Parágrafo 2

O Mito

Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia 

à Carlos Drummond de Andrade

poeta da Rosa do Povo.

Sequer conheço Fulano,

Vejo Fulano tão curto,

Fulano jamais me vê,

Mas como eu odeio Fulano.

 

Odeio mesmo Fulano?

Ou é ilusão de ódio?

Talvez a linha do busto,

da patente, do ombro.

 

Odeio Fulano tão forte,

Odeio Fulano tão dor,

Que todo me despedaço

e choro, menino, choro.

 

Mas Fulano vai-se rindo…

Vejam Fulano discursando.

No esporte ele está sozinho.

Não dança, não vai ao bar.

 

E Fulano diz mistérios,

diz facismo, tortura, gás.

Fulano me bombardeia,

no entanto sequer me vê.

 

E sequer nos compreendemos

É capitão de alta fidúcia,

tem latifúndios, iates,

“sustenta” duzentos milhões de pobres.

 

Menos eu… que de orgulhoso

Me basto pensando nele.

Pensando com unha, plasma,

fúria, gilete, desânimo.

 

Òdio tão disparatado.

Disparatado é o que é…

Nunca me aproximei

nem vi passar perto.

 

Mas eu sei quanto me custa

manter esse gelo digno,

essa indiferença gaia

e não gritar: Morre, Fulano!

 

Como deixar de invadir

sua casa de mil fechos

de sua mesa o arrancando

mostrá-lo depois ao povo

 

tal como é ou deve ser:

branco, machista, racista, torturador

feito pedra translucida,

de ausência e bregas ornatos.

 

Mas como será Fulano,

digamos, à mesa de jantar?

Só de pensar sua presença

meu corpo se repunge…Pois sim.

 

Para que preciso dele

para mendigar Fulano,

rogar-lhe que pise em mim,

que me maltrate? Assim não.

 

Não saberei? Só pegando

batendo: Senhor, tome…

Será que esconde algo?

Mariele? Saberei?

 

Não saberei. Só pegando

exigindo: Senhor, toma…

O seu discurso esconde algo?

Tem algo real? Postura?

 

Fulano às vezes existe

demais; até me apavora.

Vou sozinho pela rua,

eis que Fulano aparece.

 

Olho: não tem mais Fulano.

O povo se rindo de mim.

(Na sola de suas botas

de calcanhar sujo e duro)

 

E eu insolente, pervagando

em ruas de vírus e lágrima.

Aos operários: O vistes?

Não, dizem os operários.

 

Aos boiadeiros: o vistes?

Dizem não os boiadeiros.

Acaso o vistes, doutores?

Mas eles respondem: Não.

 

Pois é possível? Pergunto

aos jornais: todos calados.

Não sabemos de Fulano

passou. De nada sabemos.

 

E são onze da noite,

não temos roda de chope,

onze vezes dei a volta

de meu ódio; e Fulano

 

talvez jogue no cassino

ou, e será mais provável,

talvez esteja no Leblon,

talvez se banhe em estupidez

 

talvez se pinte de vítima

nas redes; talvez aplauda

certa obra miserável

de um sargento louco;

 

talvez cruze a perna e beba,

talvez corte salários,

talvez fume de piteira,

talvez ria, talvez minta.

 

Esse insuportável riso

de Fulano de mil dentes

(anúncio de mais sacrifícios)

é faca me escavando.

 

Me ponho a correr na praia.

Venha o mar! Venham cações!

Que a polícia me denuncie!

Que um soldado me ataque!

 

Não quero morrer sufocado,

Não quero das mortes a hedionda

Quero voltar fortalecido

A caminhar pelo largo,

 

Com cabeça, corpo e pernas,

à porta do palácio

para feder: de propósito

somente para Fulano.

 

Fulano apelará

para os frascos de perfume.

Abre-os todos: mas de todos

eu salto, e ofendo, e sujo.

 

Fulano correrá

(vai nu, covardemente)

talvez se atire lá do alto

Seu grito é socorro! E deus.

 

Mas não querem nada disso.

Para que chatear Fulano?

Pancada na sua nuca

na minha é que vai doer.

 

E daí não sou criança.

Fulano estuda meu rosto.

Coitado: da raça branca.

Tadinho: tinha gravata.

 

Já morto, o que resta?

Te esconjuro, necropolítica…

Fulano é contra a vida, as flores

as artérias e a aventura.

 

Sei que jamais me perdoará

Matar é o que lhe serve.

Fulano quer homens fortes,

couraçados, invasores.

 

Fulano é todo dinâmico,

Tem um rei na barriga.

Descargas elétricas,

Pau de arara, gelo,

 

desinfetados, gravados

em máquinas eletrônicas

Fulano, como é sadio!

Os enfermos somos nós.

 

Sou eu, o poeta precário

que fez Fulano um mito,

nutrindo-me de Benito,

Salazar, Franco e capim;

 

Sei que faltará leite,

carne, tomate, ginástica,

e lhe colo metafísicas,

enigmas, causas primeiras.

 

Mas se tentasse construir

outro Fulano que não

esse de burguês sorriso

e de tão burro esplendor?

 

Mudo-lhe o nome; recorto-lhe

um graje de transparência;

já perde a carência humana;

e bato-o; de tirar sangue.

 

E lhe dou todas as faces

de meu sonho que especula;

e abolimos a sociedade

já sem peso e nitidez.

 

E vadeamos a ciência

mar de hipóteses. A rua

fica sendo nosso esquema

de um teritório mais justo.

 

E colocamos os dados

de um mundo sem classe e imposto,

e nesse mundo instalamos

os nossos irmãos vingados.

 

E nessa fase gloriosa,

de contradições extintas,

eu e Fulano, abrasados,

queremos… que mais queremos?

 

E digo a Fulano: Amigo,

afinal nos compreendemos.

Já não sofro, já não brilhas

mas não somos a mesma coisa.

 

(Mas somos coisas muitos diversas

da que pensava que fôssemos.

Um segue morrendo,

um segue matando.)

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