Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia
Há que endurecer, mas sem jamais perder a ternura.
Che Guevara
O Rei dos Ogros, coleção de livros infantis editada pela Escala Educacional, é certamente uma das favoritas de meu filho Antônio. Buba é um ogro grande, egoísta e mal educado. E também é o rei dos ogros, o que lhe confere o poder de vida e de morte sobre todos os seus súditos. Basta que ele seja minimamente contrariado e vlupt! Alguém virou comida de ogro! Em um dos livros da coleção, Vavá, o fiel cozinheiro de Buba, chega com o almoço e se depara com Buba saciado, pois tinha devorado a sexta professora na semana e estava palitando os dentes.
-Ela me irritava com aquele monte de lição todo dia – Respondeu Buba.
Vavá sai do palácio, mais uma vez, em busca de uma nova professora para Buba. Ao retornar, apresenta ao Rei dos Ogros a professora Dona Fofa, baixinha e rechonchuda, e não demora a devorá-la também. No entanto, alguns segundos depois a cospe, e com uma cara horrível reclama:
-Nossa, Que gosto horrível! – Dona Fofa se recompõe e responde – Engraçadinho, Majestade. Agora, vamos a lição!
Buba está indignado por não conseguir devorar a professora e se vê forçado a assistir as aulas, fazer as lições e a aprender com Dona Fofa. Tenta, a todo custo, mandá-la para outros reinos, mas a fama de Dona Fofa como uma professora “incomível” faz com que os outros reis se neguem a recebê-la. O rei dos ogros então passa a fazer as lições, se exercitar, desenhar e, com o passar dos meses aprende a ler e escrever, e se anima muito toda vez que acerta um exercício. Além disso, se apegou à professora, chegando a pedi-la em casamento. Dona Fofa nega convite, mesmo sob as ameaças de que Buba devoraria seu marido. No fim da história, Buba fica triste com a ida de Dona Fofa, que tanto lhe ensinou. Mas agora, quando se entristece, abre um livro e viaja por mundos desconhecidos.
A História de Buba e de Dona Fofa tem muito a nos ensinar nestes tempos de louvação à ignorância, ao autoritarismo e ao individualismo. Buba é a autoridade que despreza o conhecimento, como é muito comum historicamente em nosso país e que insistimos em elevar a categoria de gente importante. Dona Fofa, apesar do medo que Buba inspira em todes ao seu redor, não se dobra, é intragável ante a força bruta, delicada e compreensiva diante daquele que, nas palavras de Paulo Freire, não sabe que sabe. A escritora bell hooks, em seu livro Ensinando a Transgredir: A educação como prática de liberdade, diz o seguinte sobre a prática docente:
A educação como prática de liberdade é um jeito de ensinar que qualquer um pode aprender. Esse processo de aprendizado é mais fácil para aqueles professores que também creem que sua vocação tem um aspecto sagrado; que creem que nosso trabalho não é o de simplesmente partilhar informação, mas sim o de participar do crescimento intelectual e espiritual de nossos alunos. Ensinar de um jeito que respeite e proteja as almas dos nossos alunos é essencial para criar as condições necessárias para que o aprendizado possa começar do modo mais profundo e mais íntimo.[1]
A profissão de educador exige de nós – que estamos em relação e somos, de alguma forma, referência para centenas de seres humanos – uma dedicação de tempo e uma dedicação intelectual que está muito para além dos momentos que passamos dentro de sala de aula. Do preparo das aulas aos diversos momentos que passamos refletindo sobre como mobilizar esta ou aquela turma, muitas vezes deixamos de viver importantes momentos com nossas famílias, amigos, ou mesmo daquelas importantes horas de sono para nos dedicarmos ao processo de aprendizagem que envolve a nós e aos educandes.
Educar exige de nós uma constante reflexão e revisão dos métodos pedagógicos e dos exercícios que elaboramos em conjunto com outros jovens e adultos que partilham conosco deste processo. Dona Fofa nos mostra muito bem como isso ocorre.
Espaços de ensino devem ser, antes de tudo, espaços de desenvolvimento humano, onde os potenciais de cada indivíduo são exponencialmente desenvolvidos através das relações destes com todos os outros presentes neste mesmo espaço. A escola deve ser um espaço onde todos, inclusive nós como pretensos educadores aprendem e ensinam. O grande problema é que, talvez, estejamos mais preocupados com notas, papéis e burocracias do que com cada um dos seres humanos com os quais estabelecemos este belo vínculo que é ensinar e aprender. Trabalhar com conhecimento em tempos de obscurantismo é um grande desafio, ainda mais em um país como o nosso, marcado por desigualdades sociais e educacionais enormes, o que abre margem a todo tipo de exploração daqueles que portam canetas e diplomas sobre aqueles que devem portar apenas enxadas e vassouras.
Talvez por isso a profissão professor tem sido atacada com tanta veemencia pelos podres poderes que habitam os palácios de governo. Nossa profissão é historicamente resistência. É aquela que se põe, em momentos de mobilização, contra as injustiças que conhecemos muito bem pelas relações de ensino e afeto que desenvolvemos com cada um dos nossos alunos no dia-a-dia das escolas brasileiras. E assim como Dona Fofa, mesmo com o trabalho remoto que suga nosso tempo e nossa sanidade durante a pandemia, não seremos engolidos! Seguimos no trabalho de colocar a ignorância para dormir e sonhar com um novo amanhã.
[1] HOOKS, bell, Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Martins Fontes, São Paulo. 2020. p. 25.