Artigo de opinião
Em 16 de agosto o país acompanhou estarrecido os desdobramentos de um crime hediondo no qual uma criança de 10 anos engravidou depois de ser estuprada por um tio. Diante da violência surgiu a necessidade de um aborto, que é garantido por lei já que de acordo com o Art. 128 do Decreto Lei nº 2.848/1940 o ato é autorizado nos casos de gravidez decorrente de estupro.
O pedido de aborto, autorizado pela Justiça, foi negado pelo Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam), do Espírito Santo, onde mora a menina. Por isso, a família foi para outro estado com o objetivo de fazer o procedimento.
Em Recife, onde o procedimento foi enfim realizado, um grupo de católicos se reuniu na porta do hospital para protestar contra o aborto. O episódio aconteceu depois que a fundamentalista de extrema direita Sara Winter divulgou o hospital onde a menina estava internada.
O que se seguiu naquele domingo, e depois dele, foi uma lembrança de quanto o fundamentalismo católico ainda é pulsante no Brasil. Tal fanatismo andava esquecido diante do fundamentalismo neopentecostal, que se agigantou com a ascensão de Jair Bolsonaro. Porém, além da manifestação em frente ao hospital contra o aborto, se multiplicaram nas redes sociais manifestações grotescas de católicos que atribuíam a culpa do estupro à criança. Entre elas a do padre Ramiro José Perotto, de uma paróquia em Mato Grosso, que disse que a criança não “era inocente e com certeza estava gostando”.
E o que Curitiba tem com tudo isso?
Ora, por óbvio que a cidade que se orgulha do título de “conservadora” também daria ao mundo sua patrulha de fundamentalistas católicos.
O Instituto Santo Atanásio, como diz a descrição de seu site, tem como funções “ estimular e resgatar a força da fé e da vida intelectual autêntica com uma formação voltada para os leigos e fiéis católicos com cursos e palestras, além de atividades que visam difundir conhecimento e infundir novamente a cultura cristã e católica no Brasil que sempre teve como seu pilar de sustentação, mas que hoje encontra-se degradado. O seu programa de formação continuada em várias áreas do conhecimento conta com professores, padres e especialistas … Além disso, fomentará meios para a defesa da fé católica e combate às heresias em todos os setores da sociedade…”.
Segundo o Instituto “os meios que poderiam levar a sociedade a compreender seu passado, no seu auge intelectual, espiritual e moral foram suprimidos pelas universidades e pelos meios de comunicação”.
O “auge intelectual, espiritual e moral” a que o Instituto curitibano se refere provavelmente é a Idade Média. Uma visita ao site da instituição representa uma viagem ao feudalismo quando a igreja se sobrepunha aos poderes políticos e impunha sob cruz, espada e fogueiras, as suas verdades.
Entretanto, não apenas do saudosismo dogmático e supersticioso da igreja medieval vive o Instituto Santo Atanásio que tem sede na Rua Marechal Deodoro, no Centro de Curitiba. A instituição prega abertamente a influência da igreja (católica obviamente) na política; critica a liberdade religiosa e a homossexualidade e relaciona aborto a “sexo livre”.
Entre os muitos artigos publicados no site do Instituto (há textos condenando liberdade religiosa, homossexualidade, socialismo, entre outros), existe um artigo intitulado “A mentalidade Abortista no Brasil”. O texto, escrito por Augusto, que se define em sua biografia como “Membro, professor e palestrante do Instituto Santo Atanásio”, afirma que o aborto é mais grave que o estupro e diz que aquelas que lutam pelo direito de abortar se renderam aos impulsos da “normatização do sexo livre”.
Augusto condena sim o estupro em seu texto. Nas palavras dele “o estupro é de fato grave porque se utilizou de violência para realizar um ato não autorizado, quebrando o necessário consenso, e também porque se feriu a pureza pessoal e familiar (caso a vítima seja casada). E acima disso tudo, para além do aspecto social, sendo inclusive o mais importante, é uma ofensa a Deus”. Porém, a coerência acaba por aqui.
Segundo Augusto, a defesa do aborto é uma “inversão moral” que uma suposta revolução sexual teria criado. Para o autor, quem defende o aborto está defendendo os valores do sexo livre. Segundo ele, o estupro é considerado mais grave do que o aborto pelo simples fato de não haver prazer em uma violência sexual. E o prazer, diz Augusto, é, para quem defende o aborto, o fator mais importante do sexo.
Ou seja, na visão do autor o aborto é defendido porque o sexo que gerou o bebê simplesmente não deu prazer para a mulher (ou para a menina, no caso da criança estuprada no Espírito Santo).
Augusto ignora todos os traumas psicológicos que acompanham as vítimas de estupro pelo restante de suas vidas. Ele também não fala que no Brasil, a cada 60 minutos, quatro meninas de até 13 anos são estupradas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019. Para ele, o estrago já foi feito, a vítima agora que seja penalizada gerando, parindo e criando um filho, mesmo que seja de um pai que lhe cause asco e mesmo que a maternidade interrompa sua infância e modifique decisivamente sua vida.
Para o autor, e para o Instituto que ele representa, a questão do aborto (cuja prática ilegal ceifa a vida de cerca de 4 mil mulheres todos os anos no Brasil), não se trata de saúde pública, mas de ter prazer ou não no ato sexual. “No fundo, quem defende o aborto ou o relativiza nos casos de estupro está defendendo os ‘valores’ do sexo livre”, diz Augusto.
É importante que os fundamentalistas do Instituto Santo Atanásio se deem conta de quem nem a lei dá a eles o direito de impor seus dogmas sobre o corpo de quem quer que seja. Além disso, não é mais possível usar fogueiras para calar as vozes contrárias. E elas, as vozes que teimam em reconhecer a autonomia sobre seus corpos, ajudam a carregar uma luz que não deixará a sociedade voltar à Idade das Trevas.
É bom os fundamentalistas se acostumarem com a luz…