Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia
à Carlos Drummond de Andrade
poeta da Rosa do Povo.
Sequer conheço Fulano,
Vejo Fulano tão curto,
Fulano jamais me vê,
Mas como eu odeio Fulano.
Odeio mesmo Fulano?
Ou é ilusão de ódio?
Talvez a linha do busto,
da patente, do ombro.
Odeio Fulano tão forte,
Odeio Fulano tão dor,
Que todo me despedaço
e choro, menino, choro.
Mas Fulano vai-se rindo…
Vejam Fulano discursando.
No esporte ele está sozinho.
Não dança, não vai ao bar.
E Fulano diz mistérios,
diz facismo, tortura, gás.
Fulano me bombardeia,
no entanto sequer me vê.
E sequer nos compreendemos
É capitão de alta fidúcia,
tem latifúndios, iates,
“sustenta” duzentos milhões de pobres.
Menos eu… que de orgulhoso
Me basto pensando nele.
Pensando com unha, plasma,
fúria, gilete, desânimo.
Òdio tão disparatado.
Disparatado é o que é…
Nunca me aproximei
nem vi passar perto.
Mas eu sei quanto me custa
manter esse gelo digno,
essa indiferença gaia
e não gritar: Morre, Fulano!
Como deixar de invadir
sua casa de mil fechos
de sua mesa o arrancando
mostrá-lo depois ao povo
tal como é ou deve ser:
branco, machista, racista, torturador
feito pedra translucida,
de ausência e bregas ornatos.
Mas como será Fulano,
digamos, à mesa de jantar?
Só de pensar sua presença
meu corpo se repunge…Pois sim.
Para que preciso dele
para mendigar Fulano,
rogar-lhe que pise em mim,
que me maltrate? Assim não.
Não saberei? Só pegando
batendo: Senhor, tome…
Será que esconde algo?
Mariele? Saberei?
Não saberei. Só pegando
exigindo: Senhor, toma…
O seu discurso esconde algo?
Tem algo real? Postura?
Fulano às vezes existe
demais; até me apavora.
Vou sozinho pela rua,
eis que Fulano aparece.
Olho: não tem mais Fulano.
O povo se rindo de mim.
(Na sola de suas botas
de calcanhar sujo e duro)
E eu insolente, pervagando
em ruas de vírus e lágrima.
Aos operários: O vistes?
Não, dizem os operários.
Aos boiadeiros: o vistes?
Dizem não os boiadeiros.
Acaso o vistes, doutores?
Mas eles respondem: Não.
Pois é possível? Pergunto
aos jornais: todos calados.
Não sabemos de Fulano
passou. De nada sabemos.
E são onze da noite,
não temos roda de chope,
onze vezes dei a volta
de meu ódio; e Fulano
talvez jogue no cassino
ou, e será mais provável,
talvez esteja no Leblon,
talvez se banhe em estupidez
talvez se pinte de vítima
nas redes; talvez aplauda
certa obra miserável
de um sargento louco;
talvez cruze a perna e beba,
talvez corte salários,
talvez fume de piteira,
talvez ria, talvez minta.
Esse insuportável riso
de Fulano de mil dentes
(anúncio de mais sacrifícios)
é faca me escavando.
Me ponho a correr na praia.
Venha o mar! Venham cações!
Que a polícia me denuncie!
Que um soldado me ataque!
Não quero morrer sufocado,
Não quero das mortes a hedionda
Quero voltar fortalecido
A caminhar pelo largo,
Com cabeça, corpo e pernas,
à porta do palácio
para feder: de propósito
somente para Fulano.
Fulano apelará
para os frascos de perfume.
Abre-os todos: mas de todos
eu salto, e ofendo, e sujo.
Fulano correrá
(vai nu, covardemente)
talvez se atire lá do alto
Seu grito é socorro! E deus.
Mas não querem nada disso.
Para que chatear Fulano?
Pancada na sua nuca
na minha é que vai doer.
E daí não sou criança.
Fulano estuda meu rosto.
Coitado: da raça branca.
Tadinho: tinha gravata.
Já morto, o que resta?
Te esconjuro, necropolítica…
Fulano é contra a vida, as flores
as artérias e a aventura.
Sei que jamais me perdoará
Matar é o que lhe serve.
Fulano quer homens fortes,
couraçados, invasores.
Fulano é todo dinâmico,
Tem um rei na barriga.
Descargas elétricas,
Pau de arara, gelo,
desinfetados, gravados
em máquinas eletrônicas
Fulano, como é sadio!
Os enfermos somos nós.
Sou eu, o poeta precário
que fez Fulano um mito,
nutrindo-me de Benito,
Salazar, Franco e capim;
Sei que faltará leite,
carne, tomate, ginástica,
e lhe colo metafísicas,
enigmas, causas primeiras.
Mas se tentasse construir
outro Fulano que não
esse de burguês sorriso
e de tão burro esplendor?
Mudo-lhe o nome; recorto-lhe
um graje de transparência;
já perde a carência humana;
e bato-o; de tirar sangue.
E lhe dou todas as faces
de meu sonho que especula;
e abolimos a sociedade
já sem peso e nitidez.
E vadeamos a ciência
mar de hipóteses. A rua
fica sendo nosso esquema
de um teritório mais justo.
E colocamos os dados
de um mundo sem classe e imposto,
e nesse mundo instalamos
os nossos irmãos vingados.
E nessa fase gloriosa,
de contradições extintas,
eu e Fulano, abrasados,
queremos… que mais queremos?
E digo a Fulano: Amigo,
afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas
mas não somos a mesma coisa.
(Mas somos coisas muitos diversas
da que pensava que fôssemos.
Um segue morrendo,
um segue matando.)