Há dois meses sem aulas, estudantes indígenas de Santa Catarina não sabem se vão concluir o ano letivo. De acordo com representantes das aldeias o direito básico de educação a cerca de 460 alunos da Terra Indígena Ibirama La Klãnõ tem sido negado pelo estado catarinense.
Reportagem de José Pires
Fotos: Emer Nogueira
Edição de vídeo: João Sirineu – Agência Eight Design
Esta reportagem é fruto do 5º Edital de Jornalismo de Educação da Jeduca– Associação de Jornalistas de Educação em parceria com a Fundação Itaú.
Falta uma semana para o fim do ano letivo em Santa Catarina. O estado tem mais de um milhão de estudantes matriculados em 5.139 escolas estaduais, municipais e da rede privada. Quase todos entrarão em férias sabendo se foram aprovados ou reprovados. Menos um grupo de 460 alunos. A esses, resta a dúvida de saber como e quando o ano letivo vai terminar.
O grupo em questão é formado por estudantes da Terra Indígena Ibirama La Klãnõ, do povo Xokleng La Klãnõ. A reserva está localizada entre os municípios de José Boiteux, Vitor Meireles, Doutor Pedrinho e Itaiópolis, na região do Alto Vale do Itajaí. Estes estudantes estão sem ir à escola desde o dia 10 de outubro de 2023.
A vida escolar do povo La Klãnõ, que significa “gente do sol”, foi paralisada por causa da chuva. As grandes precipitações que Santa Catarina registrou na primeira quinzena de outubro – mais do que o dobro do esperado para todo o mês em algumas cidades, segundo dados da Epagri/Ciram, órgão que monitora as condições meteorológicas no estado – trouxeram graves consequências à Terra Indígena por conta de ofensivas históricas do governo catarinense, cuja “gota d’água” foi o fechamento das comportas da barragem da região.
A barragem
A Barragem Norte fica na Terra Indígena Ibirama La Klãnõ. Ela tem capacidade para armazenar 357 milhões de metros cúbicos de água e é uma das três barragens que controlam o forte fluxo que entra no Rio Itajaí-Açu, que na região se chama também Rio Hercílio. Mais de 1,2 milhão de habitantes de várias cidades catarinenses são beneficiados por esse sistema, que trabalha na retenção de enxurradas com potencial de destruir tudo o que estiver pela frente no chamado Vale do Itajaí.
A estrutura para contenção das cheias começou a ser construída ainda durante o Regime Militar e afetou decisivamente a vida dos indígenas.
Em 7 de outubro deste ano, o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello (PL), decidiu fechar as comportas da barragem. A decisão, teve como objetivo evitar alagamentos na cidade de Blumenau, que sofria com as fortes chuvas e iniciava a tradicional Oktoberfest.
Com o uso de grande efetivo da Polícia Militar, o governo do estado fechou as comportas, o que não ocorria há dez anos. Os indígenas tentaram impedir, mas foram atacados com bombas de efeito moral, gás de pimenta e balas de borracha.
A barragem estava há mais de 10 anos sem operação e manutenção. Em 2021, um laudo apontou falhas e problemas em sua estrutura, mostrando o descumprimento de uma resolução da Agência Nacional de Águas (ANA), que determina a inspeção regular de barragens no país.
Quatro dias depois do fechamento das comportas, o reservatório transbordou e deixou embaixo da água estradas e pontes que ligavam as aldeias da região. Centenas de famílias ficaram isoladas. As que conseguiam se locomover entre as aldeias e para fora da Reserva Indígena, precisaram enfrentar dezenas de quilômetros por estradas de terras em condições precárias e que aos poucos eram engolidas por desfiladeiros ou soterradas por deslizamentos.
Um cenário caótico se estabeleceu. Por mais de uma semana, centenas de famílias ficaram sem luz e água potável. A pouca ajuda que o governo catarinense forneceu aos indígenas só chegou após determinação da justiça. O estado foi obrigado a enviar cestas básicas e barcos (entregues sem condutores), além de garantir a presença da Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros na região.
Depois de semanas sob chuva, descaso e abandono, parte da vida cotidiana dos mais de 2.500 indígenas que vivem nas nove aldeias da Reserva foi retomando um pouco de normalidade.
A exceção foi o grupo de 460 estudantes indígenas. Foi para entender essa realidade e a relação que ela tem com a Tese do Marco Temporal que o Parágrafo 2 ficou uma semana percorrendo as aldeias da região e traz agora, em uma série de reportagens, um “Raio X” da situação dos estudantes indígenas do povo La klãnõ Xokleng. Confira neste link a segunda reportagem da série.
Uma escola em silêncio
Um ar abafado parece apertar o peito de quem caminha pelas enlameadas ruas da Aldeia Plipatol, a primeira da terra indígena, a cerca de 10 quilômetros do Centro de José Boiteux. É manhã de terça-feira, início de novembro e o céu carregado anuncia mais chuva.
Na Plipatol, fica a Escola Indígena de Educação Básica La Klãnõ. Em toda a Reserva, existe apenas ela e mais uma, que se chama Escola Estadual Vanhecu Patté, na Aldeia Bugio, a mais distante entre todas as aldeias.
Na escola La Klãnõ, estudam 460 indígenas distribuídos na pré-escola, no ensino fundamental, no médio e na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Ela atende oito aldeias da Terra Indígena: Coqueiro, Palmeirinha, Toldo, Pavão, Sede, Figueira, Kôplêng e PliPatol.
Porém, desde o dia 10 de outubro, um silêncio inquietante toma conta da escola. Ele só é quebrado porque professores se reúnem diariamente para formular conteúdo e para imprimir páginas de papel sulfite com exercícios. As tarefas são levadas para os estudantes porque, com o fechamento das comportas da Barragem Norte, o acesso dos alunos à escola está prejudicado e por isso suas salas estão vazias. Há dois meses não há aulas no local e o conteúdo chega a muito custo na casa dos alunos, como se eles estivessem ainda em período de quarentena imposto pela pandemia de Covid-19.
Lilian Patté dos Santos Lemos é diretora da Escola La Klãnõ. Desde o início desse recesso forçado ela olha o céu pela janela com esperança de que os dias de sol baixem a água que encobriu estradas e pontes e os estudantes voltem trazendo luz e vida às silenciosas e nubladas salas de aula.
A diretora diz que o cancelamento das aulas foi decidido em conjunto com caciques e lideranças de todas as aldeias, com a participação da Defesa Civil, da Secretaria Estadual de Educação e da Secretaria de Educação do Município de José Boiteux. A medida, ela explica, buscou preservar a segurança dos estudantes. “A maioria dos alunos chegava à escola por meio de uma estrada que agora está embaixo da água. Hoje, para chegarem aqui, eles precisam percorrer um trajeto de mais de 25 a 30 quilômetros. E o problema é que esses caminhos estão repletos de desmoronamentos de terra, o ônibus escolar não passa por alguns trechos”, conta.
Lilian Patté revela que alunos que moram em aldeias mais distantes, em dias normais de aula, precisavam sair de casa às 5h30 para chegar às 7h30. Hoje, caso as estradas alternativas fossem trafegáveis para o ônibus escolar, eles precisariam sair antes das 4h para chegar na primeira aula da manhã.
Elaine Camlem é professora de Língua Materna Xokleng e de Educação Física na Escola La Klãnõ. Assim como os outros docentes, ela prepara conteúdo para ser entregue aos estudantes ao longo das oito aldeias. Uma tarefa cansativa e demorada, já que percorrem o dia todo de carro e, às vezes, a pé, por entre lama e água, para chegar à casa dos alunos. Mas essa medida, ela ressalta, é paliativa. “É um prejuízo muito grande para esses alunos. Mesmo que a gente leve conteúdo para eles, o aprendizado em sala de aula, com a estrutura da escola, com a socialização, faz muita diferença”, lamenta a professora.
Entre os estudantes sem aulas desde outubro, há os que terminariam o ensino médio. Boa parte deles, cerca de 50, estava se preparando para tentar o vestibular. Iam se formar também turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Hoje, nem professores nem alunos sabem se essas formaturas serão realizadas.
Mas não é apenas o prejuízo para os estudantes que aflige os professores. Os docentes que lecionam na Escola La Klãnõ são contratados pelo governo de Santa Catarina em Caráter Temporário (CT). São contratos com duração de dois anos, mas que podem ser rompidos pela secretaria estadual a qualquer momento. E é isso que muitos temem. “A gente recebeu informações de que a Secretaria Estadual pode nos demitir, porque a escola está sem aulas. Mas como dar aulas se os estudantes não conseguem chegar aqui?”, questiona a professora Elaine. Existiria também, segundo os educadores, uma pressão do município de José Boiteux – que seria responsável por parte da escola – e também do Conselho Tutelar da cidade para que as aulas voltem, mesmo que os alunos não tenham condições de chegar.
“Não levo, não posso me responsabilizar”
Demilson Barbosa é motorista do ônibus escolar cedido pelo município de José Boiteux para o transporte dos estudantes indígenas até a Escola La Klãnõ. Ele leva adolescentes pela manhã, crianças entre 4 e 6 anos à tarde e jovens e adultos à noite. Conhece como poucos as estradas vicinais que serpenteiam toda a Terra Indígena.
Depois do fechamento das comportas da barragem a água do Rio ficou com um volume absurdo. Nas margens do Itajaí Açu é possível ver a marca da água, que no pico da cheia encobria árvores de cinco, seis metros de altura. As pontes da região, todas de madeira, desapareceram sob a correnteza. A água invadiu também trechos das estradas e a constante chuva provocava diários e repentinos deslizamentos de terra e erosões que engoliam trechos das estreitas vias.
Frente a esse cenário, Demilson se recusou a fazer o transporte dos estudantes. Ele conta que era muito perigoso e não podia se responsabilizar por uma possível tragédia. “Eu disse para o meu patrão que não ia levar, que não podia me responsabilizar. As estradas não têm condições. O ônibus é pesado, não é igual carro, se tiver muito barro ele não obedece. Em alguns trechos eu precisava fazer manobras perigosas, precisava voltar de ré em lugares da estrada que estavam desbarrancando”, diz.
Ele ressalta que trafegar pelas vicinais da região é ainda mais perigoso à noite. “De noite eu levo mais de 30 alunos no micro-ônibus. As estradas não têm iluminação, 30 centímetros que o ônibus deslize no barro e eu caio com dezenas de estudantes dentro do rio”.
Uma das alunas que dependem do transporte escolar é Pietra Criri. Ela é estudante do segundo ano do ensino médio. Moradora da Aldeia Sede, ela conta que ir para escola à noite é assustador por causa das más condições das estradas, principalmente quando chove. “É muito perigoso, quando chove, a gente fica muito tenso, principalmente na hora de voltar”, diz. Pietra também está sem aulas e não sabe como o ano vai terminar. “Eu não sei como vai ficar. É muito ruim não poder ir para a escola, não sabemos se esse ano vai terminar ou se vamos ter que continuar ele no ano que vem”, lamenta.
Barbosa é enfático em afirmar que as condições das estradas poderiam estar melhores, mas não estão por omissão das prefeituras da região. “Onde não moram índios eles fazem manutenção, passam patrola, jogam saibro, tapam buracos. Mas onde os índios moram a prefeitura quase não aparece, e quando vem, joga cascalho preto, e aí chove e a estrada fica pior”, explica.
Essa reclamação é recorrente em todas as aldeias. Segundo os indígenas, nas estradas que cortam o território dos Xoklengs as manutenções são menos frequentes do que onde moram agricultores não indígenas. E essa situação aconteceria há bastante tempo.
João Mokling é cacique da Aldeia Coqueiro. Ele conta que há cerca de dois anos o Departamento Estadual de Infraestrutura de Santa Catarina (Deinfra) destinou recurso para que a prefeitura de Vitor Meireles, município onde fica a aldeia, fizesse uma recuperação das estradas. Mas, segundo o cacique, a obra não foi realizada em sua totalidade. “Fizeram licitação para melhorar estradas da nossa aldeia com uma doação do Deinfra. Eram 19 quilômetros que precisavam ser arrumados, mas o prefeito fez apenas 12 quilômetros. Quando a gente o procura para cobrar a finalização desta obra ele diz que não tem dinheiro”, afirma Mokling.
O Cacique chegou a encaminhar um ofício para o Ministério Público Federal de Santa Catarina para que eles comunicassem o prefeito, já que os indígenas tinham pedido a intervenção inclusive de vereadores da cidade, mas não adiantou. Segundo João, nem a pressão do MPF surtiu efeito e a obra nunca foi concluída.
Mais ou menos cinco quilômetros separam a Aldeia Coqueiro da Aldeia Figueira, onde mora Jeonilton Crêndo e sua família. Essa é mais uma aldeia localizada no município de Vitor Meireles. Jeonilton tem duas filhas em idade escolar. A menor, de oito anos, frequenta o terceiro ano da escola primária, e a mais velha, Kayandra Crendô, de 16, cursa o primeiro ano do ensino médio. O trajeto até a escola, da casa dos Crendô, é de mais ou menos 12 quilômetros. Com o alagamento provocado pelo fechamento da barragem, essa distância aumentou para 30 quilômetros.
Jeonilton hoje é pastor de uma igreja evangélica, mas já foi professor da Escola La Klãno. Ele sabe bem os prejuízos que a falta de aulas traz a toda a comunidade indígena. “É absurdo que as crianças não possam ir para a escola porque as estradas não têm condições de suportar o ônibus escolar. Isso é muito ruim, não só para os alunos, mas para toda a comunidade, porque perdemos mão de obra formada, muitos alunos estão desistindo de estudar”, diz.
Kayandra não desistiu, mas mostra desânimo e diz que seus colegas também se sentem frustrados. “Eu estudo à noite. Falo com meus amigos por whatsapp e tá todo mundo desanimado por não poder ir para a escola. É muito triste não saber se vamos conseguir terminar o ano”, conta a estudante.
Esmeralda Ndili caminha dentro de casa de um lado para o outro. Inquieta, ela deixa a mãe e a irmã aflitas. De quando em quando sorri. Um riso que mostra as gengivas, mas de uma alegria que tem cara de desespero. Outras vezes fica chorosa, reclama, se irrita. Essa é sua rotina há meses.
Esmeralda é aluna da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) do município de José Boiteux. Sua casa pode ficar a 15 quilômetros de distância da escola onde estuda, ou a 30 quilômetros, dependendo da chuva. Neste momento, cerca de 30 quilômetros a separam da Apae.
Ela mora na Aldeia Sede, uma das mais distantes da Terra Indígena. Sua casa fica numa encosta, de frente para uma vasta floresta nativa. O acesso é difícil, mas um ônibus escolar buscava Esmeralda três vezes por semana. Porém, isso não acontece mais e, desde o início de outubro, ela está em casa. A falta das aulas tem lhe prejudicado muito.
Esmeralda tem 42 anos de idade, mas seu entendimento de mundo é o de uma criança. E como uma criança, ela não compreende que não pode ir à escola. Uma de suas irmãs é vice-cacique da Aldeia Sede, e as outras são professoras na Escola La Klãnõ. Todas acompanham aflitas o drama da irmã, que é também o drama delas e o de seus filhos e filhas. “Ela fica muito irritada por não ir para escola. Reclama e pede todos os dias para ir. Fica esperando o ônibus aparecer, mas ele não aparece, não tem como chegar aqui”, conta Semeia Brasil Simas, que é a vice-cacique.
A mãe delas é Neli Ndili, uma das anciãs da Terra Indígena Ibirama La Klãnõ. Aos 84 anos, praticamente cega por problemas de catarata, ela levanta as mãos para o céu e lamenta por não estar junto daqueles que já se foram. Ndili não suporta mais o descaso com que seu povo é tratado pelo governo do estado e pelas prefeituras da região.
Ela nasceu e cresceu naquela terra. Assim como seus pais, avós e bisavós, também foi perseguida. Também lutou, resistiu e protestou. Hoje, percebe mais uma vez que essa luta parece não ter fim. “Sempre foi assim, desde a época do meu pai que eles perseguem os índios. Antes eles matavam, agora eles deixam pra morrer. Não tem como sair de casa. Não tem como chegar aqui por causa das estradas, toda hora tem uma estrada desmoronando e eles não fazem nada”, diz a anciã que terá sua história contada de maneira mais profunda na segunda reportagem desta série.
Cada vez que a terra indígena é alagada, Ndili recorda o que seus antepassados passaram, correndo pelas matas no século XIX e começo do século XX para fugir de assassinos contratados pelo governo estadual, por governos da região e por ricos fazendeiros.
Eram as chamadas Patrulhas de Bugreiros, que passaram a matar e capturar os Xoklengs, na época chamados também de Botocudos. Havia um conflito com imigrantes europeus que tinham se instalado na região. Essas famílias compraram e ganharam propriedades do governo de Santa Catarina. Mas a terra já tinha dono e os indígenas resolveram resistir de diversas maneiras.
Ao resistir, passaram a ser perseguidos por bandos armados. Durante décadas foram caçados nas matas de todo o estado. Estima-se que mais de 20 mil foram mortos, incluindo mulheres e crianças. Orelhas arrancadas a facão eram o comprovante entregue pelos bugreiros ao governo do estado para receber o dinheiro pelo serviço feito.
Uma escola em ruínas
Na Aldeia Palmeirinha, existe uma construção com formato redondo, em forma de oca. Um local grande, fixado no alto de um cume, de onde se tem uma visão extraordinária do majestoso Rio Itajaí Açu e das florestas tropicais da Terra Indígena.
Mas a construção está em ruínas. Sobram infiltrações, rachaduras e, em alguns locais, o teto pende, avisando que é só questão de tempo para que ele e o chão se encontrem.
O prédio é o que restou da antiga Escola La Klãnõ. É sua primeira sede, erguida no ano de 2004 pela Secretaria Estadual de Educação de Santa Catarina. Com a escola, foi construída a “Casa de Memória”, um espaço para preservar patrimônios como documentação e um museu da cultura Xokleng. O colégio era mantido pelo Governo do Estado e oferecia pré-escola, ensino fundamental, médio e Educação de Jovens e Adultos.
Mas no ano de 2013 a escola começou a sofrer com rachaduras. Havia uma instabilidade no terreno e, aos poucos, o piso começou a levantar. O colégio estava condenado, e as famílias indígenas pediram sua interdição, o que ocorreu no ano de 2014.
Centenas de alunos frequentavam aquela escola. Para suprir a demanda, uma escola provisória foi instalada, e funciona até hoje, na Aldeia Plipatol, perto da barragem. Há dez anos a solução é improvisada.
Andersom Camlem também é professor indígena. Ele mora na Aldeia Kôplêng e passa boa parte de seu tempo em um acampamento montado perto da barragem, como forma de pressionar o governo do estado a cumprir suas obrigações com os Xokleng. Ele estudou na antiga escola que hoje está em ruínas. Não tinha voltado lá antes de acompanhar a reportagem durante toda a nossa estadia.
Voltar ao local onde cresceu e aprendeu é muito forte para ele. “É a primeira vez que eu volto aqui depois da interdição da escola. É muito forte ver essa estrutura abandonada. Um local que formou uma geração. Quando eu estudava aqui, nem pensava ainda em ser professor”, diz.
Anderson lamenta que a escola esteja em abandono porque, hoje, ela seria uma alternativa para a manutenção do ano letivo para centenas de estudantes. “Se a escola estivesse funcionando, ou se outra tivesse sido construída aqui na região, hoje os alunos das aldeias poderiam vir para as aulas, porque aqui é bem mais perto do que a escola que fica próxima da barragem. É mais um descaso histórico do governo do estado para com os indígenas”, conclui.
E antiga Escola La klãnõ fica num ponto estratégico e hoje ela poderia atender alunos das aldeias Palmeirinha, Figueira, Sede, Coqueiro, entre outras.
Dívida histórica
Os indígenas resistiram à construção da Barragem Norte nos anos de 1970. Sabiam dos prejuízos que ela traria. O primeiro deles, foi a separação das famílias. Antes da barragem, havia apenas uma aldeia na Reserva, por conta da construção outras aldeias precisaram surgir, já que a comunidade, que vivam em torno do Rio Hercílio, foi separada e famílias foram realocadas para pontos bem mais distantes na T.I.
Casas foram inundadas e condenadas, escolas desativadas, cemitérios e sítios arqueológicas jazem hoje sob as águas.
Desde a década de 1980, diferentes convênios foram firmados com os órgãos públicos para que fossem tomadas medidas preventivas, corretivas e compensatórias pela destruição causada na Terra Indígena.
O primeiro convênio foi assinado em 1981 e foi entre a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), que foi o executor da barragem. Em 1987, foi firmado o Protocolo de Intenções entre os mesmos órgãos. Em 1992, devido à morosidade e descaso dos órgãos competentes para realizarem o que foi firmado, a comunidade Xokleng fez uma expressiva manifestação que resultou em mais um Protocolo de Intenções, agora assinado pela Secretaria de Desenvolvimento Regional, Funai e Governo do Estado de Santa Catarina.
Em 1998, o Governo do Estado e o Ministério do Orçamento e Planejamento assinaram o Convênio n.041, referente a mais um Protocolo de Intenções, pois até 1997 o protocolo anterior não havia sido concretizado e a comunidade indígena novamente se manifestou.
Em 2007 a Justiça Federal condenou a União e o Estado de Santa Catarina a cumprirem o protocolo de intenções entre os governos federal e estadual, para compensação dos prejuízos à comunidade Xokleng, pois considerou que parte das medidas não foi efetivamente cumprida.
Das medidas compensatórias, conforme as lideranças indígenas, até hoje foram construídas 186 casas das aproximadamente 280 casas prometidas, não foram construídas duas pontes pênsil que seriam fundamentais para a ligação entre quatro aldeias e melhorias de estradas que dão acesso às cidades vizinhas e entre aldeias. Segundo o superintendente da Funai para a Região Sul, João Maurício Farias, na entrevista Funai reconhece: Barragem Norte tem dívida com os Xokleng, concedida para Elaine Tavares e postada no Youtube, é urgente a necessidade de um estudo de impacto socioambiental da Barragem Norte na Terra Indígena Xokleng-Laklãnõ.
Antônia Konhecó Patté, vice-cacique da Aldeia Kôplêng e representante das Mulheres Xoklengs. Ela acompanhou de perto os prejuízos trazidos pela barragem. Seu pai era uma grande liderança dos Xoklengs e lutou contra o represamento do rio. Antônia considera que a falta de reparação por parte do estado faz parte de um projeto de extermínio que remonta ao século XIX, quando os botocudos fugiam das patrulhas de bugreiros. “Tomaram nossas terras e querem tomar também nossa história. Querem nos apagar. Se antes nos perseguiam nas matas, agora perseguem nos gabinetes em Brasília e em Florianópolis. O que acontece aqui é um projeto de sufocamento, nos deixam sem estrutura, sem assistência, sem recursos e agora sem educação. É uma maneira que o estado encontrou de nos eliminar. Mas eles estão enganados, nós vamos resistir”, exclama.
Atualização: Até a publicação desta reportagem as aulas não tinham sido retomadas na Terra Indígena Ibirama La Klãno. Uma das pontes que ligam as aldeias, e que estava sob a água, ressurgiu depois que o rio baixou e deve passar agora por uma perícia para que sejam avaliadas as condições de sua estrutura.
O que diz o outro lado:
Governo do Estado de Santa Catarina
A reportagem do Parágrafo 2 entrou em contato com a Assessoria de Imprensa do Governo do Estado de Santa Catarina pedindo notas de esclarecimento sobre as denúncias trazidas nesta reportagem.
A reportagem questionou, entre outros fatos, as ações que o estado realizou depois do fechamento da barragem, a não construção da escola condenada e as acusações de represálias do governador Jorginho Mello depois da derrubada do Marco Temporal.
A Assessoria de Imprensa não respondeu aos questionamentos.
Municípios da Região
O Parágrafo 2 entrou em contato com as prefeituras dos municípios de José Boiteux, Vitor Meireles, Doutor Pedrinho e Itaiópolis pedindo notas sobre a responsabilidade dos municípios para com a manutenção das estradas da região, entre outros questionamentos.
Apenas Vitor Meireles respondeu por meio de seu vice-prefeito, Ivanor Boing.
Sobre a escola da Reserva, o vice-prefeito respondeu que:
“A Escola La Klãnõ é escola estadual localizada no município de José Boiteux, sendo assim responsabilidade é Estado de SC”.
Sobre a manutenção das estradas ele respondeu que:
“Na comunidade indígena que pertence ao município de Vitor Meireles, aldeias coqueiro e aldeia figueira, temos as rodovias VMS-409, VMS-410 e VMS-411, todas vicinais, essas a manutenção é de responsabilidade do município, não existe uma periodicidade fixa, conforme a necessidade.
A manutenção das estradas municipais é muito conforme a intensidade de trânsito, assim manutenção se dá muito conforme as necessidades, seja estrada pertencente as terras indígenas e não indígenas”.
Funai
O Parágrafo 2 entrou em contato com a Funai pedindo nota de esclarecimento sobre a atuação da Fundação na Terra Indígena e a situação vivida pelos estudantes.
A Funai não respondeu.
3 comments
Pingback: Indígenas Xokleng/La Klãnõ são atacados a tiros em Santa Catarina - Parágrafo 2
Pingback: Xoklengs pedem doações para grande evento do Abril Indígena - Parágrafo 2
Pingback: Hariel Paliano e Marcondes Namblá: Xoklengs assassinados pela omissão do estado - Parágrafo 2