Quando adolescente trabalhava com o pai e o tio. O serviço era braçal, pesado, mas o desconforto não era físico. As noites em claro tinham como algoz uma disputa interna, algo com o qual não sabia lidar. O inevitável ganhava força a cada dia, tinha uma personalidade feminina aprisionada em um corpo masculino. Vivia duplamente, rapaz na hora do trabalho e na frente da família, moça no íntimo, na frente do espelho enquanto se maquiava. Mas a luta interna era desproporcional e o lado feminino veio à tona. A família, infelizmente, reagiu muito mal. Tudo o que Renata Lisboa havia comprado por meio do seu trabalho foi “apreendido” pelos parentes. Levaram roupas, TV, maquiagem, medicamentos para tratamento hormonal. Assim, ficaram no quarto ela, um colchão e um quadro depressivo profundo. Perdida entre as exigências familiares para que “voltasse a ser homem” e a certeza de que nascera com o gênero feminino, tentou dar cabo da batalha por meio de cortes profundos no braço esquerdo. Falhou na missão. Sangrou e conseguiu ficar mais debilitada ainda. Quando as coisas pareciam não poder piorar, veio o ultimato da família: “Ou você para de ser sem vergonha, ou vai ter que sair dessa casa”. E assim ela fez. Foi para o centro de Curitiba sem nada. Não tinha dinheiro, nem pertences, nem companhia. Vagou por quatro dias dormindo sob marquises e se alimentando da caridade de estranhos. Chorou, desafiando o funcionamento de suas glândulas lacrimais que trabalharam sem parar durante dias e noites. Até que surgiu um convite e um recomeço. Orientada pelo Transgrupo Marcela Prado foi acolhida na Casa de Passagem Feminina e LBT de Curitiba. Nos últimos cinco meses, Renata renasce, aos poucos.
Hoje procura emprego durante o dia e volta para a Casa de Passagem no fim da tarde. Lá, ocupa horas lendo contos e romances. Refugia-se em obras de Cristóvão Tezza e Daniel Galera. Estuda para fazer o Enem e, por meio dele, pretende ganhar uma bolsa e cursar cinema. “Tenho sonho de fazer produção de cinema, trabalhar com documentários. Me vejo dirigindo, muito bem resolvida, feliz, sonho com isso quando estou deitada à noite, um pouco antes de dormir”, conta Renata. Aos 22 anos sente-se esperançosa, mas extremamente decepcionada consigo mesma. “Fico decepcionada comigo porque não tive coragem de enfrentar minha família antes, queria ter me imposto. Mas não consegui”.
Renata é uma das 27 acolhidas que estão hoje na Casa Feminina e LBT (para pessoas que se identificam com o gênero feminino) da capital paranaense. O local é coordenado pela Fundação de Ação Social (Fas) de Curitiba e representa, em muitos casos, uma chance de reintegração no meio social e no mercado de trabalho.
A casa
A sala de paredes e cerâmicas brancas, que acomoda três sofás em formato de “L”, lembra, por um instante, a recepção de uma clínica médica. Porém, sobre um raque de madeira uma TV Semp Toshiba de 29 polegadas transmite um show do grupo Raça Negra. No aparelho, colocado no lado esquerdo do cômodo, percebe-se o vocalista Luiz Carlos secando o suor do rosto antes de cantar “Vida cigana”. Todas sentam-se relaxadamente para apreciar o show. Os pés descalços sobre o sofá necessitam de um par de meias e elas são trazidas por uma educadora.
– Vista, está frio, seus pés já estão gelados. Ela diz.
A senhora de cabelos brancos, muita magra, provavelmente é mais nova do que sua aparência mostra. Deitada no sofá ela acomoda os pés no colo de outra acolhida. O clima é amistoso.
A Casa de Passagem, que existe há pouco mais de um ano, tem capacidade para atender 44 acolhidas. Já recebeu 47 em uma noite de frio intenso. Hoje há 26, mas o número varia, pois algumas delas saem e ficam dias sem aparecer. A média de permanência no local é de três meses, existem casos, porém, como o de Renata, em que a acolhida permanece por mais tempo. A coordenadora do local, Vanessa Ferreira Lang, ressalta que a proposta da Casa é oferecer uma outra alternativa que não a rua. “Na rua elas estão à mercê de todo tipo de violência. Então a Casa é uma alternativa que elas têm”, diz a profissional que coordena o trabalho de mais de 20 funcionários entre educadoras, pedagogas, motoristas e pessoal de limpeza.
Chorou, desafiando o funcionamento de suas glândulas lacrimais que trabalharam sem parar durante dias e noites
As acolhidas chegam por meio de encaminhamentos feitos pelo serviço 156, pelo Centro de Referência Especializado de Atendimento à População em Situação de Rua (Centro Pop), os Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas), o Centros de Referência de Assistência Social (Cras), além dos trabalhos de resgate da Fundação Social de Curitiba. A maioria chega na Casa com algum problema de saúde, seja de ordem física, ou de ordem mental. Assim, elas são encaminhadas a uma unidade de saúde para passar por atendimento e exames. Muitas fazem tratamento medicamentoso.
As maiores dificuldades enfrentadas tanto pelas acolhidas como pela Casa vêm, segundo a coordenadora, da dependência química e de álcool. As vítimas de dependência são encaminhadas a um Centro de Assistência Psico Social Álcool e Drogas (Caps AD) ou a clínicas de desintoxicação para fazer tratamento. Mas, muitas delas, quando abstinentes, abandonam a casa e acabam indo para as ruas. Algumas voltam, outras não. “A dependência química é a maior dificuldade delas e também a nossa. Já houveram, inclusive, casos de violência dentro da Casa por parte de acolhidas que eram dependentes de álcool ou drogas. Essas ficam proibidas de voltar”, revela Vanessa.
No entanto, na maior parte do tempo, o clima na casa é pacífico. As acolhidas criam laços de amizade entre si, trocam experiências e desfrutam juntas das possibilidades que o local oferece. No lar há trabalhos específicos na confecção de documentos de identificação e carteira de trabalho, fato determinante para as que procuram emprego, além de tentativas de retomada de vínculos familiares. Estes, porém, são um grande desafio. “Os vínculos familiares são muito frágeis, as famílias que tiveram muitos problemas, principalmente por causa do uso de álcool e drogas por parte de alguém que hoje é uma acolhida, não a quer de volta. Algumas mães vêm fazer visitas, trazer roupas, produtos de higiene, mas não reatam o relacionamento a ponto de levar essa acolhida para casa”, ressalta Lang.
Kit renascimento
Beliches repletos de objetos pessoais. Sobre os colchões lençóis rosas milimetricamente esticados. Alguns sapatos, bolsas e os pertences de toda uma vida que se espremem em uma sacola de pano. Sob as paredes da Casa de Passagem não se escondem apenas corpos maltratados pelo frio petit-pavé curitibano. Há vidas que sonham em se refazer.
Sobre cada criado mudo alguns vidros de shampoo e condicionador, cremes para as mãos, para o rosto, desodorante roll on e uma bíblia. Parece que todas elas têm seu “kit renascimento”. Se na rua as condições de higiene são precárias, na Casa as chances de se sentir melhor com a aparência vêm de doações feitas, muitas vezes, pelos próprios familiares. Além de cosméticos há a busca por algo, que possa, quem sabe, aplacar feridas emocionais. Para muitas, o livro sagrado do cristianismo age como tal remédio.
Aos 49 anos de idade e pedindo para não ser identificada, uma das acolhidas tem os objetivos para o futuro bem traçados. Há quatro meses na Casa de Passagem ela veio de uma clínica de reabilitação onde se tratou da dependência de cocaína e álcool. Lembra que perdeu tudo por causa do problema com drogas, desde de emprego, bens materiais e família. “Perdi tudo. Morei na rua durante um tempo e ali cheguei no fundo do poço. Comia por meio da caridade e me drogava fazendo correria para outros usuários. Sofri muito na rua, mas a maior dificuldade que encontrei é tentar não se abalar diante dos olhares de desprezo. É algo silencioso, mas que machuca muito”, conta. Os meses na Casa de Passagem, além de fortalecer a esperança em dias melhores, lhe deram a chance de se preparar para prestar concursos públicos em cidades da Região Metropolitana. “Prestei dois concursos e estou esperando o resultado. Esse é meu objetivo de vida, me estabilizar financeiramente, alugar uma casa e ajudar minha mãe que tanto fiz sofrer”.
Higienismo
Segundo a Fas, para saber ao certo o número de pessoal em situação de rua na capital paranaense seria necessário um censo oficial e mesmo assim, seria impossível ter exatidão, justamente por se tratar de um público heterogêneo e que vive em constante trânsito. No entanto, a Fundação afirma que suas equipes de abordagem, que trabalham 24h por dia, acreditam que hoje existem entre mil e mil e duzentas pessoas vagando pelas ruas de Curitiba. A Fas ressalta também que vai iniciar, ainda no primeiro semestre de 2016, um levantamento que além de contabilizar o número de pessoas em situação de rua, vai conseguir traçar um perfil desta população.
O termo em situação de rua também é bem complexo. Se refere exclusivamente às pessoas que fazem da rua a sua morada, mas muitos ficam de passagem, casos de migrantes, ou que ficam um ou dois dias.
No entanto, os “invisíveis” que dormem sob marquises, costumam ganhar grande visibilidade de quando em quando. Nesse ano, no mês de janeiro, a Associação Brasileira de Bares e Casas Noturnas (Abrabar) Brasil criou uma polêmica ao defender no Facebook a retirada dos mendigos das ruas de Curitiba, no Paraná, “por bem ou por força”. Depois desse posicionamento os debates a cerca de pessoas em situação de rua ganharam força. Pré candidatos a prefeito condenaram a prefeitura de Curitiba pela situação nas principais avenidas da capital.
A medida higienista proposta pela Abrabar, inclusive, é aceita por muitos comerciantes do centro que veem, na figura do andarilho, um problema a ser resolvido de qualquer maneira, mesmo que fira o direito de ir e vir garantido pela Constituição Federal. Os discursos higienistas porém, começam a sair das redes sociais e ganhar as ruas. No domingo (27) dois moradores de rua foram baleados enquanto dormiam por volta das 23h30 na Praça General Osório. De acordo com a Polícia Militar, uma das vítimas, uma mulher de 43 anos, morreu antes da chegada do socorro. Segundo alguns relatos, o atirado teria dito que “não gostava de moradores de rua”.
Diante do caso de violência, a presidente da FAS, Marcia Fruet, foi às redes sociais dizer que o crime contra a moradora de rua no Centro de Curitiba é culpa dos higienistas sociais.
Confira a nota publicada no Facebook:
“Esse é o resultado das exigidas medidas higienistas, propaladas como civilizatórias. Quando os representantes de classes verbalizam o ódio, a intolerância, legitimam a violência, despertam o que de pior há no ser humano.
Alertamos reiteradas vezes. Fomos chamados de inoperantes, entre outras coisas. O assunto virou mote de campanha eleitoral (a propósito, o nome do cidadão não é Rafael, candidato. É Roberto. E se sentiu extremamente desrespeitado em ter sua imagem publicada, apesar de pedir que não o fizesse. Se assustou com a parafernália de luzes, câmeras e rebatedores com o que o sr. foi pra rua, “caçar” um personagem).
Quem escondia os pobres em fazendas na RMC ou em imóveis insalubres faz agora da questão social – motivada grande parte pela crise que assola o país e pelas drogas – escada e palanque, bradando que Curitiba está “suja” por pessoas em situação de rua, que cheira mal. Este homem que atirou em dois cidadãos na rua foi legitimado e deve ter sido convencido por estes discursos. Infelizmente. ”
Alheia a discussões movidas por interesses comerciais e políticos, a Casa de Passagem Feminina e LBT se consolida como uma oportunidade além da rua. Onde algumas encontram apenas descanso, comida e banho quente, outras descobrem a possibilidade de refazer a vida.
Para encaminhamentos para a Casa de Passagem Feminina e LBT de Curitiba é necessário solicitar o resgate da Fas pelo telefone 156.