*Foto principal: Samira Neves
Com o apoio do Fundo Brasil de Direitos Humanos (FBDH), a Agência de Jornalismo Livre.jor deu vida ao Projeto Latentes. Ele é uma compilação de dados públicos georreferenciados à disposição de defensores ambientais, pesquisadores e jornalistas e que revela o quão perto está o extrativismo mineral das unidades de conservação, das terras indígenas, das comunidades remanescentes de quilombolas e dos assentamentos da reforma agrária. O objetivo é ressaltar onde se encontra a tensão socioambiental no Brasil.
O Latentes simplificou o acesso a informações da Agência Nacional de Mineração (ANM), do Ministério do Meio Ambiente (MMA), da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Basta utilizar o mapa para detalhar a situação da área de interesse. É possível acessar as bases de dados na documentação e tirar dúvidas pelo e-mail latentes@livre.jor.br
José Pires, jornalista e editor do Parágrafo 2, contribuiu com o projeto por meio de entrevistas com especialistas da área ambiental na tentativa de trazer mais informações sobre os conflitos socioambientais em áreas de extração ou com potencial para extração de minérios. Á partir de hoje o Parágrafo 2 publica estas entrevistas na íntegra, em um esforço conjunto com o Livre.jor na tentativa de retratar uma realidade tão grave.
Entrevista
Rosilene Komarcheski é bacharela em Gestão Ambiental, mestra em Meio Ambiente e Desenvolvimento e doutoranda em Sociologia, na linha de pesquisa “Ruralidades e Meio Ambiente”, todos pela UFPR. Mas sua formação não se resume necessariamente aos cursos, ela tem se dado também pelas experiências de trabalho principalmente junto a comunidades camponesas e quilombolas. Atualmente, Rosilene desenvolve sua pesquisa de doutorado com uma comunidade quilombola situada no município de Adrianópolis no Paraná. Na região ela investiga os processos de luta e resistência protagonizados por eles.
Latentes: A quanto tempo você realiza sua pesquisa em Adrianópolis e quais são os principais objetivos dela?
Rosilene: Meu trabalho de pesquisa sobre a mineração em Adrianópolis teve início em 2016, quando, por conta do trabalho do meu companheiro, acabamos indo morar em uma comunidade quilombola no município. Desde que chegamos lá, nos incomodou muito percebermos como tem se dado o avanço de grandes empreendimentos extrativistas sobre este e os demais territórios quilombolas da região. Se antes predominavam as fazendas, agora os danos e ameaças a estes territórios e suas populações também se expressam na figura de grandes empreendimentos de extrativismo madeireiro e minerário, bem como de projetos de construção de barragens na região. Ou seja, nos espantou percebermos in loco como a questão agrária passa por um processo de complexificação, onde, sob novas roupagens e estratégias, o capitalismo continua a promover a expropriação no campo. Dessa primeira grande inquietação nasceu um artigo que escrevemos em parceria com uma liderança quilombola da região, que trata dos processos de avanço destes empreendimentos sobre o território quilombola de João Surá desde a década de 1970 como expressão de um racismo socioambiental. (CRUZ, C. M.; PEREIRA, A. C. de A.; KOMARCHESKI, R. “Que desenvolvimento é esse?” Conflitos territoriais e racismo no Quilombo João Surá/PR. In: RAGGIO, A. Z.; BLEY, R. B.; TRAUCZINSKI, S. C. (org.). Abordagem sociológica sobre a população negra no Estado do Paraná. V. 1. Curitiba: SEJU, 2018. pp. 219-247.).
As minhas inquietações, em particular, a respeito da mineração na região derivaram desse trabalho anterior, o qual me possibilitou conhecer o cenário mais amplo de conflitos socioambientais que envolvem os quilombos em Adrianópolis. Desde então tenho me dedicado a investigar o contexto específico da mineração no município em anos recentes, pois as informações a este respeito ainda não se encontram sistematizadas e divulgadas, além de serem de difícil acesso, principalmente para as comunidades. Então, dentre os objetivos do trabalho, estão: primeiramente, compreender a fundo como se dá a dinâmica da mineração no município, ou seja, quais minérios estão sendo extraídos, em que quantidade, por quais empresas; e quais as perspectivas de avanço de empreendimentos minerários em Adrianópolis para um futuro breve; depois, compreender em que medida e de que forma a mineração tem afetado ou ameaçado os territórios quilombolas no município; e, por fim, o que é o objetivo maior da pesquisa, tendo as principais informações levantadas e sistematizadas, poder contribuir para os processos de luta e resistência das comunidades quilombolas em defesa de seus territórios frente ao avanço da mineração na região.
Latentes: E quais são as características socioeconômicas da região onde você desenvolve sua pesquisa?
Rosilene: As comunidades quilombolas de Adrianópolis atualmente possuem um número de famílias que varia entre 6 a 76 (de acordo com dados do Grupo Intersecretarial Clóvis Moura, 2010). Mas este número já foi bem maior, na maioria dos casos, uma vez que a partir da década de 1980 estas comunidades viram muitos de seus membros migrarem para centros urbanos, processo em grande medida motivado pelo avanço de latifúndios na região que promoveram uma compressão territorial, levando à redução significativa do tamanho das áreas disponíveis para moradia e trabalho. Em João Surá, por exemplo, hoje habitam cerca de 50 famílias, mas, segundo informações de lideranças locais, durante a década de 1970 chegaram a viver na comunidade mais de 300 famílias.
A economia destas comunidades é baseada principalmente na agricultura familiar de subsistência, sendo comercializado o excedente da produção, predominando o cultivo de banana, mandioca, arroz e feijão. Uma característica geral que afeta a todas elas, pode-se dizer, é a dificuldade em realizar a comercialização dos produtos, o que se dá muito por conta da distância dos centros urbanos consumidores e da falta de transporte e condições precárias das estradas locais. Ainda assim, tivemos algumas iniciativas importantes nesse sentido viabilizadas por políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), acessadas por comunidades quilombolas no município, que viabilizaram e, no caso desta última (acessada neste ano por João Surá e Córrego das Moças), ainda viabilizam a comercialização de parte da produção local.
Latentes: E como é a relação entre extrativismo mineral e comunidades quilombolas em Adrianópolis?
Rosilene: As comunidades quilombolas do Vale do Ribeira carregam desde suas origens uma relação com a mineração. A intensificação da ocupação na região nos séculos XVI e XVII se deu principalmente devido à intensa exploração de ouro, que se estendeu até início do século XIX, principal responsável pela grande quantidade de pessoas africanas e afrodescendentes escravizadas. Muitos quilombos se constituíram a partir da fuga de escravizados negros do trabalho nas minas de ouro que haviam na região de Xiririca (hoje Eldorado-SP), que subiam o Rio Ribeira em busca de liberdade, como é o caso do quilombo João Surá, em Adrianópolis, que re-existe há mais de 200 anos em seu território.
Na atualidade, a mineração afeta as comunidades quilombolas de outras formas, talvez mais sofisticadas, mas não menos violentas. Em Adrianópolis a mineração tem avançado a passos largos em anos recentes, o que é evidenciado pelo grande número de processos minerários ativos no município (que somam 119, segundo dados da ANM, 2018), bem como pela intensa exploração de calcário para a produção de cimento pela empresa estrangeira (portuguesa) Supremo-Sécil. Dos 9 territórios quilombolas já certificados pela Fundação Cultural Palmares no município, 3 já se encontram com sobreposição de processos minerários ativos, o que ocorre sem consulta prévia, livre e informada, conforme determina a Convenção 169 da OIT (Decreto 5051/2004). Na realidade, estas comunidades sequer dispõem de informações sobre estes processos minerários. O acesso à informação por parte das comunidades sobre a mineração na região tem se dado fundamentalmente a partir do trabalho de lideranças locais e movimentos sociais atuantes na região.
Latentes: Podemos então dizer que existe um conflito socioambiental naquela região.
Rosilene: Quando se fala em conflito é corrente no imaginário comum pensar que existe algum tipo de enfrentamento direto, explícito, entre atores que causam algum impacto e aqueles que são atingidos pelo mesmo. No entanto, além de os impactos causados pela mineração na região do Vale do Ribeira atualmente serem mais complexos, as comunidades quilombolas tendem a reagir de formas mais estratégicas e não violentas. Não é à toa que re-existem na região há séculos, tendo enfrentado vários processos de violência e opressão. Nesse sentido, compreendemos que existem sim conflitos socioambientais e territoriais que envolvem as comunidades quilombolas e a mineração na região, pois há impactos e violação de direitos, de um lado, e resistência, de outro. Em escala local podemos verificar que o avanço dos processos minerários sobre territórios quilombolas, não só em Adrianópolis, mas em vários outros municípios do Vale do Ribeira, ameaça direitos territoriais e a própria autonomia destas populações. Isso configura na região um novo processo de avanço gradual e estratégico do capitalismo no campo, que tenta impor uma lógica de apropriação privada da terra e demais recursos naturais sobre territórios tradicionais, nos quais predominam o uso comum e as relações de parentesco e vizinhança com base em vínculos de solidariedade. Olhando por uma perspectiva mais ampla, inserida no contexto latinoamericano atual, podemos perceber em Adrianópolis a emergência de uma dinâmica neoextrativista, que envolve não somente as atividades minerárias, mas também o extrativismo madeireiro e obras de infraestrutura projetadas para a região, como as barragens, por exemplo. Tratam-se de empreendimentos que tem por finalidade a extração intensiva de recursos naturais com pouco ou nenhum processamento, voltados à exportação de commodities, nos quais o Estado tem uma atuação significativa, por meio de subsídios e incentivos financeiros e fiscais para a instalação, operação e expansão destes empreendimentos, por exemplo. Além disso, outra característica do neoextrativismo latinoamericano é o aumento expressivo de conflitos socioambientais, onde acentuam-se os impactos causados pelos empreendimentos, de um lado, mas, de outro, fortalecem-se as lutas de enfrentamento aos danos causados por estes empreendimentos, seja em nível comunitário ou em movimentos sociais. Nesse sentido, temos hoje no Vale do Ribeira uma organização e atuação forte no enfrentamento às ameaças provenientes do avanço destes empreendimentos, tanto das comunidades quilombolas em si como destas em conjunto com outras organizações e movimentos sociais como a Equipe de Assessoria e Articulação das Comunidades Negras (EAACONE), o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), o Movimento dos Ameaçados por Barragens (MOAB) e o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), por exemplo.
Latentes: A Votorantim é a grande mineradora da região, certo? Como essa empresa se relaciona com as comunidades quilombolas, vocês conseguem perceber que os interesses extrativistas ameaçam as comunidades?
Rosilene: A Votorantim tem uma grande fábrica de cimento em Rio Branco do Sul, mas o que chamo de “Grupo Votorantim” (formado por 4 empresas: Votorantim, Votorantim cimentos, Votorantim Zinco e Companhia Brasileira de Alumínio) possui atualmente 47 processos minerários somente em Adrianópolis, cerca de 40% do total de processos minerários ativos no município em 2018 (que somam 119 ao todo). Não sabemos se a Votorantim tem efetivamente explorado minérios em Adrianópolis atualmente, no entanto, o fato de haverem estes processos ativos em seu nome indica que a empresa tem a intenção de explorá-los. Nestes processos ativos encontram-se minérios como calcário, cobre, chumbo e zinco, mas vale ressaltar que a Votorantim não é a única empresa que possui concessões ativas referentes a estes minérios. Sabemos que apenas têm sido explorados os minérios de calcário e areia em Adrianópolis, ao menos desde o ano de 2009, segundo dados da ANM (2018). Mas é muito preocupante verificar a existência de processos ativos referentes a substâncias metálicas (como cobre, chumbo e zinco), as quais não estão sendo exploradas por enquanto, mas que podem vir a ser em um futuro breve. Basta recordar a magnitude dos danos causados pela empresa Plumbum S.A., que atuou na exploração e processamento de chumbo no município entre os anos de 1954 e 1995. A Plumbum deixou como legado na região graves problemas de saúde para a população que trabalhou na empresa e que habitava nos bairros situados no entorno da fábrica, além de promover a contaminação do solo e lençol freático, que perduram até os dias atuais. Ou seja, um possível retorno da mineração de metais apresenta assim novos riscos à população local, ainda incalculáveis.
Retomando o caso da atuação da Votorantim, de acordo com informações de moradores da região, esta empresa teria ameaçado de expropriação algumas famílias quilombolas que habitam em um território sobre o qual ela teria concessões minerárias em Adrianópolis. Mas cabe lembrar também que a Companhia Brasileira de Alumínio (pertencente ao grupo Votorantim) possui um histórico de conflitos na região que perduraram quase 30 anos, por conta do projeto de construção da hidrelétrica Tijuco Alto, de propriedade da empresa, no qual estava prevista a construção de 4 barragens, sendo uma delas em Adrianópolis, que seu pedido de licenciamento ambiental indeferido pelo Ibama em 2016.