos os fatores que levam jovens à criminalidade, entre eles as violações nos direitos de crianças e adolescentes. “Primeiro, todos os fatores que envolvem essa questão precisam ser entendidos e colocados num cenário de intensa e pujante desigualdade social. Este é o fator mais importante para se compreender o ato infracional praticado por adolescentes. Isto não quer dizer que o fator econômico é o único e exclusivo fator que impulsiona o acometimento do ato infracional. No entanto, quando se vivência situações reais de privação de condições dignas de sobrevivência, isso pode potencializar o ingresso no mundo da criminalidade”, ressalta.
A professora alerta que a desigualdade social não se apresenta apenas limitada ao acesso a renda. Mas também desencadeia múltiplas violações, muitas delas por negligência do Estado, que não garante via políticas públicas meios de minimizar os impactos da má e discrepante distribuição de renda em nosso país. “Deste modo a massa da população que possui ausência ou acesso parco a renda, logo também lhe será restrito o que seria fundamental para sua sobrevivência: educação, saúde, habitação, transporte, cultura, esporte, lazer, alimentação, todos estes direitos previstos e garantidos constitucionalmente. Nesta lógica, o que contribui para o aumento da violência e da criminalidade envolvendo adolescente são os direitos sociais que não lhes foram garantidos, e a negação destes, é a matriz das outras expressões de violência”, completa.
Redução como retrocesso
Na madrugada do dia 02/7 o presidente da Câmara Federal, deputado Eduardo Cunha (PMDB) conseguiu, por meio de uma manobra, aprovar a proposta de redução da maioridade penal. Depois de perder a primeira votação o deputado modificou o texto e a segunda versão foi aprovada por 323 votos a favor e 155 votos contra, com duas abstenções. Agora a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 171 será votada em duas sessões do Senado. Se aprovada, a Emenda diminuirá a maioridade penal no Brasil de 18 para 16 anos para crimes considerados hediondos.
Tatiane Aparecida Silva Cardoso, advogada militante na área de defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, integrante do Movimento “18 Razões para a Não Redução da Maioridade Penal”, ressalta que a primeira e mais preocupante consequência com a redução da maioridade penal certamente é a da ampliação da criminalidade nas ruas, especialmente porque as facções criminosas que atuam nas cidades funcionam de dentro para fora dos presídios, sendo ali dentro que se arregimentam novos filiados a cada “irmão” que entra, assim, quanto mais gente é encaminhada pra lá, mais se fortalece a criminalidade e a violência nas ruas. “Isso acontece porque o sistema penitenciário é um sistema produtor de violência e criminalidade, tendo um índice de reincidência de cerca de 70%, o que comprova a sua eficácia em manter aqueles que têm passagem neste sistema atrelados à criminalidade após saírem”, diz.
O Brasil que, com mais de 574.000 presos, é o quarto país que mais encarcera do mundo, tem nos presídios um calcanhar de Aquiles. Os dados do Anuário de Segurança Pública de 2014 revelam um sistema penitenciário congestionado por crimes relacionados com o tráfico de drogas e onde 40% dos presos ainda esperam julgamento. O levantamento também mostra que o colapso das prisões é a falta de mais de 220.000 novas vagas. Uma cifra que vem aumentando 10% nos últimos anos.
Para Tatiane, o ingresso de menores no Sistema Penitenciário Brasileiro os tornará os mais vulneráveis dentro da hierarquia estabelecida internamente nos presídios, isto porque o Sistema Penitenciário brasileiro encontra-se configurado de tal forma que os mais fortes, os mais velhos de casa, os mais malandros, aqueles que detêm o maior acúmulo de crimes, são os que mandam lá dentro. “Ademais, a superlotação é uma característica das prisões em todo país, o que faz com que a disputa por tudo lá dentro integre a sua dinâmica cotidianamente, culminando-se em rebeliões e mortes por motivos banais ou mesmo sem motivação. Portanto, inserir adolescentes neste sistema significa, além de estigmatizá-lo precocemente, marcando-o de forma negativa, expô-los a toda sorte de violência, afastando-os completamente dos direitos que lhes deveriam ser garantidos, especialmente por estarem em fase peculiar de desenvolvimento”, completa.
Já existem punições
Cerca de 17,4% das pessoas que cumprem algum tipo de pena no Brasil são crianças e adolescentes com menos de 18 anos, distribuídos em 350 unidades de internação. Os dados são da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH). De um total de 60 mil adolescentes que cumprem medidas socioeducativas, pelo menos 14 mil estão em regime fechado e os demais em regime aberto. São internados os adolescentes que cometem crimes mais graves como homicídio, latrocínio (roubo seguido de morte) ou assalto à mão armada.
Segundo a Subsecretaria de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria de Direitos Humanos, cerca de 70% desses jovens tornam-se reincidentes – e voltam a praticar crimes quando deixam as unidades de internação. Um deles é Robson (nome fictício). Assim como Alfredo ele também está internado na Associação San Julian. Tenta se livrar do crack que há alguns faz com que passe muitos dos seus dias nas ruas.
Robson cresceu com a mãe e mais cinco irmãos. O jovem, que hoje tem 16 anos, já cumpriu medidas socioeducativas em algumas instituições além de já ter ficado internado em outras clínicas de desintoxicação. Com 12 anos começou a usar cocaína e pouco depois conheceu o crack. Em busca da pedra ele cometeu furtos e roubos. Brigou, apanhou da Polícia e de outros usuários. A fala arrastada por causa dos medicamentos usados na desintoxicação revelam que já passou por situações estarrecedoras para alguém tão jovem. “Já cometi vários roubos. Ficava durante dias na rua só usando pedra. Quando minha família me encontrava eu estava muito sujo. Já fui encontrado até dentro de uma valeta”, lembra. Há quase um mês Robson saiu de casa e começou a usar cocaína. Depois de dois dias sentiu seus braços e pernas travarem. Caído no chão, enquanto lutava para não se afogar com a grande quantidade de saliva que saia de sua boca, sentia o coração bater muito forte. O órgão parecia querer sair do peito, criar pernas e abandonar o corpo tão maltratado pelo uso de tóxicos. Ele estava tento uma overdose. “Quase morri. Foi a pior experiência que já tive. Depois disso pedi para minha mãe conseguir um novo internamento. E aqui estou”.
Antes dessa última internação Robson havia sido apreendido por causa de roubos e cumprido medidas socioeducativas. A professora Eliana lembra que o Brasil já é um país que encarcera muito, e encarcera mal. “Nosso sistema penitenciário esboça índices desastrosos no que diz respeito ao rompimento com a prática do crime. Se o que esperamos é superar situações de violência, a melhor medida é a prevenção, nas situações em que a violência já se configurou como um crime grave, somete o castigo não será capaz de evitar que venha a ser cometido novamente. Neste sentido as medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente são mais exitosas”, afirma.
Frederico e Robson admitem que temem fazer parte do Sistema Penitenciário, o que provavelmente acontecerá se a PEC 171 for aprovada no Senado. “Nas penitenciárias tem os Comandos que ditam as regras. Daí, se você se comportar bem e não pisa na bola pode tirar sua cadeia de boa, mas se pisar já era”, comenta Robson.
Uma luz no fim do túnel
Um soluço rompe o silêncio do corredor vazio. O choro é profundo e vem de um adolescente que acaba de ser internado pela família de maneira compulsória. Abraçada a ele vai uma enfermeira da Associação San Julian. O ombro da profissional é um alento em meio ao desespero e o carinho oferecido por estes profissionais faz as dificuldades ficarem mais suportáveis. O jovem, que havia passado dias na rua consumindo drogas, tinha sofrido uma tentativa de homicídio. Um pescador o encontrou agonizando e acionou o socorro. Depois de sair do hospital o internamento na San Julian foi a melhor alternativa encontrada pelos familiares.
Richard Son Kruger é Educador Social na San Julian. Trabalha na instituição há dez anos e acompanhou a trajetória de muitos adolescentes. A Unidade Rached trabalha com adolescentes. A equipe, coordenada pelo Dr. Ricardo Sbalqueiro é formada por profissionais de enfermagem, psicologia e serviço social. Os jovens que chegam costumam estar transtornados. Muitos vêm de situação de rua e estão em tratamento compulsório, decidido pelas famílias e também pela justiça.
Debilitados, abaixo do peso, muito sujos, com piolhos e por vezes violentos. Richard já muitos casos como esse. “Muitos chegam inclusive sob efeito de drogas. O começo geralmente é difícil e nosso trabalho de acolhimento faz toda a diferença nesse processo”, conta.
Nesta década de trabalho Richard já ouviu muita coisa. O trabalho de anamnese realizado pelos profissionais de psicologia revela histórias assustadoras. Uma delas, lembra o educador, é a de um jovem que alterado pelo crack, em busca de dinheiro para a próxima tragada, matou a avó estrangulada. “Muitos dos jovens que passam por aqui acabam voltando para as drogas e morrendo assassinados. Isso mexe muito comigo porque eu crio um vínculo com eles. Por meio do meu trabalho esses adolescentes se aproximam de nós, confiam, se abrem. É muito triste saber que diversos deles perderam a vida para os vícios”, lamenta.
Na San Julian hoje dezenas de jovens recebem tratamentos terapêuticos. Há trabalhos com música, artes e educação física. É uma chance de recuperação. Alguns conseguem e realmente mudam de vida. Muitos não. Frederico deve sair da instituição nas próximas semanas. Não sabe como será o futuro, só sabe que suas chances de dar certo na vida são cada dia menores, principalmente porque os direitos que a vida lhe negou estão sendo cada vez mais substituídos pelas penalidades que o Estado lhe impõe.