Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia
A Paleontologia é uma ciência muito interessante. Sua atividade consiste em analisar as marcas presentes na paisagem para determinar o passado da terra, os processos geológicos e biológicos que, desde o passado mais remoto, em um imenso acúmulo de tempos, modificaram a crosta terrestre, fazendo com que esta tivesse o rosto que hoje conhecemos.
Os estudos paleontológicos são geralmente efetuados em campo, nos chamados sítios paleontológicos. É possível encontrar um bom exemplo deste tipo de sítio na região do Cariri, no Ceará. Situado no limite deste estado com Pernambuco, o Cariri situa-se no sopé da encosta setentrional da Chapada do Araripe, sendo um oásis de umidade em meio às veredas do seco sertão. Assim sendo, esta umidade da região é um presente da Chapada do Araripe, desde que as águas das chuvas que caem sobre ela, encontrando um tôpo relativamente plano e permeável, se infiltram e se aprofundam pelas camadas de arenito permeáveis, até encontrar uma porção impermeável de rocha. Forma-se um lençol subterrâneo que escoa, devido à inclinação das camadas, em direção ao território cearense onde volta ao solo através de uma série de fontes de água com regime permanente.
Essa riquíssima região nos dá a sensação de voltar a um passado longínquo, onde a paisagem era bem diferente do que é atualmente e o sertão ainda era mar. Como assim, o sertão já foi mar?
Sim, há cerca de 120 mil anos – no período Cretáceo da era Mesozoica – o oceano atlântico chegou a banhar boa parte do que hoje conhecemos como região Nordeste do Brasil. O mar teria penetrado nestas terras por meio de um caminho aberto durante a separação do continente de Gondwana, que deu origem a África e América. Tal fato é comprovado pela existência, na região, de fósseis de animais tipicamente marinhos, adaptados a viver em ambientes de água salgada. Estes, após eventos extremos como tempestades, eram mortos e depositados no fundo do mar onde, devido à composição carbonática do solo, se fossilizavam.
Estes fósseis não são os únicos vestígios de ambientes pretéritos existentes. Aqui se está imerso em um ambiente vegetal conhecido como caatinga. Na verdade, as caatingas – porque são mais de uma –, que são um mosaico vegetal que se desenvolve em áreas de pouca chuva, associada aos fortes ventos alísios, que encontram dificuldade em levar umidade para a região. No entanto, mesmo estando em meio a um ambiente de Caatingas, encontramos em diversos momentos fragmentos isolados de Mata Atlântica e Cerrado. Isso se deve, sobretudo, ao que o professor Aziz Ab’Saber chama de teoria dos refúgios. Estes refúgios – de Mata Atlântica e Cerrado – são muito provavelmente provenientes de ambientes climáticos pretéritos que deram condições a permanência destes tipos vegetais na região. Posteriormente com eventos que ocasionaram mudanças neste mesmo clima, estes tipos vegetais recuaram, abrindo caminho à expansão das Caatingas e deixando – em determinadas porções do espaço onde as condições morfoclimáticas se alteraram menos – resíduos da formação pretérita ali presente.
Como vimos, a paleontologia – com o auxílio de outras ciências – é capaz de explicar muito sobre os ambientes do passado geológico. É notável a sua capacidade de observar as marcas no rosto da terra para compreender a origem dos eventos que observamos no seu corpo físico atualmente. Mas essa ciência – assim como todas as outras – é, sozinha, incompleta. Digo isto pois os Paleontólogos, por mais habilidosos que sejam em sua área, são incapazes de olhar no rosto de um sertanejo e compreender através das marcas ali presentes todo o passado que deste, sua origem socialmente construída.
O mesmo vale do Cariri dos fósseis e da mata verde mostra-nos uma outra face, àquela que nos era oculta pela estonteante visão das chapadas. As grandes estiagens, assim como os problemas econômicos e sociais deram origem a todo tipo de beatos e bandoleiros, latifúndios e esfomeados. O cangaceirismo tornou-se rotina por muito tempo e a miséria os fez capatazes dos coronéis que por essas bandas em tudo mandam. Vive-se do mínimo, ou aquém do mínimo e entre o bandido e o beato surge um imaginário encantado repleto de tradições e simpatias. O sagrado surge, escamoteando e alterando o real.
Um caso típico é o do senhor Padre Cícero Romão Batista, que utilizando-se de um forte apelo religioso orientou grandes movimentos de cunho político em aliança com os grandes coronéis latifundiários na cidade de Juazeiro do Norte, no Sul do Estado: Santo Padim Ciço. Outro caso são as caretas, uma romaria de crianças e adolescentes saem às ruas pedindo dinheiro para que no final ocorra uma festa onde os espertos comem enquanto os outros apanham de chicote, expressando bem a capacidade que as tradições têm de encher de encantamento uma realidade que é tão dura e triste quanto mágica.
Jovens garotos prostituídos jogados aos cantos da pequena cidade, moradores de rua, a pobreza em si, abundam sobre o São Francisco. O inchaço urbano nunca me foi tão evidente quanto em Juazeiro e Petrolina. Milhares de trabalhadores rurais expropriados de suas terras, trocados por máquinas e multinacionais da produção fruticultora, evidenciando quem de fato se beneficia das obras de transposição do Velho Chico além das grandes empreiteiras. O fluxo migratório para as grandes cidades se intensifica e a crise do trabalho na sociedade capitalista se faz clara. Quem não trabalha não come: rouba ou morre.
Todas estas contradições presentes no cenário nordestino colocam-no – dizem nas terras do Sul – como uma porção não- desenvolvida em relação ao resto do Brasil. Espera um pouco. Não-desenvolvida em relação ao que?
O desenvolvimento não é uma meta temporal a ser alcançada, como muitos querem que acreditemos. Esta perspectiva, de que os não-desenvolvidos devem imitar o modelo seguido pelos desenvolvidos transforma as porções periféricas em tristes caricaturas do desenvolvimento. Elas precisam desenvolver rapidamente, pois estão atrasadas em relação as outras. Mas desenvolver é, ao mesmo tempo, des-envolver. Perde-se o envolvimento do sertanejo com o sertão, do indígena com sua terra, de sua cultura, seus meios de vida e, no limite, consigo próprio. As porções centrais do sistema funcionam a base da mão de obra, das matérias-primas, e transporte barato fornecidos pelas periferias. Sua riqueza é, portanto, fruto da miséria alheia. Logo, definimos centro e periferia; desenvolvidos e não desenvolvidos; metrópole e colônia; como momentos atemporais do mesmo sistema. Analisando dialeticamente, ambos estão em eterno conflito, mas ao anular qualquer um destes fatores, a relação deixa de existir. A força motriz do modo capitalista de produção é a abundancia frente à fome. A suposta riqueza do Sul não existe sem a também suposta pobreza do Nordeste.
O Nordeste, parte, contém em si o todo, ou seja, as contradições do modo capitalista de produção. Isso nos faz abrir uma crítica ao próprio conceito de região. Região é uma delimitação do espaço criada para um determinado propósito humano qualquer. Destaca-se uma característica comum a um fragmento do espaço e diz-se: “Aqui está uma região!”.
Assim, se esconde uma série de particularidades e diferenças contidas dentro deste mesmo espaço. São agora todos Nordestinos, Paulistas, Brasileiros ou Africanos. Distingue-se eu do outro, o diferente, aquele que não me apetece, são todos iguais. Mas vagando pelo que chamamos de Nordeste pudemos observar o quão diversa é a paisagem, os tempos, os climas, os relevos. E agora, continuamos todos iguais? Quais são as diferenças que nos unem?
Sempre me incomodou, enquanto paulista, com cara de nordestino, e que vive no Paraná, o modo jocoso e com ares de superioridade com que se refere ao Nordeste, como se fosse uma parte do Brasil homogeneizada pela seca e pela fome. Desconsideram o grande polo industrial de Recife, a população extremamente politizada da metrópole de Salvador (maior e economicamente mais ativa que todas as capitais do Sul do Brasil), a diversidade cultural de Alagoas, a agricultura irrigada do São Francisco. No Sul se despreza aquilo que não se conhece.
O sistema capitalista necessita desta fragmentação para melhor administrar o status quo de caos social ao qual somos todos submetidos. As instituições burguesas – sobretudo o Estado – são fundamentais a este objetivo. Por isso a (in)eficiência de políticas de planejamento como a SUDENE, desenhada por cariocas e paulistas: eficiente para os grileiros latifundiários e coronéis de sempre, extremamente ineficiente ao sertanejo pobre.
O sertanejo é, antes de tudo, um forte, como já disse Euclides da Cunha. E observadas as marcas nos rostos da terra e da gente nordestina, compreendemos que estes dois elementos – sociedade e natureza – apresentam uma cisão apenas aparente, e que no fundo são um único. Reconstituir o passado e compreender as contradições contidas neste espaço, que é rocha e égente, exige o esforço de romper as amarras que nos são impostas por diversos modelos teóricos ancorados em sistemas desenhados por aqueles que se consideram superiores. O nordeste que conhecemos, repleto de estereótipos e preconceitos, ruiu e dele surgiu uma flor, feia, desbotada, raquítica. Mas que rompe o asfalto, o tédio, o ódio e o preconceito.