Últimas Notícias
Home » arte » O Poço de Galder Gaztlu-Urritia é o terror cristão

O Poço de Galder Gaztlu-Urritia é o terror cristão

“…há homens de baixa condição que estouram por parecer cavaleiros, há outros nobilíssimos que morrem por parecer gente baixa; àqueles levanta-os ou a ambição, ou a virtude; a estes rebaixa-os ou a frouxidão ou o vício” (Don Quixote – Capítulo V, Miguel de Cervantes).

            Disponível na Netflix, o premiado filme nos festivas de Sundance, Toronto e Stiges, O Poço (A Plataforma), do diretor Galder Gaztlu-Urritia, acompanha Goreng (Iván Massagué), confinado por vontade própria, na cia de Don Quixote, para parar de fumar e na busca do certificado homologado ao final. No entanto, durante a estadia o personagem compreende que em situações de fome e privação é melhor comer do que ser comido e as mudanças, numa sociedade dividida por andares ou classes sociais, não se produzem de maneira espontânea. Porque, não há solidariedade entre as partes e igualdade de consumo.

Galder Gaztlu-Urritia, em seu primeiro longa-metragem, aborda a sociedade dividida por níveis nos quais representa os ricos acima e os pobres abaixo, enquanto existe a parcela do meio tentando subir. Esta que se alimenta dos restos, distancia-se dos seus e reproduz os hábitos dos dominantes, perpetuando-os aos andares inferiores. O sistema vertical de classes bem como o companheiro de cela do protagonista, Trimagasi (Zorion Eguileor) ressalta na abertura do filme, enquanto o delicioso banquete é preparado, “existem três tipos de pessoas: as de cima, as de baixo e as que caem”.

Goreng, assim como Don Quixote, idealista lutando contra os moinhos de vento, contra inimigos imaginários ou realizando esforços em vão. No começo recusa-se a comer dos restos alegando não ter fome e, ainda numa situação confortável, prefere ler o seu livro. No entanto, Trimagasi, que passou por outros níveis, ajoelha-se a frente das sobras e fartar-se até as últimas migalhas, como um esganado. Termina a refeição, joga a garrafa de vinho vazia novamente na plataforma descendo, eles reclamam, esbraveja, abre a braguilha das calças e urina nós de baixo. Trimagasi reforça “o andar 48 é um bom lugar. É melhor comer”. Mesmo assim, recusa-se. Mas, pela dúvida pega uma maçã não mordida para depois. Não se pode guardar nada da plataforma ao risco punição de imediata.

O senhor de moral questionável, espécie de consciência e fiel escudeiro Sancho Pança, enganado pelo comercial de TV e por ter matado um imigrante ilegal ao arremessar o aparelho pela janela, escolheu o confinamento ao Hospital Psiquiátrico. Esteve nos níveis 72, 26, 43… 8 e 132 sendo neste último obrigado a alimentar-se de carne humana cortando pequenas tiras do companheiro de cela. Porém, civilizadamente, não o matou. “A fome desata a loucura. A amizade começa a se deteriorar e não há muito o que fazer […] então nesses casos é melhor comer do que ser comido”, reflete. Os presos podem trazer para o confinamento um objeto pessoal. Trimagasi escolhe a faca de fio infinito fruto da sua ruína, a Samurai Plus.

O banquete preparado a perfeição pela Administração desce na plataforma comunitária com alimento suficiente, provavelmente, para todos os presos. Mas, desde o topo da cadeia não há cooperação e alguns pela ganância de outros irão passar fome. Os prisioneiros ao certo desconhecem quantos níveis existem, uns dizem 200, 202, 250. Mas, sabem que a partir do 50 nem todos se alimentam diariamente. Observando o sistema, o protagonista tenta argumentar para que consumam apenas o necessário da plataforma e o companheiro de cela o indaga e o alerta. “Você é comunista? Não se deve conversar com os de baixo e os de cima não vão lhe ouvir”.

Embora os personagens, à primeira vista, apresentem diferenças ideológicas e animosidade. No entanto, passados 30 dias de confinamento conseguem desenvolver uma convivência amistosa e compartilhada… enquanto há sobras. Goreng alimenta-se e, até certo ponto, contagia o companheiro com os seus delírios e idealismo pueril. “Eu te considero Goreng. Acho que não irá sobreviver por muito tempo aqui. Mas, eu te considero, você tem um bom coração”, pondera Trimagasi. Antes da perfídia que os aguarda e do próximo mês, os personagens dialogam sobre a credulidade de Deus e do Diabo, entre os opostos, e o quanto em situações de opressão o instinto de sobrevivência prevalece sobre a razão e a moralidade ou como permite-se a nós atos de crueldade. “Você acredita em Deus?”, Trimagasi o responde e reafirma “este mês, sim. Este mês, sim”.

Em diversos momentos o diretor questiona a sociedade e a existência de Deus, pois com tanta fartura de recursos e alimentos algumas pessoas ainda passam fome. A responsabilidade disto não está no divino, representado pela Administração, que a princípio, espera o funcionamento do Poço como centro vertical de autogestão que todos participam em igualdade de condições e que as mudanças deveriam florescer através de solidariedade espontânea nos integrantes do grupo. Logo, o banquete montado a perfeição pelos cozinheiros é a criação divina, a natureza, que é consumida sem nenhum cuidado, cooperação e respeito ao próximo. Para Galder a intervenção humana que acumula fortunas, subjuga o outro e extrai mais do que precisa da natureza, na concepção desse modo de sociedade, torna-se responsável e condizente com o sistema.

De acordo com o filme se todos comecem apenas a sua fatia do bolo  a mensagem chegaria aos outros níveis, porém a vida não é fácil aqui dentro e nem lá fora como diz Imoguiri (Antonia San Juan) no nível 33. A mudança justa ocorre através do convencimento pelo uso da palavra, o primeiro caminho para a compreensão, entretanto, segundo o personagem principal conclui “as mudanças nunca se produzem de maneira espontânea”. Goreng ao acordar no nível 171 prestes a ser fatiado diz “você é o único responsável pela minha morte seu filho da puta, assassino” e Trimagasi o refuta “há 340 pessoas responsáveis antes de mim que deixaram isto acontecer, a culpa não é só minha”. Após dias de incerteza de vida ou morte consegue aceitar a condição de vulnerabilidade imposta a ambos, compreendendo que na cadeia social os indivíduos são responsáveis em igual parcela e escala, expurga o ódio e o rancor, absolvendo o seu algoz. Porque, embora pareça baixo e desumano, trata-se de sobrevivência.

No andar da carruagem Goreng intercala pelos andares 171, 33 e 6, no entanto, a alternância acontece conforme abandona valores morais, mata, come carne humana e é tomado por desejos primitivos, em contraste apesar das adversidades procura manter o mínimo de humanismo. A metáfora macabra do filme está na autofagia e no canibalismo, pois alguns guerreiros antigos acreditavam que alimentando-se do inimigo absorveriam os atributos conferidos a estes como força e virilidade.

Ao alimentar-se do companheiro de cela absorve os princípios que passam a fazer parte da sua consciência, num primeiro passo para o abandono da sanidade. “Agora nós somos iguais com uma diferença, eu sou mais civilizado. Eu faço parte de você e você também faz parte de mim”, no entendimento de Trimagasi apesar de comer pedaços do companheiro não o matou. De forma não literal como abordado no filme:

João 6:54-57, Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente é bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim, quem de mim se alimenta, também viverá por mim”.                   

 O personagem principal aceita o caminho de purgação depois de relutar persistentemente ao chamado, na tentativa de quebrar o ciclo de fome no Poço sucumbe a loucura corroído por seu idealismo, já não consegue distinguir o delírio do real, vindo a comer as páginas do romance de Miguel de Cervantes, no processo de autofagia. Para o mártir resta abrir mão de si abandonando a ambição e os vícios, assemelhando-se ao homem de baixa condição prevalecendo-lhe a virtude e levantando aos confinados a mensagem de compaixão com o próximo. De acordo com Don Quixote “o grande que for vicioso será um grande vicioso e o opulento não liberal será um avarento mendigo”.

No nível 33, Goreng depara-se com Imoguiri (Antonia San Juan) acometida por um câncer terminal entra voluntariamente no Poço, depois que descobriu o tratamento dado internos. Trabalhava na Administração e era responsável pela admissão das pessoas e mesmo há 25 anos no lugar, desconhecia andares abaixo do 200 e que as pessoas passavam fome, mesmo assim, ainda defende a instituição. Tem alguns privilégios como a escolha do companheiro e permite que o personagem fume na cela. Mas, não consegue compreender entre espadas, tacos de beisebol, balestras, o porquê do romance como cia para o ambiente instável, de privações, em que os ânimos afloram facilmente. “Quem traz a porra! De um livro para dentro desse lugar?”.

A personagem, tenta sem sucesso convencer as pessoas dos andares a fazerem porções que seriam suficientes para o sustento diário, mas só após Goreng intervir sob a ameaça de contaminar a comida com suas fezes mais eficaz que a solidariedade espontânea, consegue ter êxito. Ela o provoca “Por que não faz isto com os de cima?” E, responde “porque não consigo cagar para cima”. No deserto Cristo é tentado várias vezes pelo demônio e jejua durante 40 dias, antes do caminho da crucificação, aos 33 anos de idade. E, como Judas, num ato de ato de sacrifício e arrependimento, Imoguiri se enforca permitindo que ele coma e continue vivo no próximo nível.

Confinados voluntariamente ou involuntariamente e pelos mais variados motivos, os presos podem mover-se livremente entre os níveis, mas é mais fácil descer do que subir. Pois, ninguém deseja abandonar a posição adquirida e para subir “sempre haverá um filho da puta que não lhe deixará passar” irá questionar valores e cagar no seu rosto, por isto há loucos que vão ao limite, explica Baharat (Emilio Buale) quando Goreng chega ao nível 6. Baharat carrega uma corda e tenta subir para outros níveis e acaba caindo ou sendo derrubado, visto pela sociedade como subalterno, representa “os que caem”. Pessoas capazes de tudo para subir que distanciam-se dos iguais e, inclusive, abandonam as suas crenças. No entanto, apesar do oportunismo, é fiel a princípios e sabe escutar os sábios. Torna-se o companheiro de cela na parte final da trama.

Quase no topo e restando apenas 6 andares acima Goreng, acometido pela insanidade e pela descrença, resolve descer na plataforma distribuindo comida para todos com Baharat. Orientados pelo Homem Sábio, um dos confinados, que devem convencer as pessoas pela palavra a pegar apenas o suficiente e do banquete devolveriam um prato intocável para a cozinha, pois, apesar das privações, os presos seriam capazes de dividir a comida e mantê-lo perfeito e intacto. Mas, logo nos primeiros níveis percebem que argumentar não funciona e o uso da violência não é uma opção, a dupla armada com barras de ferro convence-os apenas por meio de ameaças ou agressão física. “O messias multiplica os pães e os peixes e não os tira das nossas bocas” diz o interno do nível 7.

Os portadores da mensagem a Administração quando passam do andar 250, portando o doce de Panacota sem quase nada do banquete e esgotados, percebem que há mais de 300 níveis e quanto mais descem no Poço, fome, miséria e violência, dentre outras mazelas, crescem proporcionalmente. Basta-lhes um pedaço de melancia para quebrar a harmonia. Goreng, ao final do calvário agonizando na plataforma ao lado do companheiro Baharat, descobre que até quando não nós sobra nada há pessoas que precisam mais do que nós, num gesto de compaixão entrega o doce para que outro interno sobreviva. Embora submetido a condição premente imposta permanente ou momentânea de vulnerabilidade, preserva o pouco de humanidade.

Na cadeia social a população desconhece o tamanho do buraco e o distanciamento exato dos de cima e os de baixo. Sabe-se apenas que existe uma pequena parcela de privilegiados disposta a todo o custo a permanecer no nível em que está. E, os abaixo disto, sobra a disputa voraz pelos restos que caem da mesa, para aqueles que não lhes resta nem as sobras, a fome, miséria e a violência. A mensagem do evangelho não prega a prosperidade, mas o homem que se despe da sua condição, doa-se e distribui.

O final do filme O Poço é aberto a interpretações, pois existe a intenção do diretor e as referências a literatura, bíblia, o uso do gênero terror e a desigualdade social representada por níveis, no restante é arte. A metáfora está no caminho de cristo da purgação a ressuscitação no contraditório entendimento onde subir é descer e, descer, é subir. “Juntos saímos e juntos peregrinamos teremos a mesma fortuna e a mesma sorte, acontecerá para os dois”, finaliza Trimagasi.

About Mario Luiz Costa Junior

Jornalista e Músico, integrante colaborador do Parágrafo 2. Cronista urbano e repórter de cultura e sociedade, tem como referência os textos literários e jornalísticos de Gabriel Garcia Márquez e Nelson Rodrigues, da lírica de Cartola e da confluência de outras artes, como o cinema, no retrato do cotidiano no enfoque da notícia. Acredita que viver é um ato resiliente no caminho de pedra para a luz.