Parte III – Final.
Confira também a parte II no link: https://paragrafo2.com.br/2015/07/24/o-lobisomem-de-mariselva/
Chegamos ao fim desta história, o Lobisomem de Miraselva. O primeiro texto tinha ficado longo a princípio, o que nos levou a reduzi-lo, evidentemente, cortando personagens e causos paralelos, que mesmo contados literalmente, não causariam o mesmo impacto de ouvi-los nas escadas do velho bar do Nêne. Jamais conseguiremos, por meio destas simplistas linhas, passar a atmosfera que experimentamos em Miraselva. Decidimos então dividir a história de uma forma “à la” folhetim que, sem mais delongas, apresentamos a última parte.
O clima da cidade estava tenebroso. As cobranças aumentavam. A população já alimentava o mito do lobisomem que, nesta altura, tinha diversas versões. O caçador já o havia perseguido, no mato, pela noite. O pescador o avistou perambulando às margens do Ribeirão do Capim. Os mais fiéis achavam passagens bíblicas que explicassem o fenômeno. Luisinho, cético convicto, achava que deveria ter uma explicação plausível a isso tudo.
Cabo Andrade
A gota d’água foi o sumiço do cabo Andrade. Em serviço, numa noite de sexta=feira, o cabo não apresentou o relatório no sábado de manhã. Para piorar a situação não apareceu o final de semana todo. Misteriosamente sua viatura foi achada trancada na saída rural da Avenida Dona Madalena. Área de extensa plantação.
A perseguição das estudantes e o sumiço do Cabo Andrade eram fatos concretos, que poderiam, ou não, estar interligados, mas que a crendice popular os ligou. Somando as mentiras e o pânico instaurado, a situação chegaria ao ápice na segunda-feira à noite.
Durante a tarde, porém, o prefeito tomou suas próprias providências. Percebendo ali uma oportunidade de destaque, sonhava com manchetes em jornais do país inteiro. Derrotar o mal e cair nas graças do povo poderiam tirar o peso de licitações vencidas por empresas de sua própria família.
As balas de prata foram feitas artesanalmente. Junto delas, chegou à cidade um major aposentado, muito amigo do prefeito. Era uma pessoa pitoresca, parecia ter saído de uma capsula do tempo. Ostentando longos bigodes acinzentados, roupa de combate e um olhar severo, parecia farejar no ar o rastro do lobisomem. Formado na cavalaria da PM, trazia na cintura o símbolo de sua graduação: uma espada, instrumento muito útil para a empreita de caçar um lobisomem, uma vez que a lenda diz que basta um golpe na cabeça para que ele vire fumaça.
Noite de segunda-feira
A noite caía. As pessoas combinavam a caçada. Comboios se organizavam. Parentes de longe chegavam aos montes para ver o Lobisomem. O prefeito conseguiu uma patrulha rural de apoio. A noite de lua cheia prometia. Preocupado com os rumores, Mumú resolve sair de casa, sem deixar pistas, some, o que levanta ainda mais as suspeitas de uma parte dos cidadãos.
Por volta de meia noite e meia, os ônibus chegam com os estudantes. A praça é um alarido só. Tratores, caminhonetes, gente armada com espingardas, enxada e machados. Alguns tinham até tochas prontas para serem acesas. Fiéis rezavam nas escadarias da igreja. O padre abençoava os corajosos caçadores.
Desembarcados, os estudantes se juntaram à multidão. As patrulhas de moradores faziam rondas na região. A calmaria da noite foi chegando aos poucos. Alguns desistiam e iam embora. Parecia que nada fora do normal aconteceria. A lua prateava a cidade.
No entanto, de repente, um grito estridente quebra o silêncio monótono da noite. Vinha das proximidades da cafeteria do Zé Garcia. Era o sinal. Gritos de “vamos” faziam moradores exaltados subirem nas caminhonetes e tratores. Na viatura de Luisinho entraram o Sargento Neves, o Major Otto e o prefeito que, na saída, distribuiu uma bala de prata para cada um dos integrantes da viatura. Luisinho conta que o major obrigou a todos a darem uma chupada na bala e em seguida dizer “vou beber o sangue do bicho”. Meio a contragosto, todos tiveram que repetir o ritual.
Em frente à casa de Mumú, algumas pessoas mais exaltadas ameaçam incendiar a moradia do travesti. Com gritos de “sai capeta” e “tá amarrado”, lançavam pedras nas janelas. O medo do sargento Neves e de Luisinho era de algum inocente pagar por tudo aquilo, um casal namorando em rua escura, um vulto qualquer poderia despertar o ímpeto da população, sem falar de Mumú, que, neste momento, corria sério perigo. Controlar a multidão cega de raiva era quase impossível.
No rádio da viatura, a patrulha rural pede reforço. O coração bate mais forte. Algo estava acontecendo a poucas quadras dali, na região dos plantios.
Pela estrada acidentada a viatura seguia em alta velocidade. Ao longe, Luisinho avistou uma pequena luz, parecia uma vela. Tremendo e se aproximando, muito rapidamente. Passa por eles, a cena é inacreditável, era o Lobisomem montado em uma moto RD antiga. Os queixos caem. Ninguém acredita naquilo. O Toyota Bandeirantes vira com tudo e começam a perseguição. Próximo ao trevo, Luizinho joga a viatura fazendo com que o bicho se esborrache na terra vermelha. Major Otto dá a primeira espadada no braço do Lobisomem. Luisinho o segura num mata-leão. O prefeito se aproxima, com a mão tremendo, segura o 38 engatilhado com a bala de prata. Ouvem um grito abafado. Levam até a luz da viatura e lá percebem se tratar de uma fantasia de gorila, daquelas usadas nas pegadinhas do Silvio Santos, já toda rasgada devido ao tombo e a luta. Retiram a máscara. É Paulão. O borracheiro da cidade. Leva alguns sopapos e é algemado.
Com Paulão detido dentro do camburão, surgiu o debate sobre o que fazer. Se o apresentassem na cidade, o linchamento seria iminente. Se o prendessem não haveria acusação, lembrando que ele nunca cometeu crime algum, pois, somente assustava as vítimas. Tinham que tomar uma decisão rápida. Pessoas poderiam se ferir. A cidade inteira estava na praça aguardando a viatura.
Resolvem soltar Paulão. Tiram a fantasia, o mandam embora. Voltam para a cidade e, em um curto desfile, ostentam partes do “couro” do bicho, que na verdade era a vestimenta de macaco usada pelo borracheiro para assustar as moças e outros desavisados. As pessoas, aliviadas, aplaudem a polícia. Gritos de “viva”. Major Otto balançava parte da fantasia com uma mão enquanto, com a outra, mostrava a espada suja de sangue do braço do próprio Paulão.
“Passa por eles, a cena é inacreditável, era o Lobisomem montado em uma moto RD antiga. Os queixos caem. Ninguém acredita naquilo. O Toyota Bandeirantes vira com tudo e começam a perseguição. Próximo ao trevo, Luizinho joga a viatura fazendo com que o bicho se esborrache na terra vermelha. Major Otto dá a primeira espadada no braço do Lobisomem. Luisinho o segura num mata-leão.”
A história que ficou para os moradores foi de que o Lobisomem fora realmente caçado pelos heróis da cidade, Luisinho, Major Otto, Sargento Neves e o prefeito. O final foi benéfico para todos. O prefeito caiu nas graças do povo, se beneficiando politicamente do caso, os policiais até hoje gozam de um respeito e de uma admiração incontestáveis pelos mais velhos.
Cabo Neves nunca mais voltou à cidade. Seu sumiço coincide com o sumiço da esposa do Baiano, que até hoje procura os dois para lavar a honra com sangue, como um legítimo cabra do agreste que resolve os desafetos na ponta da peixeira.
Procuramos Paulão, que não quis dizer nada sobre o assunto. Colocou seu boné vermelho na cabeça, entrou e fechou a porta da borracharia. Senhor Donaldo ouve incrédulo o final. Esse mito era, para ele, uma das melhores histórias que conhecia da sua região. Na volta para Maringá, ele diz firmemente: “quer saber? Para mim o Lobisomem ainda está vivo, eu mesmo já vi”. Com certeza essa história vai continuar viva por muitas gerações, na imaginação, não só desta cidade, mas também de muitas.
Nota sobre os personagens
Todos os personagens são reais. Nosso trabalho foi o de trocar os nomes, porém tomamos o cuidado de não inventar nenhum, somente trocar os papeis. Desta forma a fantasia que encobria o verdadeiro rosto do Lobisomem ainda permanecerá intacta. De maneira simbólica, resta a você, do outro lado da tela, acesso somente à ‘fantasia’.