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O ódio como política: fascismo e democracia em nosso tempo

Foto: Mario Luiz da Costa Júnior

“É possível enganar alguém durante todo o tempo. É possível enganar a todos por algum tempo. Mas não é possível enganar a todos durante todo o tempo”.

 Anselm Jappe

 

Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia 

            Começo e termino este texto com versos de Drummond. Meu ódio é o melhor de mim, dizia o poeta em seu clássico A Flor e a Náusea. Pensar o momento atual que vivemos no Brasil e no mundo nos dá desespero, calafrio e… ódio. Este mesmo, tão criminalizado pelos comentadores burgueses com espaço na mídia. Vivemos em uma sociedade onde apenas uma classe, a classe dominante, pode exercer e expressar abertamente o seu ódio, como é visível todos os Domingos nos atos fascistas endossados pelo presidente também fascista de nosso país. São tempos de ódio aos pobres, aos pretos, às mulheres, aos povos indígenas (Weintraub, 2020). No entanto o Nosso ódio deve ser contido, suprimido, camuflado.

            Mas como não falar em ódio, também, diante do seletivo assassinato de jovens negros nas periferias? Diante da fome e da miséria? Dos direitos negados? Do esgoto a céu aberto? Da casa de madeirite? Da fome? Da violência constante e sistemática contra os pobres? Da apologia à tortura e ao extermínio? O ódio de nossa classe é mal visto, suprimido sempre que possível. Nas palavras de Emicida, eles querem que alguém como nós seja mais humilde e agradeça, nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda. Quero que eles se fodam! (Trecho da música Mandume). E é exatamente deste ódio que quero refletir neste texto, e pensar seu papel na democracia e na luta contra o fascismo.

            No último final de semana, em diversas cidades do Brasil, em especial no Rio de Janeiro e em São Paulo, grupos antifascistas que incluíam porções de torcidas organizadas, formadas em geral por pretos e pardos das periferias dividiram as ruas com grupos bolsonaristas de gente branca com carros caros e ostentando bandeiras de Brasil e bandeiras neonazistas. Um lado foi acolhido pela polícia, retirado do espaço, mesmo que armados com tacos de Basebol. O outro lado, o dos pretos, pobres, periféricos, foi reprimido, atacado pela polícia e pela mídia dominante, sendo associados a grupos criminosos e ao tráfico de drogas como pudemos observar no programa Pânico, da Jovem Pan, e pelo jornalista Carlos Andreazza, na Band, para citar alguns exemplos. Esperam que materializemos a definição de Guy Debord, em seu livro A sociedade do Espetáculo, esperam que sejamos “Quem fica sempre olhando, para saber o que vem depois, nunca age; assim deve ser o bom espectador”

            Quero destacar, desde já, que todo nosso ódio é legítimo, mas é necessário problematizá-lo para melhor agir no momento em que vivemos. Estamos em um momento de ataque frontal ao que chamamos democracia, a ponto de sequer conseguirmos problematizar o que é e qual democracia queremos. Uma fé cega se põe na posição de criticar um ou outro gestor ou dirigente político, mas não a questionar o papel destes e dos grupos empresariais de elite na reprodução do capitalismo em tempos ditos democráticos. Sequer questionamos a existência de funções burocráticas em nossas entidades e sindicatos. Não fazemos, talvez, por medo de o tiro sair pela culatra, pois o fim da burocracia estatal pode pôr em xeque a própria burocracia de parte da esquerda.

            Portanto, a política de massas apresenta, em todo o mundo, um quadro preocupante e, apesar disso, pouco discutido. Há uma divisão em castas, dois níveis de pessoas: os cidadãos políticos, aqueles que pensam e põem prática os rumos de todos aqueles aos quais – supostamente – representam todo o resto, ou seja, os cidadãos comuns que escolhem representantes e aguardam, torcendo para que estes tenham bom senso e ponham em prática, ainda que residualmente, seus anseios.

É como um palco, onde os atores representam uma cena, cabendo ao público apenas assistir e aplaudir ou vaiar, conforme seu gosto é ou não satisfeito. No entanto, o público não pode, nunca, subir ao palco, modificar a peça encenada. Até porque, se este observa os bastidores, pode chegar a conclusão de que tudo é, na verdade, uma grande cena, uma representação, um grande espetáculo.

Qual a grande oposição entre Liberais e Conservadores na Inglaterra? Entre Republicanos e Democratas nos Estados Unidos? Entre PT e PSDB no Brasil? Para a massa trabalhadora no Brasil nenhuma, já que estes não se propõem a mudar o essencial, não ousam tocar no central, que é a lógica excludente do sistema capitalista. Os pobres não viram em nenhum governo uma mudança realmente significativa para fora do âmbito do consumo em suas vidas cotidianas, abrindo espaço para a negação da política enquanto fato amplamente aceito do qual Bolsonaro e seus partidários se aproveitam. Separamos a política da vida cotidiana da maioria das pessoas, criando neles um estranhamento e até repulsa a tudo o que é político, através de político-profissionais que não representam nem apresentam nada além de uma ilusão de democracia. Votar a cada quatro anos, por si só, não pode ser considerado fazer política. A democracia de fato é direta, e se faz por meio de assembleias e debates públicos, onde todos tem voz, voto e ajudam, de fato, a mudar as demandas da comunidade, da cidade. Logo, o que temos em prática e que nos aparece enquanto democracia – o governo de todos – não o é, e devemos então chamá-la por seu verdadeiro nome: Aristocracia.

O filósofo alemão Anselm Jappe, em seu texto – que recomendo a leitura integral – intitulado Democracia, que arapuca![1], coloca esta questão ao problematizar a ideia do fim da política o qual o neoliberalismo iria, inevitavelmente nos levar, e ao qual a esquerda precisaria lidar  para propor alternativas de sociedade ao livre mercado propagandeado por todos os lados como sinônimo de liberdade. Pensando desta maneira, neoliberalismo e democracia plena não seriam possíveis juntos, já que para a efetivação deste projeto político-econômico é necessária uma execução cega das leis de mercado.

Se o fim da política não é assumido conscientemente como tarefa e como possibilidade de se libertar de uma categoria fetichista, o risco é que a política será substituída por formas ainda piores. Não, é claro, por um novo fascismo, mas por uma nova barbárie, por uma “economia da pilhagem” como último estágio do mercado livre. O fim lógico da sociedade da mercadoria é a desintegração até a guerra de bandos, a máfia, até o comprometimento violento dos últimos restos de riqueza ainda em circulação. Ao final de sua evolução, o Estado tende a se transformar novamente naquilo que era no início: um bando armado. O exemplo iugoslavo é eloquente.

            Vivemos, portanto, exatamente o ápice do livre mercado proposto pelo autor, não à toa a forte repressão sofrida por movimentos populares antifascistas e antirracistas no Brasil, nos Estados Unidos e na França, mas a liberdade total de ação para grupos supremacistas nestes três países. Temos uma extrema direita altamente organizada no nível político-institucional, ideológico e bélico, prontas a nos conduzir ao genocídio e ao extermínio e organizam o ódio – deles e o nosso – em favor deste projeto. Nosso ódio não pode interditar nosso pensamento. Precisamos, sim, agir de maneira o mais estratégica e unificada o possível se quisermos evitar que desastres maiores que os atuais se desdobrem. Nosso ódio precisa ser organizado para lutarmos de maneira mais efetiva. A luta contra o fascismo não pode dar margem a espontaneísmos. O fascismo não pode passar, não vai passar. O Nosso Tempo é, como diria mais uma vez Drummond, de fezes, e é necessária coragem, ousadia, e alguma primavera para resistir aos difíceis tempos que se avizinham. Meu nome é tumulto, e se escreve na pedra.

[1]     https://grupokrisis2003.blogspot.com/2009/06/democracia-que-arapuca.html

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.