Uma personagem é mais que um nome ou um tipo; sua inserção e desenvolvimento num romance levam tempo. Uma boa história encadeia personagens, as constrói com cadência e cuidado; sempre servem a algum propósito na narração. Algo que palavras sucintas geralmente não conseguem dar conta. Canções e poesias quase não contam histórias; seus personagens também não tendem a ser aprofundados. Mas o samba criou os seus.
E aqui não falo de pessoas reais caricaturadas, ou cuja vida criou uma história a ser cantada. Não falo aqui de sambas-enredo. Também não falo de pessoas que se fizeram na história do samba. Falo aqui de sambas que cantam histórias através de personagens.
Tinhorão, Sérgio Cabral, Simas, João Máximo e tantos outros historiadores do samba caracterizam as canções como “crônicas do cotidiano”; uma espécie de registro da vida (e morte) das classes marginalizadas (em particular dos morros da capital carioca).
Muniz Sodré, em Samba, dono do corpo (1998) dará o nome de “caráter proverbial” do samba; mais do que registrar a vida para quem o vê de fora, o samba carregaria um sentido para dentro das comunidades, de cantar suas histórias e lendas, seus valores e sabedorias. O que colocaria os sambistas como griots contemporâneos, guardiões da memória social da comunidade.
E assim como nas lendas dos griots, o samba canta personagens. Reais, como em Besouro da Bahia (João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro, 1982) onde se canta a memória de Manoel Henrique Pereira, o Besouro Mangangá; fictícios, como Beto e Tião, em Beto Navalha (João Nogueira, 1972).
Personagens cuja história é narrada, como em Rei Chicão (Wilson Baptista, gravada em 2011, composta em meados da década de 1960), onde Wilson fala de um Chicão que ajudou na Revolução de 30, e a partir de então passou a comandar a comunidade. Cuja história é exaltada, como em Zé do Caroço (Leci Brandão, gravada em 1985, composta em 1978), onde Leci exalta a liderança comunitária de José Mendes da Silva, morador do morro do pau da bandeira, que instalou um alto falante no morro para passar informações para a vizinhança. Ou cuja história serve como exemplo de vícios que a comunidade não deve manter, como o Chico, de Chico não vai na corimba (Zeca Pagodinho e Dudu Nobre, 1998), que deixou de manter os hábitos espirituais e religiosos prezados pela comunidade.
Poderíamos pensar em mais divisões e subdivisões categóricas para estas personagens do samba. Mas é Laurindo em particular que nos chama atenção. Laurindo é meio icônico; talvez mais conhecido pela música de Noel, Triste Cuíca (Noel Rosa e Hervé Cordovil, 1935), onde a cuíca de Laurindo desperta o ciúme de sua companheira, e acaba lhe trazendo um triste fim. Mas é na trilogia de Wilson Baptista que ganha uma dimensão que ultrapassa o limite definido da realidade factual.
As três músicas se colocam em meio ao período de convocação para a Segunda Guerra Mundial; em Lá vem Mangueira (Jorge de Castro, Haroldo Lobo e Wilson Baptista, 1943). Laurindo, que é apresentado como mestre sala da Mangueira, é convocado para o exército e não pode desfilar; e desce Mangueira o morro. Lá vem mangueira, sem Laurindo a sua frente.
Em Cabo Laurindo (Wilson Baptista e Haroldo Lobo, 1945) ele retorna da guerra como herói; mais do que pelo reconhecimento dos seus feitos na guerra, era o princípio que defendia: “Conheço os princípios/Que Laurindo sempre defendeu/Amigo da verdade/Defensor da igualdade”. A volta de Laurindo é também um presságio da igualdade para o morro: “Dizem que lá no morro / Vai haver transformação / Camarada Laurindo / Estamos a sua disposição!”.
Por fim, em Comício em Mangueira (Wilson Baptista e Germano Augusto, 1945) Laurindo discursa na quadra da Mangueira: “‘Eu não sou herói’ / Era comovente sua voz / ‘Heróis são aqueles que tombaram por nós’ / […] Toda escola de samba rezou / Laurindo então lembrou os nomes / Dos sambistas que tombaram”, e finalizando com os versos “Mangueira tomou parte na vitória / Mangueira mais uma vez na história”.
Laurindo é fictício; mas o que ele significa não. Seus valores são os valores da comunidade do morro de Mangueira. Nesse sentido, os versos de Wilson ecoam versos de grandes sambistas da Verde Rosa, como Cartola. Mas o que mais chama atenção é que em 1948 estrearia como mestre-sala da Estação Primeira aquele que é considerado o maior mestre-sala dos desfiles de carnaval – famoso por nunca tirar nota menor que 10 em seus desfiles. Seus valores, como velha guarda da Mangueira, são os mesmos de Laurindo. Seu nome, Hélio Laurindo da Silva, o Delegado.
(Para quem quiser acompanhar as músicas indicadas por essa coluna, essa é a lista de reprodução no spotify: https://tinyurl.com/QuandooSambaAcabou. Entre parênteses indico os compositores das músicas, junto com o ano da primeira gravação dela. Quando há evidências de data de composição anterior, indicarei no corpo do texto.)
Foto que ilustra o texto disponível em: https://www.facebook.com/GRESEPMangueira/posts/4016502218411873