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“Proposta traz um enorme prejuízo do ponto de vista da formação humana e também técnico-científica para os estudantes”, afirma Geraldo Horn

Desde que Michel Temer assumiu a presidência em 2016 existem iniciativas que visam enfraquecer e, inclusive, extinguir as disciplinas de humanas no ensino público. A mais recente é uma ideia legislativa que pretende eliminar os cursos de ciências humanas das universidades públicas. O objetivo da proposta é dar mais ênfase a “cursos de linha”, como medicina, direito e engenharias.

O professor Geraldo Balduino Horn, do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Ensino de  Filosofia (Nesef) da Universidade Federal do Paraná (UFPR) concedeu uma entrevista ao Parágrafo 2 onde fala sobre estas investidas que se fortaleceram com a Reforma do Ensino Médio e com a Nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

Parágrafo 2: A nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) terá como disciplinas obrigatórias apenas Língua Portuguesa e Matemática, as demais aparecerão dentro das áreas de conhecimento de forma interdisciplinar. Pensando na chamada “formação de competências” dos estudantes, quais são os maiores prejuízos com as mudanças propostas pela BNCC?

Geraldo: Inicio dizendo que só é possível entender a atual versão do texto da BNCC (Base Nacional Comum Curricular) dentro do contexto da reforma do Ensino Médio e das demais reformas que ocorreram a partir de 2016. A BNCC é mencionada em praticamente em todo o texto da reforma como uma necessidade para a implementação da Lei 13.415/2017.  Uma promessa que só veio a ser cumprida pelo MEC recentemente com a divulgação do texto. Trata-se, na verdade, da terceira versão (do período posterior à promulgação da lei), uma vez que a primeira versão é de 2015, depois saiu uma segunda versão em 2016 e, por fim, a versão de abril de 2018.  A BNCC é, portanto, ao mesmo tempo, anterior e parte integrante da atual reforma.

No meu entendimento, para compreendermos quais são os maiores prejuízos que as mudanças propostas pela BNCC podem provocar, é necessário dizer, antes de tudo, que a reforma do Ensino Médio faz parte dos desdobramentos do golpe patrocinado pelas elites do setor econômico e financeiro que conduziu Michel Temer ao poder por meio de um golpe midiático-jurídico-parlamentar que depôs a presidenta Dilma em 13 de maio de 2016. A reforma do Ensino Médio, condicionada à regulamentação da BNCC pelo sistema de ensino (leia-se conselhos estaduais de ensino e secretarias de educação), é apenas mais uma entre tantas outras medidas autoritárias do atual governo. A aprovação do PLP 257/2016, da PEC 242 (ou 55), da Reforma Trabalhista e a Reforma da Previdência, em curso, entre outras, são uma clara demonstração do retrocesso social, político e cultural que estamos presenciando, hoje, no Brasil.

Penso que sem compreender esse contexto não é possível entender aquilo que, talvez, seja o maior prejuízo da BNCC ao propor e defender a aprendizagem por meio de habilidades e competências. Isso porque, ao longo dos últimos anos, principalmente a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) em 1996, o discurso pedagógico fundamentado na ideia da construção curricular com base na interdisciplinaridade e transdisciplinaridade em oposição ao currículo organizado a partir do eixo disciplinar (conteúdos e métodos próprios – área de referência), passou a ter força e se impôs nos processos de avaliação em larga escala como é o caso das provas do Enem.

Do meu ponto de vista outro grande problema da BNCC é que ela reconhece apenas a Matemática e a Língua Portuguesa como disciplinas curriculares e transforma as demais disciplinas do atual currículo do Ensino Médio em componentes e temas transversais. Isso pode trazer um enorme prejuízo do ponto de vista da formação humana, mas também técnico-científica para os estudantes. Nesta forma de organização curricular não há mais garantia alguma de que os conhecimentos historicamente acumulados em cada campo do saber científico sejam ensinados nos bancos escolares. Todos nós sabemos que a escola é, para a população mais pobre, o único espaço democrático de aprendizagem que existe para ela. Ela não tem acesso a outros aparelhos culturais.

Parágrafo 2: As disciplinas ligadas às ciências humanas, de acordo com a nova BNCC, ficam, agora inseridas e condicionadas a uma suposta interdisciplinaridade e à mercê da escolha dos colégios. Que fatores devem ser decisivos para os colégios darem mais “atenção” ou não às disciplinas de humanas?

Geraldo: Penso que não é de hoje que Brasil se depara com modelos curriculares que procuram minimizar a formação humana suprimindo ou diminuindo a carga horária das disciplinas das humanidades. As reformas do Ensino Médio e Superior, principalmente, ocorreram sob forte influência de modelos estrangeiros.  O teor do texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, n. 5.692/1971, é um claro exemplo da influência de países estrangeiros, no caso os EUA. Hoje, toma-se como referências para implementação da BNCC a Noruega, a Finlândia e outros países europeus sem considerar as profundas diferenças econômicas e sociais entre esses países e o Brasil, sem nenhum critério de natureza cultural, social e de desenvolvimento econômico.

No passado, a referência eram os Estados Unidos. Por quê? Não é difícil intuir. O que funcionou de alguma forma lá fora, na cabeça dos “burocratas de plantão” de Brasília, deve também funcionar aqui. As diferenças econômicas, sociais, culturais e históricas não são levadas em conta. Tudo é possível, afinal estamos num mundo globalizado, assim pensam e assim agem legisladores, em geral, mal preparados para o cargo que ocupam.  No caso da lei em “anos de chumbo” o argumento tinha a ver com a ‘cooperação’ dos Estados Unidos com a educação brasileira, através dos acordos MEC-USAID – Agência Norte Americana para o Desenvolvimento Internacional. Quer dizer, o Brasil passou, então, a receber assistência técnica e cooperação financeira que resultaram nas leis 5.540/68 (ensino universitário) e 5.692/71 (chamado na época de ensino de 1º e 2º Graus).  Sob o signo do desenvolvimento, realizou-se a inclusão generalizada de disciplinas técnicas no currículo, o que exigiu a exclusão de outras, principalmente das disciplinas das humanidades, tornando a formação técnica compulsória.

Lembro também que as disciplinas humanas sofreram um golpe mortal no período da ditadura empresarial-militar com a aprovação da Lei nº. 5.692/71. Essa reforma educacional provocou um despojamento da formação de massa crítica no país por meio da redução da carga horária de matérias que instigavam à reflexão, da mesma forma, a Lei 13.415/2017, provoca um profundo esvaziamento no processo de formação cultural e humana dos jovens e adultos que frequentarão o Ensino Médio nos próximos anos.

Como afirmei na resposta anterior, no meu entendimento, a Lei 13.415/17 à medida que estabelece e reconhece, na BNCC, a existência de apenas as disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa (e Inglês a partir do Sexto Ano) com conteúdos e métodos próprios, descaracterizando as demais disciplinas dos diferentes campos científicos (Biologia, Física, Química, Geografia e História) em componentes e “estudos e práticas” (Filosofia, Sociologia, Educação Física e Artes); à medida que cria os “Itinerários Formativos” (formação específica por área do conhecimento), relegando a responsabilidade da organização curricular aos sistemas de ensino, ela cria um grande problema para os diretores e equipes pedagógicas das escolas. Isto é, impõe uma reorganização curricular dificultando a distribuição da carga horária na grade curricular, por conseguinte, criando um enorme descontentamento entre os/as professores/as. Isso, certamente, provocará uma grande disputa por espaço entre os/as docentes.

Como a Lei delega aos sistemas de ensino (secretarias de educação, conselhos estaduais de educação e diretores das escolas) a regulamentação das propostas curriculares, acredito residir aí uma possibilidade de resistência por parte das escolas para garantir uma proposta curricular que mantenha a presença dos conteúdos da área de humanas e de ciências. Penso que as escolas precisarão se organizar com os professores e estudantes para estruturar propostas, na medida do possível, unificadas por regiões, que dizer, por Núcleos Regionais. Considero também relevante o papel da APP-Sindicato e da Associação dos Pais e Mestres, dos setores de educação e coordenações dos cursos de Licenciatura do Ensino Superior no debate e construção de propostas que possam salvaguardar a formação humana para os jovens e adultos que frequentam os bancos escolares.

Parágrafo 2: O “Movimento Escola Sem Partido” tem ganhado coro na política brasileira e eco entre camadas da sociedade. Na sua visão, sob a justificativa de um ensino neutro, o que realmente pretende tal iniciativa?

Geraldo: Inicialmente gostaria de situar o surgimento da Escola Sem Partido para, em seguida, mostrar como a proposta de educação desse grupo é totalmente equivocada e desmerecedora de credibilidade no contexto atual realidade educacional brasileira.  Esse grupo foi criado por Miguel Nagib com forte apoio e participação da família política Bolsonaro. Surge em 2004 como grupo “revoltados online” (baseado em relato de vivências individuais), depois transforma-se no movimento “Escola Sem Partido e Educação Sem Doutrinação” e, em 2014, o movimento se constituiu em uma Associação Jurídica. Representa o ideário das elites conservadoras, aristocráticas, ditatoriais, de segmentos religiosos fundamentalistas de diferentes matizes e crenças. Grupo liberal de direita, defensores da ordem por meio da repressão militar e do status quo de famílias e corporações econômicas/políticas de destaque no cenário nacional. A organização tem como finalidade combater e eliminar todos os direitos conquistados nos últimos anos em todos os campos sociais, principalmente, no campo educacional.

A conjuntura política dos últimos anos com o avanço de um projeto progressista de sociedade; com a conquista de direitos em diversos setores sociais; com a aprovação da Lei N.10.639, de 9 de janeiro de 2003, que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e a Lei N. 11.684, de 2 de junho de 2008, que torna a Filosofia e a Sociologia disciplinas obrigatórias no Ensino Médio; ademais, com a lei das Cotas para estudantes entre outras medidas populares do governo Lula-Dilma, levou o grupo da Escola Sem Partido a uma prática preconceituosa e fascista em defesa dos ricos e brancos da sociedade brasileira por meio daquilo que é a sua bandeira central: ensino “neutro”. O golpe midiático-jurídico-parlamentar, de 31/08/2016 e suas consequentes reformas, inclusive a do Ensino Médio, reforçou de modo direto o ideário defendido por esse grupo “sanguinário” que provoca e incentiva o ódio contra professores e educadores. Basta ler os depoimentos dos defensores da Escola Sem Partido (verdadeira “tropa de choque”) nas mídias sociais e analisar o recurso iconográfico que utilizam no facebook para desqualificar os professores e intelectuais de renome nacional e internacional como Paulo Freire, Milton Santos e Gramsci.

Os participantes do grupo partem de um diagnóstico (no meu entendimento, totalmente equivocado) de que é necessário mudar os rumos da educação escolar por que há pouco ensino e muita doutrinação em sala de aula, principalmente, por parte de professores que atuam na área das humanidades. Eles acreditam que seus filhos estão o tempo todo expostos a um processo de educação que “faz a cabeça” das crianças e adolescentes ao invés de ensinar conteúdos científicos. Entendem que os professores das disciplinas humanas são, em geral, comunistas e “esquerdopatas”, como costumam afirmar publicamente. É como se os professores tivessem um “poder mágico” sobre os estudantes – que são, via de regra, a parte mais frágil do processo de ensino-, uma espécie de superpoder, tornando-os subversivos e contestadores da ordem, dos bons costumes e das crenças religiosas e políticas, Crenças essas aprendidas pelas crianças em seus “doces” lares. Compreendem que o ensino se transformou em mera “ideologização”.

Por essa razão e em nome de um suposto “ensino neutro/positivo” acreditam que é necessário criar um processo de intervenção normativo e punitivo para inibir o que chamam de “abuso de poder” do professor. E o que é ainda mais grave: o texto do Projeto de Lei faculta aos estudantes que se sentirem “desrespeitados”, “prejudicados” ou “doutrinados” a possibilidade de realizarem denúncias anônimas por meio de 0800. Feita a denúncia o professor/a deverá responder processo sujeito à reclusão. Isso é um total desrespeito à autonomia didático-pedagógica do professor garantida pela Constituição de 1988, reafirmado na LDBEN 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e reforçada na última versão do texto do PNE (Plano Nacional de Educação).

“Universidade, professores, alunos e sociedade perdem com o enfraquecimento das disciplinas de humanas”, diz Geraldo.

Parágrafo 2: O portal “E-Cidadania”, que é uma iniciativa do Senado Federal, abriu votação para que internautas possam apoiar a extinção dos cursos de humanas nas universidades públicas. Para que a ideia se torne uma sugestão legislativa e possa ser debatida no Congresso ela precisa de 20 mil apoios. A justificativa, segundo o site, é que são cursos baratos que facilmente poderão ser realizados em universidades privadas, a medida consiste em focar em cursos de linha (medicina, direito, engenharia e outros). Os cursos de humanas poderão ser realizados presencialmente e à distância em qualquer outra instituição paga. Essa iniciativa é resultado do que? De uma tentativa de enfraquecimento das disciplinas de humanas no ensino público brasileiro? Se sim, quais seriam os maiores motivadores?

Geraldo: Entendo que a proposta que sugere a extinção dos cursos de humanas das universidades públicas é totalmente absurda e autoritária. A sugestão chega ser inimaginável à medida que se apoia numa justificativa claramente discriminatória e classista. Todos nós sabemos que os profissionais formados na área de humanas e sociais aplicadas são pessoas oriundas de segmentos mais desfavorecidos da sociedade: filhos de operários, de funcionários públicos (baixo e médio escalão), de filhos de agricultores, quando não filhos de sem terra e sem teto, pessoas que vem de núcleos familiares que vivem do seu trabalho. Justificar que os cursos de humanas são baratos e que deveriam ser ofertados apenas por instituições de ensino superior particulares e porque qualquer um pode pagar, é, no mínimo, desconhecer a realidade social, econômica e educacional brasileira. Ora, isso por si só denuncia o lugar de onde essa ideia esdrúxula se origina.

Estou seguro que se trata de uma iniciativa do setor privado de ensino, protagonizado por grandes corporações empresariais ligadas, principalmente, ao grupo denominado “Compromisso Todos pela Educação” (Grupo Gerdau, Instituto Airton Sena, Banco Itaú, Instituo Lemann, entre outros). É uma ideia inaceitável que reforça a dualidade da educação no ensino superior: ensino de qualidade para os ricos (para aqueles que podem pagar um ensino médio e cursinhos para passar no vestibular em medicina, direito, engenharia e outros) e um ensino menos qualificado para os pobres (para aqueles que deverão se formar em instituições particulares, muitas delas pouco ou nada confiáveis academicamente sejam elas presenciais ou a distância). Trabalhar e estudar ao mesmo tempo. É claro que existem exceções: há alguns estudantes pobres que conseguem romper com a barreira e cursam medicina, direito… em universidades públicas; há também instituições particulares que ofertam cursos de excelência. No entanto, alerto para o fato de que esse dualismo persegue a história da legislação brasileira justamente porque reproduz e reforça o modelo da sociedade capitalista dividida em classes.

A meu ver todas as medias e reformas do governo ilegítimo, período pós golpe de 2016, estão absolutamente interligadas e fazem parte do mesmo plano: retirada total de direitos por meios legais (apoio do legislativo e judiciário) e também amparado por lei e pelos mecanismos repressivos da polícia (civil e militar). Plano esse que vem se concretizando por meio da reforma do Ensino Médio, da aprovação recente do documento que institui a BNCC, do projeto que propõe a extinção dos cursos de humanas universidades públicas, dos projetos (nacional, estaduais e municipais) da Escola Sem Partido, tentativa do desmonte do programa PIBID, da implantação do programa Residência Pedagógica e da mais recente pesquisa realizada pelos assessores do Bolsonaro (candidato à presidência da República) que responsabiliza as disciplinas de Filosofia e Sociologia pela queda das notas em matemática em anos recentes da avaliação em larga escala, no caso, o ENEM.

Entendo que a principal motivação a favor da argumentação pela extinção dos cursos de humanas das universidades públicas tem a ver com contenção em investimentos na formação profissional de nível superior a curto prazo e na formação apressada de mão-de-obra barata a médio prazo. A motivação, portanto, é política, cultural e econômica.

Parágrafo 2: Quais são os prejuízos no âmbito acadêmico que as universidades públicas terão, caso essa iniciativa ganhe força no Congresso?

Geraldo: Se mais esse golpe tomar vulto e por uma infelicidade total venha ser implantado (o que particularmente não acredito que venha acontecer), os prejuízos serão imensuráveis no âmbito acadêmico e, por conseguinte, na sociedade como um todo. Primeiro, porque as pesquisas comprovam que mais de 80% da produção acadêmica brasileira, incluindo as pesquisas no campo das humanas, vem das universidades públicas (grande parte vem das pesquisas em Ciências Humanas). Segundo, impedir com que as universidades públicas ofertem cursos de humanas significa um duplo golpe: (a) contra àqueles/as que só tem a opção de estudar em ensino público porque trabalham e não possuem condições financeiras para arcar com os custos de sua formação; (b) a favor do ideário pós-liberal, dos defensores do estado mínimo e da privatização dos serviços essenciais como, no caso, a educação.

Penso que delegar a formação de professores para o ensino privado (presencial ou à distância) significa um retrocesso total às condições institucionais e à vida acadêmica como um todo. É inimaginável uma universidade sem cursos de bacharelado e licenciatura em humanas. Cogitar tal possibilidade já é um contra senso total e certamente não terá apoio de reitores, diretores de setores e chefias de departamentos de educação e coordenações de cursos, muito menos por parte dos estudantes e da sociedade em geral. Nem mesmo em períodos de ditadura como de Vargas (1937-1945) e empresarial-militar (1964-1985) esse tipo de proposta vingou. E não será agora, penso, que vingará.

Parágrafo 2: E os prejuízos para a pesquisa científica e a produção de conhecimento dentro das universidades?

Geraldo: Na mesma direção daquilo que afirmei na resposta anterior os prejuízos, caso essa proposta absurda venha a vingar, serão incalculáveis para dentro e fora da universidade e terão um forte impacto, principalmente, para a população mais pobre da sociedade. É praticamente impossível imaginar uma universidade pública que não produza pesquisa científica e produção de conhecimento em ciências humanas.

Há centenas e milhares de periódicos científicos da área de humanas que são editados e veiculados todos os anos nas universidades públicas; há centenas de grupos de pesquisa do credenciadas pelas universidades e reconhecidos pelo CNPq; há centenas de cursos de especialização e de pós-graduação em mestrado e doutorado.  Isso tudo não pode ser desconsiderado.

Imaginar que de uma hora para outra a vontade de uma meia dúzia de aloprados e “burocratas de plantão” à serviço do Sistema S e de grupos e corporações privadas passe incólume, seria como se negássemos toda a história de resistência acumulada pelas ciências humanas seja pela pesquisa de caráter reflexivo e crítico que produz seja pela capacidade de organização e mobilização popular.

Estou seguro que se trata de uma iniciativa do setor privado de ensino, protagonizado por grandes corporações empresariais ligadas, principalmente, ao grupo denominado “Compromisso Todos pela Educação” (Grupo Gerdau, Instituto Airton Sena, Banco Itaú, Instituo Lemann, entre outros)

Parágrafo 2: A sociedade no geral pode ser também prejudicada na medida em que cursos como filosofia e sociologia sejam renegadas a segundo plano?

Geraldo: Penso que sim. A sociedade será seguramente muito prejudicada caso abandone o investimento na formação filosófica e sociológica.  Nem mesmo o positivismo do final do século XIX ousou propor algo dessa natureza. Pelo contrário, a filosofia, de alguma forma sempre foi fundamental e ocupou lugar de destaque na formação humana e na produção cultural e intelectual desde a era clássica da Antiga Grécia. Ocorre que as elites do Brasil atual estão longe de qualquer grau de civilidade humana ou, se preferirmos, nas palavras de Jessé Souza, são as elites do atraso, porque tem sede de poder e estão tomadas pelo mesmo espírito de rapinagem e exploração humana do sistema de escravização.

As ameaças à filosofia e à sociologia objetivamente iniciaram a partir revogação tácita da Lei 11.648/2008 que tornava obrigatório o ensino das disciplinas de Filosofia e Sociologia em todas as séries do Ensino Médio peal Lei 13.415/17.  No caso da Filosofia, sua presença no currículo se dará, a partir da BNCC, por meio de “estudos e práticas”, o mesmo ocorrerá com Educação Física, Arte e a Sociologia. Por enquanto, não é possível dizer com certeza o que isso, de fato, significa. Podemos, sim, afirmar que a Filosofia e as disciplinas, principalmente do escopo das humanidades, serão amplamente prejudicadas e, por conseguinte, essa medida trará sérias consequências para a formação humana das futuras gerações.

No meu entendimento há uma relação intrínseca e mutuamente determinante entre o ensino de Filosofia na Educação Básica e a oferta dos cursos de graduação em Filosofia, especialmente, de Licenciatura.  Se o espaço conquistado pela Filosofia no Ensino Médio não só está ameaçado, mas sujeito, novamente, à extinção, é claro que isso terá um impacto direto na formação de professores. Com a diminuição dos concursos públicos e, por consequência, a precarização do trabalho, torna-se imperativo perguntar: até que ponto os cursos de Licenciatura se viabilizarão? Voltaremos ao velho modelo das aulas “avulsas” de Filosofia? Não tendo mais o espaço institucional-escolar o que restará, agora, à filosofia? Se fazer reconhecer apenas como um “produto de luxo” ou “consultoria empresarial”? Será que teremos de sair nas ruas anunciando: “é o carro da filosofia que vai passando”. Diga-se de passagem, essa dimensão “positiva” e “espiritual” ela já é um produto de consumo do mercado há um muito tempo. Certamente o não reconhecimento acadêmico abrirá espaço para o reino da filosofia-mercado. Disso não tenho dúvida.

Acredito que seja necessário, mais do que outrora, continuar a luta pela manutenção da filosofia na ágora-escola é fundamental, mas também e, talvez, principalmente em tempos de crise, mantê-la na rua, na praça pública, no espaço público como negatividade, como leitura crítica do mundo, seja uma estratégia imprescindível. Aliás, a filosofia nasce na ágora – a partir dos problemas sociais e existenciais humanos-, e de onde ela nunca há de desaparecer.

Parágrafo 2: O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) vem passando por tentativas de desmonte nos últimos anos. O que representa, a seu ver, o enfraquecimento desse programa para os docentes em formação e também para os alunos terão aulas com esses professores?

Geraldo: No meu entendimento, o PIBID é o mais promissor programa de apoio à formação inicial criado nos últimos anos no Brasil. Implantado no governo Lula com o objetivo de proporcionar aos estudantes dos cursos de licenciatura uma maior aproximação com a realidade das escolas públicas de Educação Básica, o programa contribui significativamente com a formação teórico-prática dos/as licenciandos/as. Muito embora tenha sofrido duras críticas por parte do governo golpista e tentativas do MEC de escamoteá-lo e enfraquece-lo o programa continua, no entanto,  com modificações quando comparado às edições anteriores.

A meu ver, a tentativa de enfraquecimento do PIBID (voltado, na atual versão, apenas para os estudantes que se encontram na primeira metade do curso, do primeiro ao quarto período) tem a ver com o recente lançamento do programa “Residência Pedagógica” (voltado para estudantes que já tenham cursado ao menos 50% do curso, a partir da segunda metade do processo de formação). Criado com o objetivo aperfeiçoar o estágio curricular supervisionado e a prática de ensino nos cursos de licenciatura.  Diferentemente do PIBID a Residência Pedagógica promove intervenção pedagógica e regência de sala de aula acompanhada por um/a professor/a que possui experiência na área de ensino do licenciando e supervisionada por um/a docente da instituição superior. Isso é muito similar, do ponto de vista operacional, àquilo que acontece com a oferta das disciplinas de prática de ensino e estágio supervisionado nas escolas, considerando o formato da formação dos licenciandos hoje.

Outro problema que eu vejo nos programas tanto do Pibid como da Residência Pedagógica é o fato deles não atingirem o universo total de estudantes e o fato de funcionarem por meio de fomento na modalidade “bolsas”. Entendo que estudantes em situação de vulnerabilidade social necessitam de apoio financeiro e por isso as bolsas se justificam, mas professores da Educação Básica e Superior são profissionais precisam de bons salários e não bolsas. Aí reside uma das minhas críticas (que faço há anos) em relação à prática do “bolsismo” como forma de sustentar programas temporários e evitar a criação de políticas duradouras de formação inicial e continuada efetivas. Os dados do INEP, de 2017, mostram que dos aproximados 2 milhões de professores da Educação Básica e 2,5 milhões de estudantes matriculados nas licenciatura, tão somente 190.000 serão atingidos pelas ações que a Capes desenvolverá em 2018. Isso revela o quão paliativas, assistencialistas e reducionistas ainda são as “políticas” governamentais voltadas à realidade educacional brasileira.

A meu ver, em boa medida, os constantes ataques e tentativas de enfraquecer o Pibid tem a ver com o “simples fato” de ser um programa e não política de estado. Quer dizer, é, por natureza, inconsistente justamente porque reproduz a segregação e desigualdade no processo de formação (só alguns estudantes terão a oportunidade de participar). Essa crítica também é válida para  o programa  Residência Pedagógica.  Mesmo reconhecendo a importância desses programas, há uma prática de distribuição de “migalhas” e formação “gelatinosa” que é altamente prejudicial tanto para os professores como para os estudantes. Trata-se de um processo que Adorno (filósofo da Escola de Frankfurt), chama de halb-bilgung. O pior disso tudo é que passa a ideia para a sociedade em geral que o governo investe muito para pouco retorno e que, na verdade, precisa mostrar o contrário – a partir de uma perspectiva neoliberal -, que o governo atual é capaz de “fazer mais com menos”.

Diria, por fim, que a tentativa de enfraquecimento do PIBID pela atual política neoliberal está diretamente ligada à implantação do programa Residência Pedagógica na medida em que este obriga as instituições formadoras (ensino superior) a readequação de seus currículos de acordo com a BNCC, ou seja, para atender sua concepção  reducionista de currículo com base na aprendizagem de habilidades e competências. Isso significa, a meu ver, total ingerência em relação à autonomia política, didático-pedagógica das universidades.

Parágrafo 2: A reportagem da Folha de São Paulo; “Filosofia e sociologia obrigatórias derrubam notas em matemática” veiculada em 16/04/2018, atribui o mal desempenho dos alunos do ensino médio em matemática ao ensino de Filosofia. Como o senhor vê esse claro ataque às disciplinas de Filosofia e o quanto ele pode ser prejudicial nesse momento em que se tenta suprimir as disciplinas de humanas no ensino superior?

Geraldo: Penso, sim, que essa matéria da Folha de São Paulo – que divulgou os resultados de uma pesquisa que se diz científica -, é um ataque frontal às disciplinas de Filosofia e Sociologia em múltiplos sentidos. Também compreendo que essa pesquisa corrobora com a estratégia da elite conservadora ao propor o desmonte da área das ciências humanas como conhecimento.  Reforço aqui o que já disse em outro momento da entrevista a que todas as medidas estão interligadas e indicam a mesma direção: destruição dos conteúdos e disciplinas responsáveis pela formação humana-cultural (Bildung) seja na Educação Básica seja no Ensino Superior. Suprimir a obrigatoriedade das disciplinas de Filosofia e Sociologia (Lei 11.684/2008) reduzindo-as em “estudos e práticas; defender a tese de que os cursos de graduação em Ciências Humanas não sejam mais ofertados por universidades públicas, mas sim, exclusivamente pelo sistema privado de ensino (presencial e a distância) com o argumento que são cursos baratos e qualquer um pode pagar; e, levantar a hipótese de que a presença do ensino de Filosofia e a Sociologia prejudica o desempenho dos alunos em matemática, faz, seguramente, parte do mesmo plano, do desdobramento do golpe aplicado à educação.

Penso que essa pretensa pesquisa, de fato, não pode ser levada a sério do ponto de vista acadêmico por inúmeras razões que não vem o caso desenvolver aqui.  Além de tratar-se de uma pesquisa de comparação de dados quantitativos, no mínimo, questionáveis, os autores Thais Waideman Niquito e Adolfo Sachsida apoiaram explicitamente todas as medidas antidemocráticas do governo ilegítimo, inclusive, ao golpe de 2016. Não só concordam como reforçam o estado de exceção vigente em nosso país. Sachsida possui ligação direta com políticos como Bolsonaro e com membros da Escola Sem Partido. Isso, por si só, já diz muita coisa.

No meu entendimento o golpe na educação, especialmente, em relação às disciplinas humanas vem sendo construído há anos, desde o momento em que, a partir de 2006, o MEC passou a ceder espaço, de um lado, para o movimento Compromisso Todos pela Educação (Grupo Gerdau, Instituto Airton Sena, Banco Itaú, Instituto Leman…) e de outro para o CONSED (Conselho Nacional dos Secretários de Educação). Mas foi com reforma do Ensino Médio por meio da MP 476/2016 e depois transformada na Lei 13.415/2017 que o ataque foi fatal com prejuízos à sociedade que ainda não conseguimos mensurar.

Entendo que o ataque às disciplinas de Filosofia e Sociologia seja por meio de pesquisas encomendadas por políticos de extrema direita como Bolsonaro; seja transformando-as em “estudo e práticas” por meio de reformas; seja por meio de propaganda explícita de ódio contra os professores, protagonizada pelos agentes do movimento “revoltados online” (Escola Sem Partido), representa também um ataque à democracia brasileira  – ao estado de direito democrático. É por essa razão que afirmo tratar-se de um ataque às condições históricas do presente e as possibilidades da construção de uma sociedade mais justa e humana.

Digo isso porque essa reforma do Ensino Médio e o texto da BNCC, acompanhadas por sucessivos ataques de segmentos conservadores e neoliberais do modelo capitalista vigente hoje representa um retrocesso e a volta ao passado a medida em que: (a) retoma o princípio central da escola inspirada no modelo de produção taylorista-fordista das primeiras décadas do século XX, combinado com os princípios da flexibilização do “mundo do trabalho” propostos pelo toyotismo; (b) assim como a Lei 5.692/1971, reforça a escola dualista que investe, por um lado, na capacitação de mão de obra para atender as demandas do mercado (visão tecnicista)  e, por outro, na formação geral, voltada à formação de quadros dirigentes da sociedade; (c) destrói a escola com ênfase na formação humanística, resultado de vários anos de debate e de reformas do período da redemocratização (entre os anos após a ditadura Vargas e início da ditadura empresarial-militar); (d)  representa um duro golpe às conquistas da escola de formação humanística e tecnológica – concepção construída nas três últimas décadas (1985-2016) sintetizada, de alguma maneira, na legislação em vigor concebida por meio do eixo Ciência-Tecnologia-Trabalho-Cultura.

 

 

 

 

About José Pires

É Jornalista e editor do Parágrafo 2. Cobre temas ligados à luta indígena; meio ambiente; luta por moradia; realidade de imigrantes; educação; política e cultura. É assessor de imprensa do Sindicato dos Professores de Ensino Superior de Curitiba e Região Metropolitana - SINPES e como freelancer produz conteúdo para outros veículos de jornalismo independente.