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O humano obsoleto: reflexões sobre EAD, inteligência artificial e automação

Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia 

Texto de Kauê Avanzi

Arte de Enéas Ribeiro 

Assim Deus criou os seres humanos;

E ele os criou parecidos com Deus.

Ele os criou homem e mulher, e os abençoou dizendo:

-Tenham muitos e muitos filhos;

Espalhem-se por toda a terra e a dominem.

Genesis, Cap. 1, Ver 27.

 

Não basta ensinar ao homem uma especialidade. Porque se tornará assim uma máquina utilizável, mas não uma personalidade. É necessário que adquira um sentimento, um senso prático daquilo que vale a pena ser empreendido, daquilo que é belo, do que é moralmente correto. A não ser assim, ele se assemelhará, com seus conhecimentos profissionais, mais a um cão ensinado do que a uma criatura harmoniosamente desenvolvida. Deve aprender a compreender as motivações dos homens, suas quimeras e suas angústias para determinar com exatidão seu lugar exato em relação a seus próximos e à comunidade.

Alber Einstein – Como vejo o mundo.

O momento da criação é sempre algo profundamente significativo. Algo de novo surge desta singular e contraditória relação entre criador e criatura, entre sujeito e objeto. Podemos afirmar, com certa dose de certeza, que no mundo moderno o trabalho é, por excelência, o meio pelo qual o criador constitui a criatura. Logo, o ser humano que, através de seu trabalho, transforma uma forma dita “natural” em algo que lhe é útil de alguma maneira está, simultaneamente, sendo transformado por esta.

            O trabalho se constitui no fato de tornar útil um elemento da natureza para que este sirva para o próprio desenvolvimento daquele que, a princípio, trabalha. É uma relação contraditória e dependente, no sentido em que a pessoa que trabalha (o sujeito) só o faz na medida em que há algo a ser trabalhado (objeto). Desenvolvendo as potencialidades de determinado elemento, transformando um pedaço de pedra em martelo, por exemplo, o humano desenvolve uma nova ferramenta, acrescentando-lhe algo, na mesma medida em que esta ferramenta lhe potencializa os trabalhos posteriores. A cena inicial do filme 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, onde hominídeos passam a se utilizar de pedaços de ossos como ferramenta e como arma para dominar territórios e conseguir mais comida ilustra muito bem como este processo se constituiu na história humana. Mas vivemos, neste momento, um novo gênesis. Explico.

            Hoje fui ao banco. Não precisei sair de casa para fazê-lo. Por um aplicativo de celular pude realizar todas as tarefas que necessitava, sem precisar recorrer a filas, encontros com funcionários, nem sequer precisei me deslocar do sofá de minha casa. Pensando ao nível da superfície, tornar mais simples esta tarefa me poupou um bom pedaço do meu dia, o qual pude me ocupar de outras coisas, entre elas escrever este texto que você, leitor, sem necessidade alguma de ir à banca de jornal ou qualquer outro estabelecimento comercial, pode ver da tela de seu celular ou computador. Esta, e outras tecnologias agilizam, poupam tempo no nosso cotidiano, tornam a vida mais ágil e econômica. Mas isso, mais uma vez, se observarmos este fenômeno de maneira meramente superficial.

            A automação e a inteligência artificial colocam novas questões para o nosso tempo, trazem uma reinvenção do cotidiano que atinge, inevitavelmente também os ambientes educativos. Um estudo intitulado “O futuro do Emprego no Brasil: estimando o impacto da automação” conduzido pelo Laboratório do Futuro da Universidade Federal do Rio de Janeiro nos mostra uma possibilidade de futuro que é bastante assustadora se pensarmos a atual condução das políticas públicas de cunho neoliberal, individualizantes e privatizantes que  nosso país tem tomado para si. Segundo ele, 60% dos empregos formais do Brasil estão em alto risco de extinção por sua substituição por inovações técnicas nos próximos 20 anos, sendo este índice de 68% para aqueles que não completaram o ensino superior, e de 37% para aqueles que completaram[1]. Ou seja, se voltarmos a pensar na minha ida ao banco, ou na sua leitura deste texto, o aplicativo de celular que utilizei acabou com o emprego de um grande número de bancários. Só em 2019 foram 9 463 demissões no setor com reduções salariais de até 36% para aqueles que permanecem trabalhando, segundo o CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados) do IBGE, apesar dos recordes seguidos de lucros o setor bancário, que cresceram 18% em 2019[2]. Por outro lado, ao ler esta notícia no seu celular você deixa de ir a banca de jornal e gerar renda e emprego para o (nem sempre) simpático vendedor de jornais, já que temos um encolhimento de 17% dos empregos neste setor[3], isso sem citar a quebra que vivemos recentemente no mercado editorial, com seis anos seguidos de retração[4].

            Agora, imagine os impactos de tal processo quando falamos de educação. Aqui, não se trata somente da também grave substituição de trabalhadores por sistemas de inteligência artificial, conforme já víamos ocorrer a passos largos no ensino privado superior, como nos ilustra o didático caso das universidades do grupo Laureate (FMU e Anhembi Morumbi), onde robôs realizavam as correções de provas e trabalhos dos dursos EAD com base em reconhecimento de palavras chave[5]; ou as mais de 3 mil demissões do grupo Estácio em 2019[6]. Um dano mais profundo e ainda pouco avaliado diz respeito à formação que nossos jovens e profissionais vão receber. O processo de produção do conhecimento diz respeito à forma como nos realizamos e nos reproduzimos enquanto humanidade.  Roseli Salete Caldart, em seu livro A Pedagogia do Movimento Sem Terra, expressa a seguinte consideração sobre o processo de ensino-aprendizagem:

“ao tratarmos de processos ou de práticas educativas, seja em um sentido mais amplo, ou no sentido mais restrito da educação escolar, estamos no âmbito da questão de como a humanidade se faz a si mesma, em cada lugar, em cada tempo histórico. Estamos discutindo o ser humano e como é possível conformá-la a um determinado modo de ser no mundo” (p. 84) “não há como compreender a educação sem compreender seus determinantes estruturais, especialmente ligados ao modo através do qual uma sociedade organiza a produção e a reprodução de suas condições materiais de existência. (p. 88)

            Estamos, portanto, em um debate não só sobre as condições de vida e de sobrevivência de um grande número de profissionais da educação que exercem, hoje, suas funções em escolas e universidades, mas discutindo também uma determinada subjetividade a ser construída a partir de uma determinada mudança tecnológica.  A ideia da existência de um sujeito dotado de  identidade, unidade e de continuidade ao longo do tempo, está na base de grande parte das formulações filosóficas modernas e pré-modernas e das práticas sociais que lhes deram origem. Certamente a Escola e a universidade estão inseridas nesse contexto, na medida em que ideias como desenvolvimento intelectual, desenvolvimento cognitivo, aprendizado, fases de aprendizagem e outras só são possíveis partindo-se do pressuposto de que os indivíduos constituem uma continuidade, estando passíveis de ser “melhorados”. Nenhum projeto pedagógico é neutro, ele sempre traz consigo uma noção, um projeto de ser humano e de uma subjetividade a ser construída.

            Agora pensemos em crianças e jovens, tendo seu processo de formação intelectual e seus valores sociais sendo desenvolvidos através de telas de computadores, tablets e celulares. Perde-se, com isso, o componente social da aprendizagem, o convívio com o outro, o diferente, perde-se a oportunidade de aprendizado com a criação de laços e vínculos, tão caros a um aprendizado que se quer realmente efetivo e transformador. Por outro lado, se a concepção de formação que almejamos é aquela chamada por Paulo Freire de bancária, onde basta absorver um conhecimento já pronto desenvolvido por um outro e reproduzi-lo de maneira acrítica, estamos no caminho certo na formação de uma subjetividade neoliberal e individualizante.

            Baseada na pedagogia das Competências e Habilidades, proposta pelo economista Jacques Delors, este projeto busca a formação de uma força de trabalho mais coesa e flexível, onde os trabalhadores formados por esta concepção estariam aptos a se adaptar com facilidade a diferentes profissões e atividades profissionais, com ênfase no desenvolvimento de competências como as de “eficiência social” e a “competência gerencial”, conforme exposto no trabalho de mestrado de Camila Grassi Mendes de Faria, intitulada O Projeto de formação profissional da Confederação Nacional da Indústria e as políticas públicas de educação profissional: confluências entre o público e o privado na educação brasileira nos anos 2000, defendida no setor de educação da Universidade Federal do Paraná.

            As experiências desta concepção pedagógica aplicadas nos Estados Unidos, durante a década de 1990, deram ênfase a uma formação voltada a um perfil de competitividade e produtividade cada vez maior entre educadores e entre educandos, trazendo a lógica concorrencial da empresa para a escola, espaço de aprendizado. Na Coréia do Sul, um dos países pioneiros nesta metodologia e historicamente um dos primeiros colocados no ranking do PISA, a extrema pressão por bons desempenhos nas provas escolares e o intenso clima de concorrência entre os estudantes provocou uma das maiores taxas de suicídio de jovens entre 15 e 29 anos do mundo, chegado a 30 casos por 100 mil habitantes nesta faixa etária[7], taxa esta que vem subindo também no Brasil 10% desde 2012, chegando a 5,6 a cada 100 mil habitantes. Esta realidade tende a se intensificar com o advento da Educação à Distância tal como imposta neste período de pandemia.

            Para além disso, o sistema EAD, conforme proposto por governos municipais, estaduais e federal, incorrem em uma grave afronta à autonomia docente, uma vez que ferem artigo 206 da Constituição Federal, que propõe no paragrafo III que o ensino deve basear-se no “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; (…).” e na Lei de Diretrizes e Bases, onde se coloca no Artigo 3°, nos parágrafos II e III que o ensino será ministrado de acordo com os princípios da liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; e do pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, direitos conquistados após muita luta e sangue no processo de redemocratização pós ditadura civil-militar no Brasil.

            Os grupos privados que fazem das plataformas de ensino à distância seu negócio já vinham rondando as redes públicas como fatia de mercado já a alguns anos, vide que as escolas públicas abrigam a maior parte dos estudantes do país e, ainda, tendem a receber os filhos da classe média que viu sua condição econômica piorar no que sobrar do Brasil após a crise institucional e sanitária que vivemos. Mas agora, temos a situação perfeita para que estes grupos assumam, com vistas ao seu lucro individual (objetivo de toda empresa privada), ao menos em parte os sistemas educativos, agravando as desigualdades sócio-econômicas e, ainda, conformando a subjetividade do que Henri Lefebvre chamaria em seu livro Posição contra os Tecnocratas de Ciberantropo, que seria aquele perfil de humano que “(…) se define pela estabilidade. Não tem, de modo algum, o aspecto de um autômato, no sentido caduco de um mecanismo. Não é rígido mas sim, pelo contrario, flexível, de uma flexibilidade controlada. É descontraído. Ri pouco mas sorri quase sempre. Se surpreende falando mais alto que a média, logo se censura por isso e retoma uma voz bem colocada, neutra e sem timbre. Em compensação, seus olhos são ágeis. Ele capta a informação. Vejam-no ao volante: quinze bilhões de partículas de passagem recepcionadas a cada cem quilômetros, e quinze mil micro-decisões com o mais estranho sorriso e desenvoltura. Descontraído ao comunicar, ao discorrer, mas não ao pensar.”[8]

            Esta subjetividade flexível e programada é o que faz com que norte-americanos e sul-coreanos tenham uma formação técnica e matemática bastante eficientes, mas um nível baixíssimo de compreensão social crítica, conformando sociedades que desenvolvem seus valores sempre no nível de indivíduos e famílias, nunca de comunidades. Com esta concepção, a noção de empatia morre por abandono. Isto na educação faz com que se tenha a manutenção, reprodução e internalização de idéias e valores que não permitem o questionamento e reflexão por parte dos educandos. Além de um menor investimento por parte do Estado em uma educação pública, deixando que o espirito empreendedor seja o responsável por oferecer educação, no olhar do “mercado”, de “qualidade”. E nada garante que, após a pandemia, estes sistemas e métodos educativos deixarão de ser utilizados às massas.

            Assim sendo, professores vêem eliminadas de seu cotidiano a liberdade de escolha do conteúdo e dos métodos a serem trabalhados por este, empobrecendo e desvalorizando o seu ato pedagógico. É evidente que existe uma política de uma formação massiva de profissionais com baixa qualificação, atendendo as demandas do mercado de trabalho, criando assim um exército de profissionais efêmeros formados à partir da escola, que vão para a sociedade incapazes de fazerem sua próprias leituras de mundo, e destituídos de uma ideologia própria, acabam por acatar a ideologia dos meios de comunicação dominantes, a ideologia das classes dominantes. O ensino à distância como resposta para o isolamento necessário diante da pandemia somente reforça e aprofunda tal processo.

            Há aqui uma inversão lógica entre criatura e criador neste ponto. É como se Deus, tendo supostamente criado a humanidade, passasse a ser dominado e oprimido por esta. Esta forma de consciência, que chamamos de fetiche, se constitui na forma romântica de tornar absolutas relações sociais historicamente constituídas, perdendo com estas o lastro histórico que as constituiu, naturalizando-as, como se existissem desde sempre, não havendo qualquer alternativa ao mundo existente. Deste modo a automação e a inteligência artificial, criadas por nós humanos, se tornou absoluta, regulou vidas e relações, formas de ver e de pensar; as formas espaciais. Tornou-se nossa rainha soberana, que reina sobre a vida e sobre a morte. O evangelho de que estas técnicas são neutras e eficientes precisa ser desmontado, ou isso acarretará em profundas mudanças na forma como nós humanos nos relacionamos uns com os outros e com a natureza. Lembremos, HAL 9000 nunca foi somente uma inovação técnica.

[1]     http://labfuturo.cos.ufrj.br/laboratorio-do-futuro-publica-o-relatorio-tecnico-o-futuro-do-emprego-no-brasil-estimando-o-impacto-da-automacao/

[2]     https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/02/13/lucro-dos-maiores-bancos-do-brasil-cresce-18percent-em-2019-e-soma-r-815-bilhoes.ghtml

[3]     https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/09/29/em-queda-bancas-de-jornal-adotam-visual-alternativo-e-viram-ate-cafeteria-em-sp.ghtml

[4]     https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/04/mercado-editorial-brasileiro-diminui-pelo-quinto-ano-seguido.shtml

[5]     https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2020/05/faculdades-da-laureate-substituem-professores-por-robo-sem-que-alunos-saibam.shtml

[6]     https://exame.com/negocios/o-que-as-demissoes-da-estacio-revelam-sobre-o-setor/

[7]          https://www.bbc.com/portuguese/brasil-39672513

[8]     Lefebvre, Henri. Posição contra os Tecnocratas. Nova Crítica. São Paulo. 1969.

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.