Parte II
Para quem não lembra, ou não acompanhou a primeira parte da história:
https://paragrafo2.com.br/2015/07/21/o-lobisomem-de-miraselva/
Sargento Neves não era natural da cidade. Antes de ter a patente, quando ainda era um soldado, enfrentou alguns problemas relacionados ao uso abusivo de álcool. Sua ida à Miraselva aconteceu, em parte, como uma segunda chance para permanecer na polícia. A pressão do prefeito o colocava em uma sinuca: se nada fizesse o chefe do executivo faria reclamações sobre ele aos superiores. Se resolvesse chamar o reforço que o prefeito queria iria se expor no batalhão. Provavelmente pensariam que houve uma recaída do sargento, o que traria complicações talvez piores.
Para complicar a situação do sargento e do corpo policial ainda mais, poucos dias após o cafezinho com o prefeito mais um ataque aconteceu. Desta vez com a sobrinha do prefeito. Moça cândida, bondosa e generosa, além de ter um sobrenome de peso na cidade, representava a pureza em pessoa. Porém ela não foi atacada, como nenhuma outra foi. O que aconteciam eram perseguições. No entanto, no susto a moça sai em disparada tropeça e se machuca. No dia seguinte o clima era de revolta, os joelhos e os cotovelos escoriados da jovem representavam o descaso das autoridades para um fato que já não era mais uma lenda urbana. A pressão não era mais só do prefeito e do padre, mas sim de todos os moradores. Luisinho nos conta que o olhar das pessoas já continham um pouco de desprezo. Situação constrangedora, como caçar uma criatura que não existe? Como dar uma explicação plausível à população? Os mais céticos da cidade já começavam a acreditar que de fato existia mesmo um lobisomem. As noites que se seguiram era de tensão total: qualquer latido de cachorro ou gorjeio de quero-quero era motivo para pegar espingardas e sair ao portão. A ronda feita de início somente pela PM começou a ter pequenos comboios de moradores em caminhonetes e tratores, armados com o que tivesse em caça.
Um suspeito
Como em qualquer lenda, muitas são as respostas, as receitas de como lidar com o caso. Luisinho disse que em seu turno as pessoas, principalmente os mais velhos, vinham dar conselhos de como combater o ‘bicho’. Uma dica de como reconhecer o lobisomem começou a tomar proporções inesperadas. Conta a lenda que as pessoas que se transformam em lobisomem, durante a lua cheia, carregam marcas nos joelhos e nos cotovelos. A pele grossa nesta parte do corpo poderia levantar as suspeitas.
Desafeto antigo da população, Mumú morava em uma meia água ao lado do mercado Oliveira. Era travesti, veio para Miraselva para se afastar da vida noturna que levava em Curitiba. Nunca foi bem recebido na cidade. Não era bem quisto pelos católicos, tampouco pelos protestantes. Ser um travesti em uma cidade com costumes tão tradicionais é um problema, ainda mais porque Mumú era portador de Psoríase, uma doença que ataca a pele grossa do corpo humano, em resumo os joelhos e os cotovelos. O preconceito que já existia por ser travesti se dobra agora pela sua doença. Nas rodas de conversa a imaginação das pessoas já redesenhava a história. Uns diziam que tinham visto o lobisomem e dava para perceber os volumosos seios. Os mais ortodoxos achavam na suspeita uma maneira de condenar o seu estilo de vida, desregrado nem homem, nem mulher ao mesmo tempo sendo os dois, imagem surreal para a pequena cidade conservadora, habituada ao convencional. Figura mais pecadora não se tinha notícia. A maldição que representa o lobisomem só poderia vir dele mesmo. A propaganda se espalhava, sempre argumentada por uma suposta aparição, sem local e sem data exata, só um “ouvi falar” mas que já era suficiente para reavivar antigos ódios e despertar acertos de conta morais.
Durante nossa conversa, os relatos de Luisinho, enriquecidos de detalhes e parênteses por Sr. Donaldo dá uma parada. Entra no bar um homem taciturno, com um boné vermelho enterrado na cabeça. Toma uma pinga. Manda uma cerveja para nós. Sai sem falar nada com Luisinho, apenas um olhar profundo em tom de cumprimento. O clima muda, Lusinho desconversa.
Continua…