Foto principal- Crédito: Heloar.
Quanta dor, solidão, medo e desencontros a pandemia de Covid-19 nos trouxe? Viver sob a sombra de um vírus invisível, cerrados sob as paredes de concretos das grandes metrópoles foi tarefa insana para muitos de nós. Alguns engoliram o desespero e mataram dentro de si muito do carregavam. Outros, entretanto, colocaram pra fora por meio de palavras parte do que viveram neste período. E um destes foi o poeta haitiano Carlile Dominique Max Cerília, que preso em um quartinho em um país estrangeiro longe de sua família, cansado de reviver o mesmo dia por quase dois anos, acabou transformando seu confinamento em uma balada poética e uma reflexão sobre o mundo, a vida e o futuro impressos no livro de poesias “A Musa, o Monstro e o Poeta”. A obra acaba de ser lançada pela Editora Viseu e pode ser adquirida por meio deste link.
Dominique chegou ao Brasil em 2018. Veio no final da “grande imigração haitiana”. Nos anos que se seguiram ao terremoto que assolou o país caribenho, em janeiro de 2010, houve uma intensificação da migração para o nosso país. Segundo dados da Polícia Federal, aproximadamente 93 mil haitianos entraram em território brasileiro entre 2010 e 2017. Cerca de 20 mil deles vieram para o Paraná.
Escritor, compositor, músico. Dominique mantém uma coluna no Parágrafo 2 onde narra, por meio de crônicas carregadas de sentimento, as aflições e alegrias de um imigrante longe de casa, num país estranho, muitas vezes hostil e preconceituoso.
Escrever é um dom nato. Estudar psicologia foi uma vontade que surgiu no Brasil e o fez participar do vestibular para imigrantes e refugiados da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Hoje, acadêmico de psicologia, Carlile mora na cidade de Santos, no litoral paulista.
Ao Parágrafo 2 Dominique fala sobre seu novo livro, sobre os livros que ainda virão e reflete sobre as alegrias e temores de ser imigrante em um país continental como o Brasil, cheio de esperança e repleto de mazelas como a xenofobia. Fala sobre o fato de escrever para compensar a angústia de ver o Haiti em frangalhos e de se sentir impotente vivendo a 4 mil quilômetros de sua terra natal.
Confira a entrevista:
Parágrafo 2: Os textos de introdução do livro parecem narrativas de angústias, reflexões, dúvidas, esperanças e também medos. Essa obra é um retrato dos anseios de um imigrante em um país distante, tentando sobreviver em meio à Pandemia de Covid-19?
Dominique: Pra explicar melhor preciso destacar que Dominique é meu terceiro nome e na minha cidade natal as pessoas me chamam mais de Dominique do que aqui. Sabe, nunca parei de escrever meu diário. É uma forma, para mim, de respirar quando sinto falta do país e/ou da minha família. É uma ótima maneira de matar o tédio e a solidão. É bem terapêutico jogar nossos problemas numa página em branco, algo que não nos julga, que nos escuta. E, de vez em quando, pode acontecer que decido compartilhar um pedacinho da minha história com os outros.
É também, para mim, uma forma de conhecer o outro, de sair do meu quarto, do meu silêncio, de fazer parte do mundo. Tem mais. Preciso admitir, minha escrita tem um pouco mais de amplitude. É um instrumento de luta para um mundo mais confiável. Escrevo para enfrentar minha responsabilidade, como imigrante, homem do Sul, em um mundo ocidental que ainda é mantido no confinamento de seu status social. Escrevo para ficar de pé e acordar quem está dormindo no caos do silêncio. Escrevo para gritar, para tolerar o fato de ter saído de um país que ainda precisava de mim. Escrevo para ainda fazer parte da sua história, para me calar na hora de chorar quando meu irmão me acordar, cedo em uma manhã de pandemia, para me dizer que nosso presidente foi torturado e assassinado em sua residência privada, quando minha mãe me conta que ainda houve mortes, que não foi por Covid e que no horizonte ainda estava escuro, escrevo quando não é necessário ser apenas poeta mas também haitiano e quando é necessário contribuir para a reconstrução da dignidade dos meus entes e do mundo ao mesmo tempo.
É a soma de todos esses momentos, fragmentos, que definem minha vida, minha identidade.
Parágrafo 2: Para um poeta, sempre ligado à vida, como foi escrever sob a influência de tantas notícias de morte?
Dominique: Então, escrevo para ser alguém mais do que um imigrante tentando sobreviver à Covid. Na verdade, escrever, para mim, é uma emergência; a urgência de habitar o mundo de forma diferente, com minha história, minha cor, quero dizer minha “haitianidade”, e ao mesmo tempo compartilhar as dúvidas de uma geração de homens e mulheres que buscam se desconfinar, não apenas de uma pandemia, mas também de si mesma.
Você descobrirá bem mais desse lado da minha caneta no meu próximo livro cujo título provisório é “As promessas do exílio”, que será publicado logo após este. Quanto ao prólogo do meu livro “A musa, o monstro e o poeta” você entendeu muito bem. De uma forma ou de outra, todos nós fomos atravessados por esses sentimentos durante a pandemia da Covid-19: ansiedades, dúvidas, esperanças, medo. Também pensamos muito, entre outras coisas, no nosso futuro, nos nossos desejos reprimidos, no fato de termos medo de andar livremente em um parque, de abraçar ou rir com o outro sem que não houvesse duas máscaras no meio, o fato de se sentir preso em sua própria casa, o fato de saber, de sentir que a morte está muito próxima, imprevisível, efetiva, poderosa, que ela pode, a qualquer momento, nos convidar a segui-la para o outro lado sem poder recusar seu convite. Essa pandemia também foi um momento de retrospectiva, meditação, reunião familiar e avaliação social. Além de ser um imigrante que teve que passar por tudo isso longe da família, acho que foi toda a nossa geração tentando sobreviver à Covid. Meu livro de poesia é apenas um trunfo poético que permite entrar levemente nesse período doloroso, sem se machucar demais, sem chorar.
Parágrafo 2: A intenção era escrever sobre a pandemia, ou ela apareceu no meio da produção e foi inevitável não se referir a ela?
Dominique: Não tinha a intenção de escrever um livro em plena pandemia. Aconteceu quando comecei a conversar com essa jovem estudante, a “musa”. Sabe, o ser humano, você o coloca em uma situação difícil, ele sempre vai tentar se adaptar, para recuperar o conforto dele. Acho que, além de querer matar o tédio, queria especialmente me oferecer uma vida social apesar do isolamento. A musa, naquela época, era essa janela aberta sobre a esperança, a sociedade, o futuro e cada poema era essa lufada de ar fresco que me mantinha vivo. De resto, acho que aconteceu por conta própria também, não tive outra escolha senão escrever sobre o que me assustava, que assustava a todos.
Parágrafo 2: Percebo em seus textos uma relação muito próxima com seu irmão Russel. O que ele representa pra você?
Dominique: “Riso!” Meu irmão Russel, meu famoso irmão, ele é mencionado muito em meus livros agora. Nós dois temos um relacionamento um tanto especial. Passamos pela pandemia juntos. Ele foi o único a me convidar para um passeio em plena pandemia. Ele batia na porta do meu quarto de manhã cedo para dizer: “Vamos pedalar”. Aí largava imediatamente o que estava fazendo, pegávamos nossas bicicletas e saíamos sem saber para onde estávamos indo. Podíamos parar em qualquer lugar e conversávamos sobre tudo e nada. Então Russel era a única prova palpável que eu tinha de que ainda fazia parte de uma sociedade humana naquela época. Claro que ele representa muito mais na minha vida, mas no contexto da pandemia, são esses passeios improvisados com ele que quero relembrar. É interessante de um outro lado, eu nem mencionei isso no livro. Acho que queria manter esses passeios privados, e o motivo de tudo isso ainda me escapa. “Riso!”
Parágrafo 2: “A Musa, o Monstro e o Poeta” é seu primeiro livro?
Dominique: Na verdade não é meu primeiro livro. Já publiquei outro livro de poesia no meu país: “Mal et mot / Mal e palavra”, é um crítico sobre o país brincando com palavras, suas dificuldades que eu estava tentando entender na época, bem antes minha viagem ao Brasil.
Parágrafo 2: Quem te ajudou na produção desse livro?
Dominique: Em relação às pessoas que me ajudaram no projeto, posso dizer isso; escrevo principalmente em crioulo e francês. Por uma questão de hábito, é mais rápido e mais natural. Depois então eu traduzo. E, depois da tradução, enviei o livro para amigos que me deram sua opinião e me ajudaram com o português. Como parte deste livro, os professores João e Nathalie, meus amigos Vítor e Pedro me ajudaram a arrumar as coisas.
Parágrafo 2: E o livro vai ser publicado apenas em português?
Dominique: Não. Publicarei a versão francesa e crioula um pouco mais tarde.
Parágrafo 2: Haverá lançamento em Curitiba? Dominique: Sim. Estamos pensando em organizar algo especial em Curitiba para começar. A ideia é unir poesia, música e cultura. Será um evento onde falaremos um pouco sobre o livro, depois com meu amigo guitarrista Stevens, cantaremos algumas músicas da nossa cultura enquanto também lemos poesias. É uma vantagem para mim ser poeta e cantor ao mesmo tempo, e ter um amigo guitarrista para poder imaginar fazer algo desse tipo, como se fosse uma troca cultural falando de um período complicado da nossa vida que ainda está bem perto de nós. Dá mesmo para dizer que ainda estamos nadando nela… “Riso!” E, claro, as pessoas terão a oportunidade de comprar o livro e ter um autógrafo do autor. Em breve, todas as informações em relação a este evento serão divulgadas em nossas redes sociais. Agradeço a oportunidade