Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia
Beatriz tem 14 anos. É negra e vive no bairro do Sabará, Curitiba, em uma ocupação irregular. As ruas são de terra e o esgoto a céu aberto. É praticante de Candomblé. Pedro vai fazer 17 no fim do ano. Está completando o Ensino Médio e vai começar a trabalhar junto ao pai enquanto se mantém ativo na igreja evangélica da qual faz parte. Ana tem 35 anos, vive em um bairro de classe média, e faz 10 anos que atua como professora de biologia na escola pública, onde estudam Beatriz e Pedro. Estes três personagens, com histórias e trajetórias de vida diferentes uns dos outros, se encontram durante as manhãs em uma sala de aula repleta de outras vivências e experiências. É sobre esta relação que o projeto “Escola Sem Partido” pretende atuar.
Nome pelo qual ficou conhecido o PL 867/2015 de autoria de Izalci Ferreira (PSDB-DF), esteve em tramitação, até julho de 2018, em assembleias legislativas do país inteiro e no Congresso Nacional ganhando notoriedade e avançando bastante rápido a partir da eleição de Jair Bolsonaro à presidência da república. Este se propõe a impor limites na prática docente, impedindo que professores utilizem o que se chama de “audiência cativa” para promover suas crenças particulares em sala de aula, incitar os alunos a participarem de protestos ou “denegrir” aqueles que pensam de forma diferente. Assim, a educação religiosa, moral (e consequentemente a orientação sobre sexualidade) e política ficariam a cargo das famílias, propondo 6 “deveres do professor” que devem ser afixados em cartaz em todas as salas de aulas do país, cabendo aos pais e alunos “fiscalizar” os professores para que estes não cometam o que chamam de “assédio ideológico”.
Na página do na internet do “Escola sem partido” (escolasempartido.org) há uma série de características do que seria um “professor doutrinador”, assim como um canal para denunciá-los através de vídeo ou áudio gravados durante as aulas. Entre as características do que seria o sujeito que infringe esta lei está o professor que “adota ou indica livros, publicações e autores identificados com determinada corrente ideológica”, “exibe aos alunos obras de arte de conteúdo político-ideológico”, ou que “utiliza-se da função para propagar ideias e juízos de valor incompatíveis com os sentimentos morais e religiosos dos alunos, constrangendo-os por não partilharem das mesmas ideias e juízos”.
Professores e seus alunos não são sujeitos destacados do mundo em que vivem. Buscam entender a realidade na qual estão imersos e a partir de suas trajetórias incorporam culturas e preconceitos. Como todo professor já foi criança, ele possui também uma história: nasceu, cresceu, aprendeu, e teve vivencias que lhe são tão particulares que o distinguem de qualquer outro ser humano. O mesmo com cada um dos 30, 40 ou mais alunos em uma sala de aula. A prática histórica do cotidiano desde o nascimento e o acúmulo do vivido até o momento da realização da aula influencia diretamente no que, como, onde, e por quê ensinamos, assim como sua escolha metodológica e postura em sala de aula, o que faz com que tenhamos que, como diz José de Souza Martins, “reconhecer-se a si mesmo como objeto de conhecimento”[1].
Somos educadores. Vivemos em uma cidade. Como podemos pensá-la ignorando nossas vivencias nesta mesma cidade? Como podemos construir um pensamento ignorando a classe da qual viemos? Nossos interesses pessoais em debater tal ou qual questão? A nossa vivência pessoal com a cidade? A ciência que se esconde atrás da máscara da neutralidade oprime as classes mais baixas, uma vez que o desenvolvimento de conceitos produzidos a partir de seus dogmas é usado como ferramenta nas mãos de sujeitos que tem como único interesse ampliar seus lucros e conduzir o processo histórico a sua maneira. Bia, Pedro, Ana, e todos os outros possuem olhares diferentes sobre a cidade e o país em que vivem, assim como cada um dos outros vários olhares que somente uma sociedade plural, livre e democrática pode fazer conviver e partilhar entre si.
Em um país onde, segundo o IPEA, 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes, 70% dos estupros são cometidos por familiares, amigos ou conhecidos das vítimas; onde, segundo a ONU, a infecção por AIDS sobe 3% ao ano, na contramão de uma queda de 11% a nível mundial; é coerente deixar com que as famílias sejam as únicas a orientá-los em relação a sua sexualidade quando dados levantados pela empresa farmacêutica Bayer apontam que somente 8% dos pais orientam seus filhos a respeito do tema? Em um país que é o sexto mais ignorante em relação a sua própria realidade, segundo um levantamento realizado em 40 países pelo instituto Ipsos Mori, é interessante a quem que não se debatam temas relacionados a desigualdades sociais e raciais?
Paulo Freire ressalta em diversos textos que o trabalho com a família é essencial, pois muitas vezes esta colabora para o processo de isolamento que sofre o aluno, oprimindo-o dentro da própria casa e comparando-o a outros destruindo sua autoestima. A família exerce uma relação dialética com a escola, onde ambos, em conflito, se complementam, sendo essencial fortalecer a relação destes com a escola. Mas, em tempos onde o trabalho toma quase todo o tempo dos pais de família, como fazer isso? Quando se trata de uma família classe média/alta, onde os pais têm tempo livre para passear e ir ao parque com os filhos é relativamente mais fácil estabelecer esta ponte. Mas, quando se trata de famílias pobres onde os pais acordam muito antes de o Sol nascer deixando os filhos, esfomeados, sozinhos em casa durante todo o dia, chegando só ao anoitecer, exaustos depois de um longo dia de trabalho que mais parece um liquidificador que tritura o corpo e as almas, o que fazer? Para quem ensinar também é uma opção política, sabe-se que há graus de maior ou menor dificuldade ao tratar de crianças de periferia ou de adolescentes que construíram suas relações sociais mais profundas dentro de shopping-centers.
Levando todos estes aspectos em consideração, se torna a cada dia mais difícil tornar-se educador, ainda mais quando este procura, ainda que residualmente, provocar mudanças estruturais no sentido de uma escola e uma sociedade mais justa. Isso porque ocorre um processo a nível internacional onde se instituem reformas educacionais cada vez mais focadas no “conteúdismo”, forçando professores a prender-se a um ou outro livro didático que deve ser meramente reproduzido, e tornando cada vez mais raros projetos educacionais que trabalhem com a mediação, aprendizagem direta ou indireta. Projetos como o “Escola sem Partido”, além de frear a criação de novos modos de ensinar-aprender, vão na contramão das pesquisas mais avançadas em educação, didática e pedagogia.
Nem a comunidade, nem os professores são ouvidos, sugerindo que o educador não passa de um mero reprodutor de conhecimento e de ideologias, aquele que executa tarefas e normas de fora pra dentro, totalmente passivo nas decisões sobre os rumos da educação decididos por políticos conservadores que não são os que vivem o cotidiano das salas de aula. O educador vê eliminado de seu cotidiano a liberdade de escolha do conteúdo e dos métodos a serem trabalhados por este, empobrecendo e desvalorizando o seu conhecimento e seu ato pedagógico. É evidente que existe uma política de uma formação massiva de profissionais com baixa qualificação, atendendo as demandas do mercado de trabalho, criando assim um exército de profissionais efêmeros formados à partir da escola, e estes devem viver em sociedade incapazes de fazer suas próprias leituras de mundo, e destituídos de uma ideologia própria, acabando por acatar a ideologia dos meios de comunicação dominantes, a ideologia das classes dominantes.
A nós cabe uma oposição ferrenha a ordem estabelecida por este projeto na educação brasileira, já que esta é para além de um serviço, é um setor estratégico de toda uma política a quem interessa formar uma sociedade cada vez mais despolitizada, servindo aos interesses do mercado. Nenhuma lei deve nos aprisionar. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei, nem as estrelas. Àqueles que querem a ordem (ou aquilo que chamam de ordem) e a mordaça nas escolas nós, professores, devemos gritar em alto e bom tom: Não passarão!
[1] MARTINS, José de Souza. A chegada do estranho. Hucitec, v. 1,São Paulo. 1993.