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Período Eleitoral e o apagamento dos legados ancestrais brasileiros

Por Luzia Lapa 

O velho ditado “trabalhadores uni-vos” que impulsionou as lutas por direitos no Brasil, entre elas a CLT, a criação da LDB de 1996, a redemocratização e a criação do SUS, encontra-se silenciado na memória coletiva. Fruto de uma memória histórica pouco trabalhada, soma-se com a veiculação de mentiras a favor dos mesmos e velhos donos do poder. Resultado de uma semi-formação imposta, seguimos na contramaré de nossa ancestralidade, aquela que abriu os caminhos do que usufruímos no presente. Mesmo que quebremos ciclos históricos, corre-se o risco que eles se repitam. A cultura é imperativa, ela costuma reviver velhos fantasmas ainda mal elaborados ou pouco falados por terem ficado a sombra do medo.

Theodore Adorno (1975) analisa os componentes da produção da propaganda do nazismo, voltada no período, à produção de captar apoio popular à abolição da democracia e a manipulação das massas para apoiar o extermínio dos judeus. Os estudos pós-barbárie comprovam o uso da psicologia das massas para a produção da paranoia social, fomentando o uso repetitivo da propaganda e alimentando o ódio programado com vistas a criar uma unidade social pró-fascista. Na agitação da propaganda encontramos os elementos de especulação de cunho psicológico (não se concentrava, portanto, no plano do político, mas nos aspectos da produção midiática de uma agressividade irracional); explorava os aspectos do narcisismo e os problemas do ego, ou seja, o padecimento psicológico já imperativo no plano social “numa era em que, por motivos socioeconômicos, testemunha o declínio do individuo e seu subsequente enfraquecimento” (ADORNO, 1975, p.411).

O sentimento de se entregar a um exterior que traga segurança em meio ao aprofundamento da crise, foi profundamente explorado pelos feitores da propaganda nazista. Ela tinha caráter programado, sequencial, repetidor e após seu consumo, mesmo que com comprovações às falsas colocações, se impedia ao consumidor, pela interdição do pensar, o acesso à superação paranoica. Como operava no campo da psique profunda, tornou o ódio um importante interditor do pensamento. Nesse sentido, pode-se entender o processo de entrega entre pares às autoridades, que acreditavam que era preciso realizar a programada higiene social. A propaganda se voltava ao “risco” social permanente que provinha dos guetos pobres e dos judeus.

A memória não se faz apenas com conhecimento da história. Ela se dá pela vivência dos que andam juntos, com troca de saberes, aprofundamento de raízes e de conhecimento. Seu apagamento, favorece o consumo do imediato, somado aos mal estares não compreendidos como fenômenos sociais mais amplos.  Pouco tempo atrás, educadores com clara consciência da importância de se resgatar raízes, avançaram. Sua voz virou lei, a LDB e as Diretrizes Curriculares; sua cultura, patrimônio imaterial da humanidade por meio da lei de veiculação da cultura afrobrasileira nas escolas. O silenciamento destes pelo processo ditatorial brasileiro, virou num passado muito recente, uma comissão chamada Comissão da Verdade, a fim de desconstruir as sombras de um apagamento forçado das lutas do povo brasileiro. São eles negros e negras, indígenas que foram torturados em praça pública e tiveram seus nomes apagados da história. Poucos os conhecem.  Imigrantes que tiveram que se esconder em porões naquele tempo, hoje estão novamente acuados, são rechaçados ao coro do hino nacional brasileiro, que apaga em palavra unisona, as contradições que os donos do poder tentam esconder.

O fenômeno social do fascismo, formado na cultura e preso nos labirintos secretos de cada um de nós, avança. No caso a-brasileira, não são agora os judeus a bola da vez como no nazismo, mas a criação do caricato do comunismo que pode se “esconder” no professor bem formado e politizado, no movimento social que busca organizar os trabalhadores para que possam agregar força e alcançar seus direitos, ou naqueles que, pela conquista das lutas, hoje podem acessar o conhecimento profundo da universidade, podem alimentar-se com o mínimo de dignidade, podem morar numa casa financiada por programas sociais, coisas que seus ancestrais jamais puderam viver. Se hoje vivemos com alguma dignidade, devemos gratidão aos nossos antepassados que por sua luta, ainda que apagados da história, permitiram que chegássemos até aqui, ou que pudéssemos escrever um texto como esse. A liberdade é uma conquista, feita com coragem e amor ao todo, extrapola o individualismo vazio de uma pequena ciranda de mãos e está muito além do principio de calar-se para autoconservar-se ou de aceitar como verdade informações do imediato. Vários de nossos antepassados seguiram na contramaré do medo. E por causa disso, hoje existimos.

Tudo isso é resultado de conquista, extrapola planos de partidos e tem sido construído há muitos séculos. O ranço pós-colonial e escravocrata renasce na mente do colonizado, educado para admirar o colonizador.

Manifestação em Curitiba- 29/10

Em plena expansão do regime neoliberal, com a retirada de direitos, apaga-se aquilo que acompanha a luta das classes sociais. O trabalhador é individualizado e constroem a partir da educação uma nova moral, puramente meritocrática e de rechaçamento à diversidade e à aqueles que lutam e lutaram pelo direito à educação, à saúde, à abolição da escravidão, ao direito de ser respeitado por sua orientação sexual, opção religiosa, entre outros. A padronização e o controle do ensino vem caminhando para a responsabilização individual de professores e escolas pela precarização adoecedora ora imposta.  Este movimento faz parte da ‘necessária’ adaptação dos jovens e suas comunidades escolares tão diversas a entrarem na “ordem” da crise. Os que ocuparam escolas denunciando este fato, hoje são punidos pela justiça a pagar o preço por defender a educação pública. A Nova Reforma do Ensino Médio, esvazia o conhecimento necessário para que acessemos a memória coletiva e possamos avançar com o legado ancestral que nos foi deixado. O desenvolvimento de habilidades, que podem ser transferidos da educação escolar para outros campos da vida a fim de adaptar a juventude ao emprego cada vez mais escasso e precário (combinado à necessidade de empreender para não morrer de fome), forma o que Wendy Brown (2016) denomina de “Cidadania sacrifical”. É ao indivíduo que depende sua educação, sua saúde, sua dignidade. Na lógica neoliberal é preciso criar o consenso de estes não são mais direitos e por isso podem ser privatizados, ou seja, colocados na ordem do mercado que clama por expandir-se.  Estamos no tempo em que a riqueza lucra mais com papéis do que com a produção de bens de consumo. A era do capital financeiro, demanda que sejam apagados velhos legados em nome da ordem imposta pelos senhores do poder a fim de nos adaptar a uma crise de longo prazo que extrapola governos.

Sob o véu de uma semi-formação que beneficia o apagamento da memória coletiva, nega-se a face daqueles que lutaram pela democratização do país.  Nenhum direito nos foi dado. Nem o SUS, nem a educação pública, nem o bolsa família, nem os direitos trabalhistas. Eles existem porque com clareza, coletivos de trabalhadores se organizaram e assim agregaram força social para fazê-los lei. Mas por que hoje, muitos de nós não nos reconhecemos enquanto trabalhadores? Mas, por que não conhecemos os rostos daqueles que lutaram por aquilo que usufruímos hoje? Por que não são nomes de praças? Por que não aprendemos sobre eles nas escolas? Por que no presente, a mentira vira verdade e esta falsa verdade grita “não ter havido nem ditadura nem repressão”? Nos fazem crer num salvador, que trará a segurança que procuramos. Exploram nosso desespero. Criam a paranoia social. Fazem-nos sofrer ainda mais e sambam sobre cadáveres (Mariele Vive e não pode ser apagada)! Fazem-nos consumir mentiras e as reproduzimos, tornando-as verdades.

Porque acreditamos que um homem rico, autoritário, racista, machista, xenofóbico pode nos aliviar a dor da perda de nossos direitos e da capacidade de bem viver, se ele mesmo se propõe a exterminar aqueles que por direitos lutam?

Há de fato uma paranoia social que possivelmente aceitamos. Paranoia é uma ilusão que não condiz com a realidade, mas nos pesa e a repetimos o tempo todo, pois nos desespera e nos parece verdade. Falta-nos as ferramentas que apenas uma parte muito seleta da população consegue ascender. O conhecimento é poder: poder de entendimento profundo da realidade. A liberdade também é poder. Querem tirá-los da juventude porque sabem o poder que trazem no processo de transformação da vida coletiva. Em tempos de ampliação das políticas neoliberais silenciadas pela grande mídia, nos fazem crer que cotas sociais e raciais são vitimismo, esquecemos que o conhecimento sempre foi negado as classes populares. Querem nos tirar as poucas ferramentas de poder que temos.

Consumimos sem refletir com profundidade a ideia simplista de que existe uma “sombra comunista” ameaçadora de nossa segurança e bem estar. Não nos perguntamos se há base material para que algo do tipo aconteça (e obviamente não há). Pelo pouco acesso a níveis mais profundos de entendimento, somos engolidos pela paranoia social construída a imagem e semelhança do método nazista de propaganda. Aos nossos olhos, não é mais o judeus e os moradores do gueto o grande perigo: agora entregamos nossos pares acreditando que estes são o verdadeiro mal da sociedade. Dizem-nos: Cuidado! O professor que caminha conosco pode ser o dito “doutrinador”; o homossexual que caminha conosco, é um “doente” que pode tornar epidêmica sua doença; o vizinho que vemos todos os dias pode ser um perigoso “comunista”; a mulher politizada e empoderada que caminha conosco não é nada mais do à dita “feminista ignorante e histérica sem motivos”; os homens e as mulheres negros e negras que caminham conosco são colocados como ”mercadoria barata” de um velho “mercado negro” pesado em “arrobas”. Os negros e negras refugiados que caminham conosco nas ruas, são apontados como invasores que roubarão nosso emprego, apesar de que a eles só estão abertos os trabalhos que beiram a semi-escravidão.

Tão distante de nós os senhores, mas tão jovem nossa democracia. Muitos de nós, com seus descendentes esquecidos, adora em período eleitoral, a descendência dos filhos do senhor.  Talvez não percebamos, mas distraídos permitimos que cortassem nossas raízes enquanto trabalhávamos muito. E, do porão secreto dos brancos senhores, segue guardada sua indignação contra nossos ancestrais, aqueles já esquecidos por nós, cuja existência passada permitiu que estivéssemos hoje aqui, trabalhando e vivendo com maior dignidade do que antes.

Porque acreditamos que um homem rico, autoritário, racista, machista, xenofóbico pode nos aliviar a dor da perda de nossos direitos e da capacidade de bem viver, se ele mesmo se propõe a exterminar aqueles que por direitos lutam?

A cada dia são assassinados inúmeros integrantes de movimentos sociais e sobre isso nada se vê nas fake news que consumimos para alimentar nossa paranoia social. No campo, em comunidades tradicionais e indígenas o número de assassinatos, torturas e destruição de moradias, plantações e outros ataques à comunidades é alarmante. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), foram 61 assassinatos em 2016, 70 em 2017 e 12 contabilizados no início de 2018 (AGENCIA BRASIL, 2016) (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, 2018) (BRASIL DE FATO, 2018). Se a paranoia se orienta pela criação de uma “verdade ilusória” que causa ao sujeito profundo sofrimento e pensamento repetido de medo lhe tirando o potencial reflexivo, talvez seja o tempo de clarear nosso olhar para além da ilusão proposital  e midiática até agora criada. É preciso que olhemos dados concretos e fatos. Enquanto perdemos energia discutindo o projeto dos poderosos como se fossem nossos, desconstruímos laços de solidariedade entre aquele que apesar de diverso nos é igual na dificuldade de pagar as contas, de educar os filhos, que vive em insegurança constante e luta para manter a vida com o mínimo de dignidade. E se ao invés de nos degladiarmos, auto-refletíssemos contra o ódio criado para nos segregar?

O ódio interdita o nosso pensar, faz com que nos tornemos inimigos. Algumas igrejas alimentam no presente o ódio. Desconstroem em período eleitoral o amor que deveria unir os filhos de Deus. Apagam a memória de nossos ancestrais. Deixam temerosos seus fiéis, diminuem seu potencial de agir. Fortalecem a imposta semi-formação que nos acompanha.

De cada 10 eleitores de Bolsonaro, 6 formam-se via whatsapp segundo a pesquisa do Data Folha publicada no dia 03 de outubro de 2018. É preciso reconhecermos: nós sabemos o que realmente estamos apoiando? Quem são aqueles que caminham conosco? São professores? São homossexuais? Fazem parte de algum movimento social? São negros ou são negras? São refugiados? Os protegemos nesse momento ou os rechaçamos com o ódio? Eles merecem ser entregues de bandeja ao fascismo programado?

 

Referencial de apoio

ADORNO, Theodor W. A teoria freudiana e o modelo fascista de propaganda. 1975. Disponível em: < https://nupese.fe.ufg.br/up/208/o/Theodor_Adorno_-_A_Teoria_freudiana_e_o_modelo_fascista_de_propaganda__1951__.htm?1349568035>

AGENCIA BRASIL. Pelo menos 24 defensores dos direitos humanos foram mortos em 4 meses, diz comitê. Publicado no dia 24/06/2016. http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-05/pelo-menos-24-defensores-de-direitos-humanos-foram-mortos-em-4

COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. RELATÓRIO DE 2017. Disponível em: < https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/60-dados-2017/14074-assassinatos-conflitos-no-campo-2017-cpt-assessoria-de-comunicacao?Itemid=0>.

________. RELATÓRIO 2016. Disponível em: < https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/58-dados-2016/14116-ocorrencias-de-conflitos-por-terra-brasil-2016>.

DATA FOLHA. Datafolha: 6 em cada 10 eleitores de Bolsonaro se informam pelo WhatsApp. Pesquisa Publicada no dia 03 de outubro de 2018.<https://veja.abril.com.br/politica/datafolha-eleitor-de-bolsonaro-e-o-que-mais-se-informa-por-redes-sociais/>.

WENDY, Brown.  Cidadania Sacrificial Neoliberalismo, capital humano e políticas de austeridade. Revista Constellations, Volume 23, No 1, 2016. Acesso em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/1467-8675.12166.

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