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Para entender a militarização de escolas no Estado do Paraná: militarizar como forma de privatizar

*Ilustração: Rodrigo Yokota

Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia 

É manhã de inverno em São Paulo. Eu, então estudante-bolsista da quinta série do Colégio da Polícia Militar saio do bairro de Cidade Tiradentes, na Zona Leste, por volta das 4 horas da manhã rumo à escola. Pego 2 ônibus lotados para chegar até a estação de metrô de Itaquera, onde faço uma baldiação na Estação da Sé para a linha Azul e finalmente descer na estação Armênia, onde caminho por mais cerca de 30 minutos, chegando na escola próximo do horário de entrada, às 7h15 da manhã. Ao passar pelo portão sou barrado na entrada pela inspetora. Naquela altura do ano, não tive dinheiro para comprar a blusa do uniforme, que era rigorosamente conferido aluno por aluno na entrada: meias brancas, sapato preto, calça, corte de cabelo, camiseta regata (era a única que tinha para usar no dia) e…blusa de lã? Menino, onde está a blusa do seu uniforme? Perguntou a inspetora.

            -Eu não tenho – respondi.

            -Então você não pode entrar!

            Vindo de bairro periférico e tendo conquistado a “grande oportunidade” de estudar no que meus pais consideravam uma boa escola, minha família comprou meu primeiro uniforme aos poucos, primeiro as peças de verão adequadas ao começo do ano e, com o passar do tempo juntávamos dinheiro para comprar as peças restantes, conforme o ano passava. O inverno chegou, o dinheiro para o uniforme não.

            -Mas eu moro longe, já gastei a passagem, não posso voltar pra casa.

            A solução que me foi dada, aos 12 anos, como punição (hoje eu vejo assim) por não ter a blusa do uniforme foi ficar de camiseta regata durante todo o período de aulas a uma temperatura de 10 graus do inverno paulistano. Tudo isso com uma blusa na mochila que eu não poderia utilizar para não “sair da farda”. Hoje entendo que escolas militares tem formas bastante cruéis de lidar com as diferenças sociais existentes entre os alunos, e tenho uma infinidade de histórias do tipo para contar.

            Eis então que hoje, professor da rede estadual do Paraná, me surpreendo nesta Segunda feira, 26 de outubro, com a sanção a toque de caixa de um projeto que institui a adoção do modelo de escola cívico-militar para 216 colégios estaduais no Estado do Paraná a partir da lei n. 20.338/2020. Comunidade escolar e educadores foram pegos de surpresa frente a este ataque à democracia escolar. Uma consulta convocada às pressas e em meio à pandemia de Coronavírus pretende dar a mais esse ato autoritário do governo Ratinho Junior um verniz democrático. Mas o que, afinal, está por trás deste projeto, e da pressa em aprová-lo?

            A militarização de escolas já vinha se intensificando nos últimos anos como uma das diversas faces da terceirização do processo educativo. Estados como Goiás, Minas Gerais e Bahia já haviam instituído políticas semelhantes a esta a partir de 2013, além das promessas de campanha do atual presidente Jair Bolsonaro, que propunha generalizar as escolas civis-militares por todo o país. O paraná, como boa vanguarda do atraso que vem sendo na política nacional, se colocou na dianteira neste processo, implementando a militarização de escolas em uma escala e rapidez até então não vistas em nosso país, se pensarmos que até então, temos 93 escolas geridas por instituições militares em todo o Brasil. Segundo o Boletim Sísifo, organizado pelo NESEF (Núcleo de Estudos de Educação em Filosofia) de outubro de 2020:

Esse tipo de escola incute nos estudantes o culto à autoridade e à hierarquização, típico de uma sociedade desigual: reforça a obediência cega à autoridade por meio da intimidação, do castigo, da punição e da obediência às regras rígidas impostas verticalmente. A formação é baseada no medo e não no princípio do diálogo, da troca, da confiança e da interação social, aspectos fundamentais a serem cultivados em projetos de educação efetivamente comprometidos com a formação humana integral necessária para construção de uma sociedade democrática.

            Esta concepção pedagógica segue os passos da escola prussiana, à partir de Mackinder, que em fins do século XIX e começo do século XX já chamava atenção para esse fato quando fala que os pilares do sistema cultural da Alemanha eram o sistema militar compulsório, a escola básica compulsória e as universidades. A escola serviria, sobretudo, para criar a “filosofia do patriotismo” em toda uma população através da ação dos professores, fazendo com que todos se engajassem nos “Problemas nacionais alemães”, ou seja, desde de a infância, se forjaria uma “mentalidade estratégica” no povo, acostumando-os com as fronteiras, a hierarquia e legitimando a defesa de ideais patrióticos e do Estado-nação acima de inimigos internos e externos[1].

            Isto na educação faz com que se tenha a manutenção, reprodução e internalização de ideias e valores que não permitem o questionamento e reflexão por parte dos alunos a respeito da sociedade, da gestão do Estado e das desigualdades sociais que permeiam o ambiente educativo. No caso do Estado do Paraná, na atualidade temos um menor investimento na educação, com o aumento do número de alunos por turma e a diminuição do porte de escolas. Pensando as escolas cívico-militares, deixa-se que um corpo burocrático e autoritário realize a gestão escolar, abrindo espaço para que o “espirito empreendedor” seja fomentado no processo educativo, formando uma mão de obra subserviente e pouco crítica para o mercado de trabalho. Historicamente a educação nos serviu de pretexto para mostrar como historicamente a construção das políticas de Estado são orientadas pelos interesses e valores das elites internacionais[2].

            Sendo assim, como demonstra Anna Paula Scherer no seu trabalho intitulado A Militarização Do Ensino Na Pátria Educadora: Um Estudo De Caso No Colégio Da Polícia Militar Do Paraná – Entre Concepções E Contradições, o modelo hierárquico-militarizado quando trazido para o ambiente escolar traz consigo a formação de uma subjetividade neoliberal-meritocrática em educandos e educadores, eliminando do ambiente escolar aqueles que não se enquadram ou não concordam com a estrutura posta. Daí os supostos “melhores resultados” das escolas militarizadas em alguns rankings, já que não precisam lidar com problemas sociais típicos de qualquer escola, bastando gerar exclusão por meios de normas e regras.

            Podemos compreender a escola sob diversas formas e métodos de ensino aprendizagem, mas podemos destacar dois caminhos possíveis sobre seu papel: um caminho que conduz à uma instituição que transmite o conhecimento produzido socialmente para crianças e jovens para que estes se especializem nas áreas de interesse dentro do mercado de trabalho de acordo com a escolha profissional, no que Paulo Freire (2011) denomina de Pedagogia da Palavra, ou que Silvio Gallo chama de Educação maior, centrada na figura do Professor Profeta; ou, por outro lado, um caminho que nos leve a uma concepção de escola que se utiliza do conhecimento humano para produzir, em conjunto com os educandos e partilhando de suas misérias cotidianas, conhecimentos que possam fazer sentido na superação da realidade existente, centrada na ideia de uma Educação menor[3].

            As escolas cívico-militares certamente dizem respeito ao primeiro tipo de concepção, mais tradicional, de educação. Os impactos na formação de jovens, em especial nas periferias, podem ser explosivos. Por outro lado, professores veem perdida a sua autonomia docente e liberdade de cátedra, assim como a comunidade como um todo perde os mecanismos de gestão democrática do espaço escolar. Todos perdem, mas quem ganha? Ganham aqueles que querem gerir o Estado e o Capital livres do contraditório, críticas e mobilizações que lhes travem os caminhos de alguma maneira.

            É importante notarmos que este processo não está sendo implementado sem resistência por parte de educadores e estudantes, mesmo com as ainda tímidas ações da APP-Sindicato em relação à questão. Pensando nisso, encerro este texto transcrevendo na íntegra a carta elaborada por professores do Colégio Estadual Hélio Antônio de Souza, no município de Pontal do Paraná, onde estão expostos vários dos problemas relativos a implementação deste modelo de gestão enfrentados neste momento. Os nomes dos professores que assinam a carta foram ocultados por questão de segurança dos mesmos.

           

CARTA ABERTA A COMUNIDADE ESCOLAR CEHAS

 

            Somos um grupo de professores atuantes hoje no Colégio Hélio Antônio de Souza. Estamos nos dirigindo a vocês para falar sobre a mudança que está por vir em nosso colégio, se trata do “Programa Colégios Cívico- Militares de que trata a Lei n.o 20.338”

            Inicialmente, queremos ressaltar nosso espanto com a “seleção” do CEHAS para fazer parte do novo programa do governo estadual. Pois consideramos que tal seleção foi realizada de maneira totalmente obscura, fomos todos pegos de surpresa, pois nosso colégio não necessariamente se encaixa nos pré- requisitos colocados na resolução do governo, como por exemplo “o atendimento às instituições de ensino públicas regulares em situação de vulnerabilidade social”. Não somos perfeitos, mas nós trabalhadores da escola e a comunidade pontalense como um todo, veem o Cehas como um colégio disciplinado, organizado e com bons resultados.

            Além do mais, a divulgação da escolha das escolas que farão parte do programa foi feita ontem (26/10/20) e a consulta pública será realizada presencialmente apenas HOJE (27/10) e amanhã (28/10) em meio a uma PANDEMIA!

            Isto demonstra que não há tempo para fazermos um debate, conversar de maneira mais aprofundada e fazer o balanço dos pontos positivos e negativos de tal adesão, o que reflete um atropelo à gestão democrática escolar.

            Não podemos votar positivamente em um programa que não foi devidamente apresentado (suas reais propostas, planejamento prático, metodologia, orçamento, etc) e muito menos discutido, visto que é uma mudança radical na escola. Não se enganem, mudará tudo! Desde a questão da autonomia, orçamento, disciplina, gestão, projeto político-pedagógico, liberdade de cátedra. E nem toda mudança é pra melhor….

            A proposta como foi divulgada pelo governo, parece muito boa, mas refletindo sobre a realidade de outras escolas cívico-militares, percebemos muitos motivos para não aceitar esse modelo:

1)A direção da escola fica nas mãos de um policial militar. Escola não é lugar de polícia, assim como batalhão não é lugar de professor/a.

2) A comunidade não tem o direito de escolher a pessoa que irá dirigir a escola. A Secretaria de Educação indica o Diretor Geral Militar e um/a professor/a para assumir o cargo de direção civil, mas sem autonomia e submetida às ordens do diretor-militar, ferindo a gestão DEMOCRÁTICA.

3) Caso o/a estudante não se adapte à disciplina militar, perde a matrícula mesmo que resida perto da escola.

4) Há controle da liberdade de expressão e manifestação dos/as estudantes, professores/as e funcionários/as.

5) Não há igualdade na distribuição dos recursos entre as escolas estaduais. A escola militarizada receberá mais recursos e mais profissionais, enquanto as demais continuam precarizadas.

6) A pedagogia da escola militarizada é a da submissão à disciplina militar.

7) Os/As professores/as e funcionários/as perdem a lotação, portanto, poderão ser colocados/as à disposição a qualquer momento, a depender do interesse da Seed.

8) Os/as profissionais da educação ficarão submetidos/as aos militares da reserva.

9) Crescente desvalorização da carreira dos profissionais da educação.

10) Colégio militar é para formar soldados. Escola pública é para formar cidadãos/ãs humanizados, livres, plurais, diversos e emancipados. Misturar as coisas, causa problemas.

11) Muita gente diz que as escolas militares poderiam resolver a questão da violência em territórios mais vulneráveis, mas isso não é verdade, porque a violência não é da escola. A escola apenas reflete a sociedade. É de fora pra dentro e não o contrário.

12) Há tempos a categoria pede por assistentes sociais e psicólogos nas escolas, o que poderia melhorar a qualidade do ensino e o “resgate” de alunos em vulnerabilidade social e isso não foi atendido.

            Queremos sim mudanças nas escolas e investimentos, não queremos disciplinar pelo medo, mas pela educação e por uma disciplina consciente que não seja um fim em si mesma, mas que possamos de forma democrática e com envolvimento da comunidade escolar desenvolver e aplicar um projeto claro, transparente e embasado.

Militarizar não parece ser solução para os problemas existentes.

[1]             DA COSTA, Wanderley Messias. Geografia Política e Geopolítica: Discursos sobre o Território e o Poder. EDUSP, 2008.
[2]     “Uma Vez que o Estado é a forma sob a qual os indivíduos da classe dominante fazem valer seus interesses comuns, e na qual se resume toda a sociedade civil de uma época, deduz-se daí que todas as instituições comuns se objetivam através do Estado e adquirem forma política através dele. Dai, também, a ilusão de que a lei se fundamenta na vontade e, ademais, na vontade desgarrada de sua base real, na vontade livre. E, do mesmo modo o direito é reduzido a lei.” (Marx, Karl; Engels, Friedrich. A Ideologia Alemã. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 89).
[3]     Texto Em Torno de uma Educação Menor, de Silvio Gallo, disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwiwjrvz-tjsAhV1GLkGHRUqBqUQFjAAegQIARAC&url=https%3A%2F%2Fseer.ufrgs.br%2Feducacaoerealidade%2Farticle%2Fdownload%2F25926%2F15194&usg=AOvVaw2hc42ZwWG0WkVv_JI7sdTx

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.