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O momento de partir

Diário de Dominique / 5. O momento de partir

Dormi por um longo período após minha viagem. Perambular entre meu passado e meu futuro me esgotou. Apenas o sono poderia me restituir o meu presente.

Era domingo. A moto do vizinho não me acordou. Gosto disso no domingo. Não ser interrompido em meu sono leve. Me preparei para comer: arroz com ervilhas e molho de frango. Comi em meu quarto. Em seguida, vaguei pelo apartamento, me esquivando da menor lembrança que pudesse me levar de volta a São Paulo.

Amo essas manhãs alegres de fevereiro, em que o sol nasce cedo em Curitiba. Não tinha mais nenhuma fruta no estoque. Tomei apenas um copo de água antes de sair trabalhar.

Tive a impressão, a partir de certo momento, que minha vida caminhava em uma única direção. Sempre os mesmos personagens. Sempre a mesma rotina. – a moto do vizinho, a velha cansada, a esposa do proprietário (nos cruzamos duas vezes por semana, quando ela tira o lixo. Ela me cumprimenta sempre com o mesmo sorriso puro e raro que me faz pensar no charme irresistível de uma mulher tímida) e os trabalhadores fiéis que retornam silenciosamente, todas as manhãs, aos estacionamentos de ônibus, esperando sua partida.

Eu trabalho na Rua Rio Solimões, 856. Minha patroa, uma pequena mulher animada, sempre escondia atrás de seus óculos e de um cigarro, me esperava à porta. Por um gesto cansado da mão direita, como se ela me convidasse para dançar, ela me levou para seu escritório. Como na última vez, ficamos na soleira da porta. Bem, não vamos mais te manter aqui. Por quê!? A partir de hoje, você não trabalha mais para nós. E as condições da minha saída? Você tem que vir receber o dinheiro da semana passada. Passe amanhã. É isso? Qual é o motivo da minha saída? Não é necessário te dizer, não te queremos mais aqui, fim. Ela estava nervosa. Mas executou bem seu trabalho. Em seguida, ela me acompanhou ao portão, que ela tomou cuidado de fechar atrás dela.

Passei os dois dias seguintes me revirando na cama. Não tinha vontade de nada. Simplesmente de dormir. De esquecer tudo aquilo que tinha acontecido comigo. Minha cama não estava ajudando muito, tive de mudar de estratégia. Por certo, meu primeiro reflexo foi a literatura. Abandonei, livro após livro, depois de dez páginas lidas. Tive pena de ver de meus livros largados por todo canto do meu quarto. Eu bem que tentei, mas não tínhamos nada a dizer.

Achei que fazer alguma coisa com minhas mãos pudesse ajudar. Limpei o apartamento. Quando terminei, meu quarto agradeceu com um grande sorriso. Logo depois, cozinhei: frango, banana frita e suco de limão. Comi na minha cama e gostei bastante da minha refeição.

Me lancei em uma verdadeira corrida atrás de mim mesmo. Depois daquela queda, eu precisava urgentemente me recuperar antes de atingir o solo. Eu ainda tinha duas voltas na minha bolsa. Exausto do meu dia, fui cedo para a cama. Liguei meu computador, que demorou a funcionar. Coloquei um desenho animado: Tom e Jerry. Mergulhei nesse mundo virtual, que me fez rir como uma criança. A ideia de esmagar sistematicamente um gato por um sorriso é divertida. Quem quer que tenha imaginado tais cenas devia ter um senso de justiça muito aguçado. A ironia da coisa é que do lado de fora acontece exatamente o contrário do que vejo rolar na minha pequena tela. Por fim, esse pequeno mundo super agitado acabou por cansar meus olhos. Coloquei um Mozart. Deslizei entre duas notas e um silêncio para pegar no sono.

Os dias que se seguiram me encontraram em pé. “Você tem que se concentrar no seu futuro”, me disse meu irmão Russel. Minha irmã mais nova, Ketteny, achou que era uma coisa boa, sair finalmente desse trabalho que me fazia perder meu tempo e minha energia. Pensei que era melhor mesmo que não estivesse mais numa galé como aquelas tais galeras.

Eu só tinha duas semanas para tomar uma decisão. Durante esse tempo, eu atuei de pensionista. Pensei o mínimo possível no que me aconteceria se essa viagem a São Paulo fosse um fracasso total. Teria que recalcular tudo, do zero. Eu fazia minhas leituras no começo da manhã frente a minha pequena janela, aproveitando a brisa e os primeiros raios de sol que nasciam no céu ainda cinza de Pinhais. Durante o resto do dia, eu fazia qualquer coisa. Segui minha imaginação. Fui encontrando as imagens: o gato branco do telhado à frente fazendo tranquilamente sua toalete, a velha se ocupando de seu pequeno quintal com sua vassoura; também espionei, sem querer, a filha do proprietário quando, ao entrar e sair do trabalho. Ela tem olhos extraordinários, uma silhueta de sonho e uma voz magnífica.

Não se deixem enganar pela bela imagem que acabei de pintar para vocês da vista de minha pequena janela. Caso se desse um zoom nessa cena, perceberíamos as coisas de um ângulo diferente. Eu, preso em um apartamento fantasma, navegando entre dois tempos; a filha do proprietário, ainda na correria, correndo atrás de seu objetivo (ela está economizando dinheiro; quer fazer medicina em cinco anos); um gato vivendo num telhado sem planejar sua vida; e, do outro lado da rua, uma velha que tenta, com pés e mãos, se esquivar do inevitável.

J.J. Rousseau pensa que um idoso devia apenas aprender a morrer. Não obstante, nessa idade é o que menos se faz. A ironia da coisa é que a velhice é uma época em que nadamos continuamente ao passado e às conquistas. Ao passo que a juventude tem sempre que ficar de olho no futuro.

A coisa caiu sobre mim sem eu estar esperando, como se meu irmão Russel me jogasse uma pedra. “Parabéns, irmãozinho! Você conseguiu! Você vai estudar em uma das melhores universidades da América Latina!” Em seguida, os elogios surgiram de toda parte em minha direção – sempre me incomodou estar no centro das atenções. Sob os holofotes. Onde todos podem me ver sem que eu possa fugir. Diante de tanta atenção, me sinto preso entre dois universos, quando sou apenas um mortal. Além do mais, eu não esperava receber tanto de uma cidade que me acolheu tão friamente. Nem de um país que viu meus ancestrais desembarcarem, como gado, nas areias quentes das praias do Rio de Janeiro, durante séculos. A boa notícia é que eu sabia onde passaria os próximos cinco anos da minha vida.

Meu irmão Russel passou para me ver. O faz com frequência desde o resultado. Ficamos em pé durante todas as suas visitas evitando de nos olharmos nos olhos, como duas crianças ansiosas, presas em um castigo. Da cozinha, fomos para meu quarto, depois cozinha, depois novamente quarto. Eu supunha que evitávamos o real motivo de sua visita. Seria o mesmo motivo que leva as gentes do Sul a fugir de sua família e do calor para se refugiar no Norte frio mas chique? Eu nunca entendi de verdade por que não lutamos para mudar as coisas em nossa casa. Agora que estou aqui, daria tudo para rever meu pai. Passávamos nossas tardes no grande pátio de sua casa em Petit-Goâve, proveitando o sol poente.

Meu irmão sempre quis que eu entrasse na UFPR (Universidade Federal do Paraná). Sem dúvidas, ele queria que eu continuasse em Curitiba. Perto dele. Nos reencontramos depois de cinco longos anos e eu compartilhava de sua inquietação. Me ver de novo me distanciar por cinco anos era uma ideia difícil de admitirmos. Tínhamos passado os dois últimos anos revirando nossa infância para dela tirar toda sorte de lembranças felizes. Jamais imaginei que essa época em que corríamos nus nas tardes de verão sob a chuva tropical fosse ocupar tanto espaço em nossa vida adulta.

Sempre chega o momento de partir. De deixar uma vida em curso para apanhar um sonho que voa. Sabe, é que eu sempre ficava imaginando esse momento, mas nunca tinha pesado seu impacto na aterrissagem. É preciso a um homem tanta coragem para deixar seus entes queridos, quando precisa uma mulher para colocar uma nova vida no mundo. Um imigrante como eu, no final das contas, tem como único tesouro, as lembranças da infância.

por Carlile Max Dominique Cérilia

Tradução de Hugo Simões


 

About Carlile Cerilia

Carlile Max Dominique CERILIA, nascido em Petit-Goâven no Haiti, é um jovem poeta e escritor. Caminha quando não está lendo ou escrevendo. Gosta de se misturar com as paisagens: árvores, pessoas e animais. Ama cinema e música clássica. Lê Jean-Jacques Rousseau, Albert Camus, Victor Hugo, Voltaire, Dany Laferrière, Shakespeare. Hoje estuda Literatura no CREL (Centro de Pesquisa e Estudos Literários); Departamento, ANA (Narrator Apprentice Workshop). É imigrante e mora no Brasil há alguns meses.