O homem posicionou-se em frente ao paredão. Os olhos vendados, as mãos amarradas. À sua frente, uma dúzia de soldados com os fuzis carregados. O procedimento legal para findar uma vida. O momento da ordem social impor seu castigo a quem já havia sido um dos seus.
O homem suava, mesmo estando frio. Seu crime? Havia escolhido a profissão do paredão da morte. A mísera profissão da esperança. O ofício que consiste em tirar as pessoas do poço. Vejam só! Era isso que ele fazia. E, ao tentar tirar as pessoas do poço, mais adentrava as profundezas. Vasculhava o fosso. Chafurdava na lama. E isso era até coisa honrosa. À medida que mergulhava, salvava novas almas – todas sonhadoras… Havia escolhido fazer a atividade mais calcinada de todas. A opção preferida do moedor social. Uma profissão que deveria ser respeitada em qualquer lugar do mundo – mas que não o era, pelo menos ali. “Subversivos!”, gritavam-lhe com o dedo em riste. Já o haviam, antes, condenado e decretado a ele uma de suas mortes: não podia mais pensar nem tencionar qualquer manifestação de fazê-lo. Exteriorizar uma ideia? Jamais. Apesar disso, sim, apesar disso tudo, o condenado sorria. E se alegrava porque sabia que sua blasfêmia haveria de ecoar pelos corredores de vielas futuras, em mentes ainda mais subversivas. Os indisciplinados haveriam de procurar corrigir os erros do passado; caso não o fizessem, produziriam uma sociedade fuziladora de homens como aquele…
Entre os atiradores, para a surpresa e decepção do homem, observou que entre o pelotão se achava, camuflado, um de seus ex-alunos. Um mal aluno, no caso. Mal não porque fosse contribuir com a rajada de tiros que viria a seguir, mas sim porque não sabia ao menos a razão dos disparos. Isso por conta, talvez, a despeito de qualquer desculpa esfarrapada dos agentes da coerção, as balas fossem endereçadas mais à própria mediocridade do fuzilador, às ojerizas e vergonhas reprimidas do soldado, ao clausuro das derrotas abnegadas ou mesmo ao modo protestativo de como o alvo havia feito seu cérebro funcionar. Uma agressão imperdoável, considerava o mal aluno. Se, para tal pena – a de morte -, o atirador ao menos soubesse a razão dos disparos e das cápsulas projetadas ao ar, seria justo, pelo menos assim seria… No entanto, atiçando com gosto a inquietação de tamanha circunstância malfazeja, aquilo podia prenunciar uma coisa a mais. Podia alertar sobre como a morte já havia sido decretada há muito: a morte do bom senso, da esperança, da razoabilidade. Mais uma vez a ignorância vencia, hasteando bandeira orgulhosa.
Os atiradores ergueram os fuzis e apontaram para o emparedado. Em breve, os estampidos se contrastariam com o burburinho da rua. O corpo crivado por balas desabaria, e seria um muro a menos, um obstáculo a menos. O giz branco haveria de dar lugar a uma cor mais viva. A cor do sangue. E, apesar da covardia, haveria o giz, que em letras invisíveis haveria de escrever um novo poema, para contornar a parede com novos insultos. Os algozes até poderiam fixar um ponto – à bala… mas com giz se traçaria uma nova linha de esperança.
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