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O domínio da natureza Selvagem: Sobre Iracemas e a construção social do feminino e do masculino

Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia 

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

Iracema, virgem dos cabelos mais negros do que a asa da graúna, de lábios mais doces que o favo de jati, e o hálito fresco como a brisa da manhã. Virgem, intocada, misteriosa, lendária. Sua presença remete ao éden perdido que buscamos por toda a vida, talvez em vão. É assim, distante e inalcançável como a própria natureza, – e talvez seja esse o paralelo que queremos – o da romântica visão do objeto intocável, pelo qual a vida justifica seu sentido de ser.

Mas um rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. A virgem, ao erguer os olhos depara-se com uma sedutora visão; cativante e perturbadora está ali, à sua frente, a imagem de seu contrário, moderno e altivo, com a mão pousada sobre a espada, o sangue enrubescendo sua face pálida. Tinha um belo sorriso no rosto, que não se sabia ser alegria ou sarcasmo. Era Martim, o conquistador europeu, civilizado e desenvolvido que se colocava em cena.

Inicia-se aqui nosso conflito, contradição inerente da sociedade moderna. Vivemos em uma sociedade na qual a oposição “civilização” (masculina) e “natureza” (feminina) é a forma fundamental na qual se expressa o nosso modo de vida. A ideia de Natureza, tal como a conhecemos atualmente, não existiu desde sempre. Nem a de feminino. Estas duas concepções foram, juntas, social e historicamente desenvolvidas de acordo com as condições materiais existentes em cada época[1]. Simone de Beauvoir já nos dizia que não se nasce mulher, torna-se. Nossa sociedade inventou a natureza e a mulher como submissas e dominadas ao homem civilizado, inserindo a ambas na lógica da produção e do lucro, transformando a ambas em mercadoria.

Nos primórdios do que hoje nos convém chamar de humanidade, estes dois ambientes – o natural e o social – não estavam dissociados um do outro, ou melhor, não existiam enquanto coisas distintas. Imagine, por exemplo, o vislumbre de um habitante qualquer de uma comunidade anterior a instituição do Estado. O nascer do Sol, o crescer das plantas, a luz das estrelas e a própria vida apareciam como manifestações divinas. Mas não se tratam de Deuses tais como podemos observar nas religiões contemporâneas, onde um grande soberano, bom e masculino controla todo o universo em uma luta infinita contra o mal. Estes se manifestavam de maneiras diversas, distintas, para o agrado ou não dos homens e dos animais. Eram o alimento que brotava da terra e o trovão que tudo destruía; a beleza das flores e o cheiro da carniça; a vida e a morte. Os deuses da antiguidade eram os próprios elementos disso que chamamos natureza, e eram as mulheres que possuíam o conhecimento das ervas medicinais, dos ciclos de Sol e de chuva, e do contato com o mundo espiritual. O que acontece é que estas formas místicas de compreensão da própria vida vão sendo, aos poucos, colonizadas e substituídas por outras. A concepção que temos de Natureza, e com ela a concepção hegemônica do feminino, foi construída com base em conflitos, guerras, sangue e sofrimento.

Neste sentido, é necessário enfatizar que a filosofia e, junto dela, a ideia de natureza, surgem à partir da constituição da polis grega, da propriedade privada, e da necessidade de explicação dos fenômenos do mundo. Logo, na medida em que o homem  (masculino) “cria” a natureza (feminina), começa a criar a si mesmo enquanto distinto desta, sob distintas formas no decorrer de toda a história humana. Podemos aqui concordar com a célebre frase de Elisée Reclús, em que “o homem é a natureza que toma consciência de si”[2], ou seja, o ser humano cria a si mesmo no momento da criação da natureza, produzindo a natureza e o espaço à partir das condições históricas presentes em cada civilização, em cada época, de maneiras distintas em diversas partes do planeta. Portanto, Iracema só pode saber que é Iracema, distinta de Martin, a partir do seu encontro e estranhamento com Martin, o colonizador “civilizado”. Martin impõe fragilidade sobre Iracema e a abandona, com um filho nos braços. História comum nestes tempos onde se diz que a maternidade é da “natureza” das mulheres, enquanto homens abandonam jovens grávidas sem assumir suas responsabilidades sobre a criança a nascer.

O princípio da era industrial na humanidade transforma o modo como esta ideia é vista e concebida no mundo.  A natureza passa a ser vista como recurso, como matéria-prima, como meramente o meio pelo qual o desenvolvimento humano deveria passar e subjugar para garantir o futuro da indústria nascente e das grandes cidades. A mulher passa a ser vista como objeto, passiva, submissa, casta. A chamada família tradicional, em que o homem é o dono da mulher e dos filhos, se institui aqui.

É neste momento, e não à toa, que a forma mercadoria atinge o grau de complexidade presente nas sociedades capitalistas, e a natureza como sendo um mero agente externo à sociedade, como aquilo que é alheio à cultura e que, portanto, pode e deve ser utilizada vorazmente na produção industrial que se constituía naquele momento. A natureza (feminino) é subjugada à civilização (o masculino). A publicidade, a mídia e a indústria pornográfica tratam de reforçar o duplo caráter de mercadoria que cabe à mulher nesta sociedade: o de força de trabalho e o de objeto sexual.

Sendo assim, o desenvolvimento da indústria capitalista a partir das antigas manufaturas é o grande responsável pela instituição de toda uma forma de conceber o assim chamado ambiente natural e a ideia de natureza, colocando o “natural/feminino” e o “homem/masculino” como opostos um ao outro, sendo o primeiro dominado e controlado pelo segundo. Fica óbvio aqui que não foi a ideia que veio primeiro, para que depois o espaço fosse produzido de acordo com os pensamentos já concebidos, mas sim o contrário, o mundo real já se constituía como tal antes que a ideia produzida o legitimasse. Houve, em certo sentido, a morte de uma subjetividade para que se impusesse outra que facilitasse a aceitação do modo de produção reinante. Mas pode tal fato ter acontecido sem oposição, sem conflitos? Como uma ideia pôde se impor tão radicalmente em toda a sociedade?

A classe dominante, em qualquer época, detém o poder de produção de uma ideologia[3] que a legitime enquanto classe dominante.[4] A escola, as leis, os discursos midiáticos e dos sujeitos políticos, a polícia, enfim, são várias as instituições que trabalham na naturalização de contradições históricas criadas pelo modo de produção capitalista. Isso obviamente existiu em outras épocas. Na Idade Media, por exemplo, a classe dominante – nobreza, clero, etc. – produzia e difundia em toda a sociedade os ideais de honra, fidelidade ao suserano, a fé na sabedoria divina e da punição no dia do Juízo Final. Enfim, uma série de ditames da moral vigente na época que conduziam a dominação de determinadas classes sobre outras. Atualmente, as ideias da conquista material pelo trabalho, o empreendedorismo, o ser cordial, pacífico e servilista como pressupostos da ascensão social, do desenvolvimento econômico, o pai de família como provedor, a moral protestante, o individualismo, o machismo, entre vários outros compõem as formas de dominação social de uma determinada classe sobre, principalmente, a classe trabalhadora. Não é à toa que classe dominante consegue difundir-se socialmente. A burguesia tem acesso a todos os meios de produção, difusão e de coerção para criar e propagar os seus pensamentos como se fossem os de toda a sociedade. Logo, esta classe não domina somente por que tem a sua disposição os meios de produção material, mas por dominar também a produção de ideias a respeito do modo como a sociedade funciona. O trabalhador é submetido de corpo e espírito aos ditames do capital, a trabalhadora é submetida de corpo e espírito aos ditames do trabalhador e do burguês.

Esta divisão do trabalho entre homem e mulher – que Marx diz ser a primeira forma de divisão e exploração do trabalho – embora haja uma diferença biológica visível, foi só socialmente, a partir de condições materiais reais – divisão sexual do trabalho, etc. – que se estabeleceram as relações entre os sexos que hoje conhecemos. Não há uma diferença substancial entre um homem e uma mulher aos oito anos de idade – a não ser pelo fato de um ter um pênis e a outra uma vagina – em sua estrutura física. A diferença está nos comportamentos sociais outorgados a estes seres desde o seu nascimento: o rosa e o azul; a casinha e o futebol; etc., etc. A diferença física surge na diferença nas relações sociais de um e de outro, pois, o homem realizando determinadas atividades durante sua vida, adapta seu corpo de tal forma a sua condição de vida que o faz ter uma maior massa muscular, testosterona, pelos, mais abundantes por todo o corpo, etc, etc.

Esta relação social, no entanto, é-nos vista como algo que sempre existiu, orgânica e natural. Esta forma binária de enxergar a sexualidade e a Natureza encontra problemas consideráveis quando homossexuais, transexuais, bissexuais e tantos outros “desvios” colocam-se em cena, não se encaixando na estrutura heteronormativa posta.

Com isso, podemos pensar que a própria ideia de “natureza” não é natural. Nem a superioridade do masculino sobre o feminino, ou do social sobre o natural. Por isso neste 8 de Março, onde celebramos o dia internacional de luta das mulheres, nos somemos a nossas companheiras de luta contra o machismo e o patriarcado, lembrando-nos que se uma ideologia pode ser construída e difundida, pode também ser destruída em suas contradições e, à partir de nossas ações cotidianas, construiremos um novo modo de ser e pensar a sexualidade, o masculino e o feminino, o sagrado e o profano, o natural e o social. Iracema morreu, Martin partiu, e restou Moacir. Fruto da contradição, filho da dor, filho de mãe solteira. Hoje, milhões de “Moacires” rondam de cidade em cidade, de vila em vila em busca da realização de sua própria existência. Viveram em cortiços, nas ruas das cidades, e hoje também formam subúrbios e favelas. Tenhamos em mente que romper com os privilégios do homem-heterossexual-civilizado sobre todas as outras formas de ser e existir é, também, romper com a própria ideologia capitalista. Rapazes, a luta não é só delas, é nossa também!

[1]          “Toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma determinada idéia do que seja a natureza. Esse sentido, o conceito de natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pelos homens. Constitui um dos pilares através do qual os homens erguem as suas relações sociais, sua produção material e espiritual, enfim, sua cultura.” (GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os (des)caminhos do Meio Ambiente. Contexto. São Paulo. 1990. p. 23.

[2]     ANDRADE, Manuel Correia de Andrade (org). Elisée Reclús. Editora Ática. São Paulo. 1985.

[3]     Sobre o conceito de ideologia que utilizamos aqui, e para o desenvolvimento posterior deste texto utilizamos a distinção entre Mito, Ideologia e Utopia, propostos por Lefebvre: “O mito definir-se-ia como discurso não institucional (não submetido às imposições das leis e instituições), extraindo seus elementos no contexto. A ideologia consistiria num discurso institucional, justificando, legitimando (ou então criticando, recusando e refutando) as instituições existentes, mas desenvolvendo-se no seu plano. Quanto à utopia, ela se empenharia em transcender o institucional, servindo-se ao mesmo tempo do mito, da problemática do real e do possível-impossível.” (LEFEBVRE, Henri. A Revolução Urbana. Editora UFMG. Belo Horizonte. 1999. p. 101.)

[4]     MARX, Karl. A Ideologia Alemã. Vol. I. Presença/Martins Fontes. Lisboa. 3ª Edição.

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.