Foto principal: Baiana e o filho Alexandre.
Texto: José Pires
Fotos e vídeos: Everton Mossato
No mapa do município de Campo Magro, na Região Metropolitana de Curitiba, não há nenhum bairro chamado Vila Nova Esperança, mas ele existe. Mesmo ocupando um local no qual os primeiros residentes chegaram há décadas, as casas e os habitantes de lá são novidade na cidade vizinha à Curitiba. A área onde o novo bairro surge tem 42 alqueires e é um pedaço de chão distinto dos demais. Se chamava Fazenda Solidariedade, uma simetria semântica com a ocupação criada pelos novos moradores. Por ela passaram, durante anos, aqueles com os quais a sociedade não quer se responsabilizar. A fazenda pertence ao governo do estado do Paraná, mas foi cedida à Fundação de Ação Social (Fas) de Curitiba e abrigava uma clínica para dependentes químicos e também servia de abrigo para pessoas em situação de rua. Em 28/08/2009 a clínica foi fechada pela Prefeitura de Curitiba sob a alegação que o alto custo não era condizente com o percentual de recuperação dos dependentes.
No dia 25 de maio de 2020 o Movimento Popular por Moradia (MPM) ocupou a área e agora mais de 600 famílias vivem no local. A chegada dos novos moradores jogou luz sobre elementos comuns à história do lugar. Primeiro deixou evidente que aquela porção de terra tem a capacidade de atrair aqueles que precisam recomeçar. E por fim, deixou claro que o poder público, seja ele estadual ou municipal, sempre viu tais pessoas como um problema.
Cerca de 300 metros separam a prefeitura municipal de Campo Magro da Ocupação Vila Nova Esperança. Entre as duas realidades há a Estrada do Cerne. Contrariando a tradição hospitaleira das pequenas cidades, o prefeito de Campo Magro, Claudio Casagrande (PSD), não foi oferecer uma xícara de açúcar aos novos vizinhos. Pelo contrário, apavorado com a possibilidade de precisar legislar sobre o bem-estar dos novos residentes, partiu pro ataque.
Entretanto, as pessoas que vivem na ocupação são calejadas. A vida lhes impôs todo tipo de ataque. Carregam nos ombros o crime da pobreza e colecionam investidas contra sua dignidade e liberdade desde que se entendem por gente. As mães que arrastam os filhos de supetão quando o aluguel atrasado se transforma em despejo, desempregados que não suportam mais acomodar esposa e filhos no cômodo minúsculo da casa de parentes, haitianos que sequer falam o português e se amontoam em barracos nas periferias da capital, todo eles sempre suportaram o peso de serem considerados um problema.
“A terra que querias ver dividida”
O Movimento Popular por Moradia é quem organiza a demarcação e a distribuição dos terrenos na Ocupação Vila Nova Esperança. Á frente da tarefa está Valdecir Ferreira. Magro e esguio ele caminha o dia todo por entre as estreitas ruas formadas pela passagem dos veículos que transportam madeira e Eternit. Por minutos desaparece em meio à fumaça que sai das fogueiras que preparam o almoço. Ressurge em meio a um grupo de haitianos que contesta a medição de um pedaço de terra. Valdecir, ou Val, como é mais conhecido, reflete a tranquilidade daqueles que se acostumaram a enfrentar tempos difíceis. Diante das muitas demandas, ele se vale da credibilidade que tem na luta por moradia e da voz semelhante a um trovão, para impor certa ordem na Vila. “Estamos nos ajeitando, sempre têm uns percalços, sempre têm alguns mais exaltados, mas aqui todo mundo vive em igualdade, no fim sempre conseguimos”, diz.
Na fazenda existem dois tipos de imóveis. Antigas edificações, cuja alvenaria luta para resistir ao tempo, e pequenos barracos de compensado amarelo ocre. Nas estreitas ruas, casas recém levantadas ladeiam terrenos 10x20m demarcados com fitas amarelas. Quem consegue construir precisa se mudar imediatamente, afinal a função da ocupação é produzir moradia. Uma desritmada sinfonia de martelos e serrotes embala a rotina da manhã até o início da noite quando a falta de luz impossibilita o trabalho.
As famílias que chegam na ocupação entram em uma fila de espera. Aqueles que possuem alguma deficiência física, por exemplo, aguardam nos alojamentos. Quem explica é Silvane, braço direito de Val e integrante do Movimento Popular por Moradia. Ela parece conhecer cada família, cada história, mostrando que o trabalho de acolhimento do MPM é muito mais profundo do que a simples distribuição dos terrenos.
Alguns alojamentos são enormes. Construções com salas amplas e corredores escuros que abrigaram no passado dependentes químicos e pessoas em situação de rua, sem tetos, na semântica mais pura do termo. Pois a vocação do lugar renasceu. Hoje já não vivem nele pessoas em drogadição, mas o procuram novamente aqueles cuja vida insiste em negar um lugar pra chamar de seu.
Em entrevista à Banda B, o prefeito Claudio Casagrande definiu a ocupação como um perigo para a cidade de Campo Magro. Além disso, segundo ele, era comum entre os ocupantes pessoas muito bem vestidas, com roupas “caras” (curiosa essa função do prefeito de avaliar o preço de roupas). Mas, certamente ele não falava da pequena Isis. Aos nove meses de idade ela vive com a mãe Karine Meireles, com o pai Tafarel Portela da Silva e com a irmã Giovana que tem sete anos. As roupinhas de Isis não são caras, todas as que ela tem vieram de doação, circunstância que obviamente não apaga a beleza dos grandes olhos cor de jabuticaba que se sobressaem no pequeno rosto. Imersa na inocência do primeiro ano de vida, ela tateia a máscara da mãe enquanto esta lembra os difíceis meses que levaram o casal e as filhas a buscar refúgio em Campo Magro. O marido sofreu um acidente de moto. Uma fratura na perna o deixou impossibilitado de caminhar e refém de duas muletas. A única renda em casa era sua. Trabalhando na informalidade acabou desempregado. Do seguro do carro que o atropelou nunca viu um centavo. Também não recebeu nada do seguro de Danos Pessoais por Veículos Automotores Terrestres (DPVAT). “Esses últimos meses foram bem difíceis. Como ficamos sem renda as contas foram vencendo, o aluguel também, e nosso destino seria a rua ou um cômodo na casa de parentes”, diz Karine. Tafarel, mesmo amparado pelas muletas, parece respirar aliviado já que as filhas e a esposa estão sob um teto. “Vamos reconstruir nossa vida aqui, pra nós esse lugar representa um divisor de águas”, sentencia.
Parece mesmo que a antiga Fazenda Solidariedade tem o poder de atrair os semelhantes. Nos barracos de 2x2m não se amontoam apenas roupas e objetos símbolos de uma vida, ali, no cômodo minúsculo, são paridos diariamente sentimentos de pertencimento e dignidade. Izabel Fernandes é baiana. Há sete anos deixou a cidade de Sobradinho, no polo de Petrolina, e veio tentar a vida na fria Curitiba. Sobrevivia como dava, trabalhando como auxiliar de produção em uma empresa, vendendo pão e mortadela em uma padaria.
Há dois anos, no entanto, recebeu um duro golpe da vida. O filho, Alexandre Fernandes, jovem cheio de vida aos 22 anos, voltava do trabalho de bicicleta quando foi atropelado por um ônibus da empresa Redentor. Dois anos depois ele permanece na cadeira de rodas, passou por várias cirurgias, toma medicamentos todos os dias, usa fraldas e depende da mãe pra tudo.
Ela, o filho e o esposo dividem o minúsculo barraco. A cama, mais confortável, fica para Alexandre, Baiana dorme num colchão sobre o chão de terra. Sem janelas, na nova casa da família parece impossível respirar. Não fosse baiana uma mulher de feitos impossíveis a vida seria ainda mais dura. Na companhia do esposo e das filhas (estas também com um casebre na ocupação), a nordestina montou uma venda sob um puxado de lona no pequeno quintal a que tem direito. Nela vende doces, salgados, pão, cerveja, cigarro. Um complemento de renda milagroso para quem vive com R$ 600 de auxílio emergencial e R$ 91 do Bolsa Família. Sua luta, além da consolidação da moradia, é pra conseguir o Benefício de Prestação Continuada (BPC) do governo federal para o filho hoje em condição de invalidez. Da empresa Redentor não conseguiu nada. Sua redenção vem da possibilidade de ter uma casa e do amor pelo rebento que, depois de adulto, precisa voltar ao colo da mãe por força do destino, e pela omissão de uma empresa que tem plenas condições de amenizar financeiramente o crime que cometeu. “É preciso ter determinação porque sem luta a gente não consegue nada. Eu gosto de persistir pra no futuro ter condições de ter uma casa e cuidar melhor do meu filho. Espero que em um ou dois anos as coisas estejam melhores, e na verdade tenho certeza de que estarão”, prevê Baiana enquanto serve salgados na vendinha, lugar que é um dos pontos de encontro na ocupação.
Moradia, um direito de todos
No Brasil, o déficit habitacional estimado pela Fundação João Pinheiro para 2015 (dados mais recentes sobre o tema) era de 6,4 milhões de unidades, dos quais 79% se concentrava em famílias de baixa renda. O levantamento foi feito com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e mostra também que 87,7% do déficit habitacional quantitativo (moradias em falta, seja por habitação precária, coabitação familiar, pessoas demais por metro quadrado, ou custo alto de aluguel) está localizado nas áreas urbanas – 39% na região Sudeste, seguido de 31% na região Nordeste. Além disso, 24,4% das moradias urbanas brasileiras são consideradas inadequadas por apresentar ao menos um dos seguintes problemas: inadequação fundiária (terrenos irregulares), carência de infraestrutura, ausência de banheiro de uso exclusivo, cobertura inadequada e adensamento excessivo dos domicílios próprios.
No Paraná, segundo a Companhia de Habitação Paranaense (Cohapar), existe um déficit de 400 mil moradias. Quase meio milhão de famílias não têm casas adequadas para viver. Valéria Fiori, advogada popular e militante do Coletivo Alicerce, destaca que não existem mais políticas concretas de moradia, tanto em âmbito municipal, estadual ou federal. “Programas importantes como o Minha Casa Minha Vida foram muito enfraquecidos. Precisamos de ações de regularização de imóveis, muitas comunidades têm terrenos que inclusive foram pagos, mas não têm o registro de propriedade. Além disso, a questão de moradia não se limita apenas às casas, é preciso que exista uma infraestrutura para essas pessoas, como asfalto, calçadas, luz e água regularizadas, ou seja, a questão de moradia está interligada diretamente com investimentos em urbanização”, ressalta a advogada.
Ter um local para morar trespassa a relação entre edificação e registro imobiliário. Segundo estudiosos da chamada “Geografia Humanista”, quando o homem consegue seu pedaço de terra e se relaciona de forma afetiva com o espaço onde vive, ele se torna o próprio ambiente. Vivencia uma intimidade tão profunda que se liga à terra de corpo e alma. Um faz parte do outro, como se ambos se fundissem.
Provavelmente Mauro Rodrigues passou por esse “momento de fusão” quando, ajoelhado, beijou a terra preta e fria da Vila Nova Esperança. Prostrado, incrédulo, agradecia de forma religiosa o quinhão que recebia, um pedaço de vida medindo 10x20m, seu lugar nesse mundão de meu Deus. Homem corpulento, acostumado com o peso da madeira e dos sacos de cimento da construção civil, desabou em choro quando ganhou seu terreno em uma das esquinas da Ocupação, “limpinho”, lembra ele, “tinha apenas um toco apodrecido pra arrancar”. Mauro, assim como 40 milhões de brasileiros, vive na informalidade. Os serviços de jardinagem e de marido de aluguel desaparecem quando os maridos de verdade precisaram ficam em casa por conta da epidemia do Novo Coronavírus. A crise econômica, agravada pela crise de saúde, impõe hoje desemprego a mais de 12 milhões de brasileiros.
Mauro está na ocupação desde a primeira semana. Ajuda na construção dos barracos em troca de material para o seu. Como todos ali, vê na ocupação um recomeço e a possibilidade de resgate de uma dignidade há tempos perdida. “Vim pra cá pra me livrar pelo menos do valor do aluguel. Pagava aluguel no Capão Raso, fiquei sem trabalho e o dono da casa chegou e me questionou quando eu conseguiria pagar? É uma situação muito difícil, eu preferia ir pra rua do que ficar devendo. Agora tenho um lugar pra ficar, minha casa tá pronta, me mudo hoje”, conta.
Um caldeirão de generosidade
A terra é apenas um dos elementos necessários na formação de uma nova comunidade. Na Ocupação Vila Nova Esperança existem também vários outros elementos fundamentais para a vida comunitária. Numa cozinha um grupo de voluntárias prepara e serve cerca de 300 refeições por dia. As doações ajudam a alimentar aqueles que ainda não têm condições de cozinhar no seu barraco. As doações vêm de diversos movimentos sociais.
Juliana dos Santos, de 35 anos, é uma das cozinheiras:
Juliana também é mãe. De seu ventre surgiu uma prole de oito crianças. Cria-los sozinha é tarefa hercúlea. Impossível juntar dinheiro pra comprar uma casa. Na ocupação ela ganhou a sua. Uma antiga residência da qual restam apenas as paredes. Mas o MPM conseguiu cobriu duas peças onde ela se acomoda com metade dos filhos, o restante ainda não veio pro novo lar. A menor das filhas corre por entre os cômodos e descreve como a casa ficará depois de pronta. Num quarto ficarão ela e uma das irmãs, na sala haverá sofá e televisão e na cozinha haverá água. Sim, água. Quem desejaria apenas o item mais básico da vida? Certamente alguém que já foi privado desse bem.
As famílias na Ocupação Vila Nova Esperança não querem a terra de graça. Estão dispostas a pagar por ela, em prestações que caibam na realidade de todos. Confira a entrevista com Val:
O professor Galeno Cristóvão Machado não mora na ocupação. Mas vai ao local várias vezes por semana na tentativa de ajudar as famílias. Para ele, a Vila Nova Esperança tem uma função muito importante inclusive de denúncia sobre o descaso do estado com a questão da moradia no Brasil. “É inadmissível que tenhamos no país uma quantidade gigantesca de casas e terrenos desocupados de um lado e milhões de famílias sem moradia de outro. O modelo de moradia proporcionado na ocupação de Campo Magro tem também como função a melhoria na qualidade de vida de milhares de pessoas. Além das casas, os quintais possibilitam a criação de hortas e oferecem um espaço para que as crianças brinquem e cresçam de uma maneira livre e saudável”, enfatiza.
E crianças é o que não falta em Nova Esperança. Elas correm e se misturam à terra preta numa adaptação fascinante ao lugar. Inconscientes das durezas que vivem sonham entre as árvores, talvez prevendo que sua estadia na fazenda possa se estender a seus filhos, e aos filhos desses. Correm, cansam e dormem como crianças que são. O barraco onde duas delas vivem com a mãe tem 1mx1m. É o menor da vila. Minúsculo mesmo ele fica diante da harmonia de mãe e filhos que se espremem numa mistura de esperança e calor humano quando o frio da noite ameaça mais do que uma possível reintegração de posse.
Entre as crianças há muitas haitianas. Com os olhos vivos elas acompanham todos que passam. Num misto de medo e curiosidade colocam as cabeças no batente da porta numa observação hipnotizante. São mais de 50 famílias de haitianos. Um desafio que vai da comunicação à cultura. Para ajudar na tarefa de integrar os imigrantes o MPM escolheu o haitiano Jean. Confira a entrevista com ele:
Ataques
A presença das famílias na Ocupação Vila Nova Esperança soou como uma declaração de guerra ao prefeito Claudio Casagrande. Em entrevista à Banda B Casagrande acusou os novos moradores de diversos crimes. Entre eles de desmatar a mata nativa, que é protegida por lei. Entretanto, a Policia Ambiental esteve na Ocupação e não identificou nem um crime. O prefeito também atribuiu um roubo em um posto de gasolina próximo, à integrantes da Vila Nova Esperança. Porém, funcionários do posto, que é o único da cidade, disseram ao Parágrafo 2 que não podem afirmar que foram integrantes da ocupação que cometeram o crime.
Por telefone, em conversa com o Parágrafo 2, José Wilson, diretor de comunicação da Prefeitura Municipal de Campo Magro disse, que o prefeito sonhava, quando assumiu o cargo, em torna a área onde hoje fica a ocupação, na sede da prefeitura municipal. Em tratativas com o ex-governador Beto Richa, Casagrande não teve sucesso.
O Parágrafo 2 encaminhou perguntas à assessoria de imprensa da prefeitura. Questionamos quando prefeito esteve na Ocupação e viu todas as irregularidades relatadas à Banda B? Não obtivemos resposta. Questionamos também se câmeras de segurança da prefeitura podem ajudar a identificar o autor de um suposto bilhete de ameaça endereçado ao prefeito e que foi deixado em frente ao prédio da prefeitura? De novo o silêncio.
O prefeito nunca esteve na Ocupação. Quem também não esteve foi o vereador Marcio Bosa. Ele criou um abaixo assinado online no qual pede ao governo do estado o despejo imediato das famílias. Também pedimos resposta ao gabinete do vereador sobre quando ele esteve na ocupação. Não tivemos retorno.
A Ocupação Vila Nova Esperança precisa de doações. São bem vindo alimentos, móveis, materiais de construção, de limpeza, roupas, eletrodomésticos, máscaras, álcool em gel, entre outros.
Para se informar sobre como doar você pode entrar em contato com os seguintes telefones:
Valdecir Ferreira: (41) 98531-5148
Galeno Cristóvão: (41) 99636-1209
Silvane: (41) 99748-4646
Ou pelo e-mail: contato@paragrafo2.com.br