Coluna Autofagia
Quando lemos “O processo” num título, somos facilmente induzidos a pensar na obra do extraordinário Franz Kafka. Mesmo não se tratando da história de Josef K., a qual narra sua desesperada luta para provar sua inocência de um crime que sequer sabia qual era, O Processo do qual falamos tem algumas similaridades com o texto do escritor europeu. Trata-se do longa-metragem dirigido por Maria Ramos que retrata os meandros do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016.
Tal como Sr.K., como era conhecido Josef, que em seu aniversário de trinta anos fora surpreendido, em sua casa, com a presença de oficiais de justiça, os quais entregam-lhe uma intimação sobre um crime do qual era acusado, Dilma Rousseff, presidente do Brasil há época, surpreendeu-se com as notícias as quais davam conta de que Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos deputados, havia acatado o pedido de impeachment protocolado por Miguel Reale Junior e Janaina Paschoal.
A partir daquela data, 2 de dezembro de 2015, o que se vê é a maior violação do Estado Democrático de Direito. No filme, observamos figuras, hoje desmoralizadas perante a opinião pública, desfrutando de prestígio político do qual nunca tiveram. É o caso, por exemplo, de Aécio Neves, um sujeito deplorável que não aceitou a derrota nas urnas e inflou seus espectros políticos na Câmara e no Senado para desidratar a popularidade do governo.
É inevitável, ao longo do documentário, não se enojar com o áudio de Romero Jucá e seu velho “acordo nacional, com o supremo, com tudo”. Mesmo com a materialidade do golpe explícita neste áudio, o Congresso Nacional levou até as últimas instâncias o impedimento de Dilma; tudo isso, sob o olhar condescendente do Supremo Tribunal Federal e o apoio irrestrito da grande mídia.
Baseada em seis autorizações de créditos suplementares, recursos destinados ao pagamento de programas sociais como ‘agricultura familiar’, a peça redigida por Reale e Paschoal era uma excrescência do ponto de vista jurídico e um pano de fundo para a consumação do golpe jurídico-parlamentar no Brasil. Michel Temer, o maior beneficiado pela ruptura democrática, editou, mesmo antes de assumir a presidência, vários decretos de créditos suplementares. Após a saída definitiva de Dilma Rousseff, o Congresso Nacional regulamentou a prática sem prejuízos a Temer.
Na minha modesta opinião, o momento mais sórdido do documentário concerne na votação do processo na Câmara. Na ocasião, figuras despidas de qualquer sensibilidade, ética e respeito pela figura da ex-presidenta, deram um show de horror. Falas de cunhos sexistas, fascistas e homofóbicas foram pronunciadas enquanto a classe golpista mostrava ao mundo seu lado mais sádico. Na condução da votação, sem nenhum pudor, estava Eduardo Cunha que havia chantageado Dilma para salvá-lo no Conselho de ética. Dilma, séria e honesta como sempre, repeliu as investidas de Cunha mesmo sabendo que sua vingança seria imediata.
Com a admissibilidade do processo de impedimento aceito na Câmara, cabia ao Senado selar o destino da ex-madatária do país. Num jogo de cartas marcas, muito bem explorado por Maria Ramos, coube a um apadrinhado de Aécio Neves, Antônio Anastasia, a relatoria do processo no Senado. Mesmo sabendo que os senadores não levariam em consideração seus argumentos, Dilma Rousseff foi ao senado e os encarou, mostrando-lhes sua força e expondo as artimanhas de cada um deles e proferindo a frase mais impactante de todo o curso do processo: “Todos seremos julgados pela história”. José Eduardo Cardozo, ex-advogado geral da União, de forma brilhante, defendeu Dilma, desconstruiu toda a farsa jurídica citando, inclusive, o Livro “O Processo”, de Kafka, deixando os golpistas boquiabertos. Mas, infelizmente, o acordo estava fechado e Dilma teve seu mandato cassado naquela noite/madrugada de 31 de agosto de 2016.
Assim como Kafka denunciou, por meio de uma obra literária, os excessos da justiça europeia através da figura de Josef K., Maria Ramos registrou pelas lentes de sua câmera a maior injustiça de nossa jovem democracia. No entanto, diferente do Sr. K. que teve sua vida retirada sem ao menos saber qual era o delito que cometera, Dilma Vana Rousseff saiu maior do que seus acusadores. O tempo, sempre implacável, como disse a própria presidenta, sempre coloca as coisas em seus devidos lugares. Hoje, aqueles que se alegraram com sua saída lamentam a situação deplorável em que o país de encontra.