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Por que a prefeitura de Curitiba quer dificultar a distribuição de alimentos para pessoas em situação de rua?

Por Kauê Avanzi e Kauan Fonseca

 

Você já deve ter percebido que nossas ruas se modificaram bastante desde o início da pandemia. A população em situação de rua já vinha aumentando significativamente antes da crise provocada pelo Novo Coronavírus, mas esse número se intensificou de maneira brutal entre os anos de 2020 e 2021. O preço dos aluguéis subiu vertiginosamente junto ao preço dos alimentos. O desemprego aumenta exponencialmente, atingindo o maior valor já registrado desde que passamos a medir está estatística, com 14 milhões de pessoas (13,5%), segundo a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Municípios) do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).  O número de desalentados – pessoas que desistiram de procurar emprego e que, por isso, estão fora das estatísticas de desemprego – chega a 16,1%, estatísticas que, juntas, mostram que cerca de um terço dos brasileiros em idade de trabalho não possuem uma fonte direta de renda. Em pesquisa realizada em todo o Brasil pelo instituto Data Favela entre 9 e 11 de fevereiro de 2021 mostra que 70% dos moradores de favela do país não tem dinheiro para comida, dependendo de doações para realizar sua alimentação. Virou cena comum vermos pessoas buscando comida no lixo das grandes cidades brasileiras.

Em um momento em que o comércio está fechado por conta das necessárias medidas de isolamento social, uma população em especial sofre de maneira mais intensa com a fome: a população em situação de rua. Com o fechamento do comércio e restaurantes, pessoas nesta condição não conseguem ter acesso a alimentos nem pela via da doação, que parte dos comerciantes realizam, nem quando conseguem algum difícil dinheiro para pagar pelo prato de cada dia. As ruas vazias implicam em mais barrigas vazias.

Tendo em vista este quadro, movimentos sociais como o MST (Movimento dos trabalhadores Rurais Sem Terra), o MNPR (Movimento nacional da População em Situação de Rua), junto a sindicatos e paróquias e associações de moradores tem realizado sistematicamente a distribuição de marmitas nas praças centrais da cidade, como a Tiradentes e a Rui Barbosa. Mas parece que tal ação tem incomodado parte da nossa população e dos representantes eleição para a Câmara Municipal de Curitiba. Pelo menos é isso que parece ao lermos o projeto de lei de 26 de março de 2021, que institui a criação do Programa Mesa Solidária, no âmbito da Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional – SMSAN, relativo as distribuições de alimentos para pessoas em condição de pobreza. O projeto, de autoria do vereador Tico Kuzma (PROS) em sua primeira página, justifica sua necessidade:

“Atinente à distribuição de alimentos, atualmente vem sendo exercida por instituições de caridade diretamente em logradouros públicos do Município, com ausência de parâmetros organizacionais. Desta forma, se observou em certas ocasiões divergências entre oferta exacerbada/carência relacionadas a procura, acarretando em desperdício de alimentos, e, em outras circunstâncias pela escassez. Nestes moldes gera-se acúmulo de resíduos orgânicos e rejeitos nas vias públicas, ocasionando a proliferação de pragas e vetores urbanos, e, consequentemente, trazendo riscos à saúde da população em situação de rua.” p. 1

     

Este trecho mostra o velho higienismo da nossa “cidade modelo”, e a forma como as aparências são mantidas na cidade de Curitiba. Sob a justificativa de não sujar as praças centrais com os restos de comida e marmitas, assim como preservar a saúde de pessoas que perderam suas casas – como se matar a fome também não fosse questão de saúde – , o projeto visa dificultar estas distribuições de marmitas colocando uma série de exigências a serem cumpridas para a realização deste ato de solidariedade, cabendo à prefeitura conceder ou não autorizações para aquelas instituições que quiserem realizá-lo, como padrão de cozinha, armazenagem dos alimentos e coleta dos resíduos gerados. Por outro lado, o projeto não explicita se haverá algum tipo de suporte para que estas entidades e organizações permaneçam com sua atividade dentro das normas estabelecidas pela prefeitura. Os Artigos 8° e 9° mostram este viés do projeto:

 

Art. 8° Para proceder a distribuição de alimentos no Programa Mesa Solidária em equipamentos adequados ou em logradouros públicos do Município de Curitiba, as pessoas citadas no art. 4° deverão efetuar cadastro prévio junto à Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional – SMSAN, contendo, no mínimo, a identificação completa do serviço voluntário, assinatura de termo próprio, alinhado com as políticas públicas e legislações vigentes na área, conforme descrito no regulamento.

 Art. 9° Aqueles que cumprirem as exigências formuladas pelo Poder Executivo Municipal receberão autorização expressa da Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional – SMSAN para distribuir alimentos à população em situação de vulnerabilidade e risco social, incluindo a população em situação de rua.

 

Sabemos que há uma omissão do poder executivo em relação ao crescimento da pobreza na cidade. Nenhum programa institucional de abrigos para estas pessoas em situação de rua foi criado e até os banheiros públicos estão fechados, dificultando ainda mais o acesso das pessoas a condições de higiene básica, ironicamente um dos argumentos elencados no projeto. É no lapso da atenção por parte do estado que movimentos sociais de luta por terra e moradia, oferecem a estrutura mínima para que muita gente não morra de fome, além de realizar muitas vezes, junto a distribuição das marmitas, a entrega de máscaras, sabão e álcool em gel, ainda que se mantendo a partir de recursos limitados e de doações cada vez mais escassas.

Desde que a cozinha organizada pelo MNPR está ativa, é demandado pelo movimento um posicionamento da Prefeitura, no sentido de assumir a alimentação da população em situação de rua (motim inclusive para atos que ocorreram ano passado), entendendo que garantir que as pessoas não morram de fome é um dever do poder público.  No entanto, e apesar de assumir essa prerrogativa, o que o projeto proposto esconde nas suas entrelinhas é uma tentativa de cooptar o trabalho que a duras custas vem sendo realizado pelos movimentos, organizações e coletivos. Pois se por um lado não oferece nenhuma contrapartida, por outro impõe instrumentos regulatórios e burocráticos que dificultam o trabalho dessas organizações. Em um bom curitibanês, é o que chamaríamos de “caga-regra”.  

Com isso, por curioso que somos, nos perguntamos: com que finalidade a Prefeitura de Curitiba dificultaria a distribuição de alimentos para pessoas em situação de rua exatamente no momento mais crítico da pandemia? Porque ao invés de simplesmente fornecer apoio logístico e sanitário, a prefeitura criaria estas dificuldades? Seria uma tentativa de ganhar publicidade a partir de uma política de fachada (como é tradição no citymarketing curitibano)? Seria medo de que as distribuições de alimentos fortaleçam ainda mais estes movimentos sociais? A vontade de ver as ruas da cidade livre destas pessoas sem resolver nossa crise social? Higienismo puro e simples? A mancha que os pobres representam na imagem da “cidade modelo”? Racismo? Talvez, e só talvez, um pouco de tudo isso?

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.