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O dia que rebocaram minha espaçonave e descobri meu primeiro emprego aqui na Terra

Foi mais uma noite na seca. Saí da festa no zero a zero, sem pegar nenhuma gata alienígena e ainda cambaleando bêbado por conta das doses de vodca saturniana. Ainda estava escuro, mas a madrugada já se despedia para dar vez à manhã dos humanos trabalhadores cheios de tédio.

Cheguei à beira da calçada e não vi mais minha espaçonave, pensei que algum malandro a tivesse roubado, mas logo que me aproximei percebi que havia uma fita no chão e uma multa pregada no poste. Minha espaçonave havia sido rebocada por estacionar em local irregular. “Malditos”, pensei. Só me restava ir pra casa de ônibus.

Andar de ônibus era um saco, as pessoas se espremiam, empurravam, xingavam a sua mãe e de vez em quando uns maloqueiros faziam uns arrastões levando tudo que você tinha. Como eu não tinha nada, e aquela era a minha única alternativa, iniciei minha saga à procura de um ponto de ônibus – ainda cambaleando, apesar de já se sentir um pouco melhor. Ou pelo menos achando que estivesse melhor. Dizem que se você transpira isso ajuda a suavizar o porre. Talvez pensar isso também suavizasse e então comecei a pensar positivo, como naqueles livros de autoajuda, e, de fato, minha embriaguez diminuiu. Foi incrível.
Durante o trajeto, me dei conta de que eu não tinha dinheiro para pagar o ônibus e muito menos a multa que me fora aplicada. “Tô fodido”, pensei. “Um alienígena bêbado andando sem rumo, sem dinheiro e sem espaçonave”. Aquilo me fez refletir sobre a minha situação. É duro para um alienígena quando ele se dá conta do que está fazendo com a própria vida. Sério, cara. Meus amigos estavam empregados, felizes e indo todos pro shopping pular slackline. E eu ali… Decidi que era hora de encontrar um emprego.
Segui meu rumo dando alguns tropeços normais (pois as calçadas são irregulares e às vezes os postes estão no meio delas), quando parei para observar um ser humano trabalhando exaustivamente, apertando parafusos numa fábrica de sei lá o que. Observei ele de longe por um tempo. Só aquela cena depressiva já foi suficiente para eu me desvanecer da ideia de arranjar um emprego.

Continuei minha odisseia etílica e, a poucos passos do escravo apertador de parafusos, me deparei com um anúncio de emprego bastante inusitado (muito inusitado, aliás).

Parei em frente à loja de departamentos e observei com mais calma a extraordinária vaga.

A loja estava fechada aparentemente, mas a folha colada na porta parecia dizer se tratar de coisa verdadeiramente séria.

Dizia assim:

Vaga de emprego (inclusive para alienígenas):
  Expediente: 3 dias por semana.
Salário: Você determina.
Contrato: 4 ou 8 anos* (com direito a aposentadoria vitalícia para parentes, cônjuges e cachorros – mesmo para cachorros veganos)
Idioma: Saber assinar com o polegar e conseguir pronunciar a palavra “Ordem e Progresso” fluentemente.
Pré-requisitos: Experiência em corrupção interplanetária;
Conhecimento de aplicativos de peculato marciano e propina intergalática;
Não ter caráter, honestidade ou quaisquer outras concepções morais já defasadas (mau-caratismo avançado será considerado um diferencial);
Demonstrar boa oratória e usar o termo “Deus” em todas as frases públicas, mesmo que você não acredite** (vide cultura organizacional da empresa no capítulo 666).

Benefícios: Auxílio moradia;

Espaçonave da FAB (Força Aeroespacial Biplanetária);
Auxílio creche (incluso para marcianos e cachorros veganos com pH inferior a 7);
Bolsa anistia;
Vale-crime;
Vale-merda (que pode ser usado caso você faça alguma merda, que é algo altamente indicado que você faça durante sua atividade na função);
Julgamento diferentão (caso você pratique algum crime, você será julgado por um grupo de juízes super-extra-duper-inter-galáticos que jamais conseguirão julgá-lo, pois o processo estará anos-luz atrasado e então o processo será considerado prescrito. Prescrição é quando você faz alguma merda e as pessoas só sentem o cheiro muito tempo depois);
Fode-povo grátis (ao passar na vaga, você ganha um incrível instrumento chamado “fode-povo”, que você poderá usar sempre que quiser, indiscriminadamente, sem qualquer preocupação. E o melhor de tudo: não é necessário experiência no manejo da ferramenta).

Regras da empresa:

Você cria as regras.
Metas:
Com o programa “ferra-metas”, quanto menos metas você bate, mais reputação tem com os coleguinhas de trabalho.
Seleção dos candidatos: outubro.
* pacote não incluso para marcianos no plano PEC 55 Plus.

Não entendi nada sobre o que era aquela vaga e achei que aquilo poderia ser algum “pega-otário” feito pela loja de departamentos. Em todo caso, na dúvida, arranquei o papel do estabelecimento e segui meu caminho. Se a vaga de fato existisse, eu não conseguiria, por exemplo, conceber a ideia de usar um “fode-povo”, ainda que fosse utilizado apenas em humanos. Era inaceitável aquilo, sabe? Tá certo que eu não ligava muito para o comportamento humano, mas não era capaz de compreender como a relação entre eles podia ser tão cruel. Aqueles comportamentos exigidos na vaga de emprego seriam censurados até mesmo pelos marcianos, jupiterianos e venusianos mais psicopatas que conheço, pois até entre os alienígenas existe ética. Sério. Assim, não me sobrou muito, senão ter pena da raça humana. O legado deles aqui na Terra seria implantar a sua própria destruição. A destruição da sua casa. O belo planeta azul. Que loucura isso, não acha?!

Andei mais uns passos e cheguei ao tubo de ônibus.

Não tinha dinheiro e expliquei a situação ao cobrador. Eu conseguia falar, mas talvez ele não conseguisse entender o que eu dizia. Ele achava que eu estava bêbado. Até chegou a me empurrar. Que desgraça uma situação dessas, cara. Não desejo isso nem pros meus inimigos de Mercúrio. Dói na alma de um alienígena passar por uma coisa dessas, sabe? O cara me empurrou e voltou a se sentar para continuar a ouvir o resultado do jogo do seu time de futebol com os fones de ouvido. Ou ouvir contos eróticos, vai saber… (a gente nunca sabe os segredos que as pessoas escondem com os fones de ouvido).

Eu já estava desaminado, achando que ia dormir ali mesmo, como um cachorro, quando então surgiu a minha salvação: o escravo que apertava parafusos.

O cara surgiu do nada e, pelos deuses, me deu uma puta assistência. Me ajudou a levantar e agarrar a entrada do tubo. Tudo na maior humildade. Lembro que consegui entrar e na sequência vi o escravo apertador de parafusos pagar uns trocados ao cobrador ouvinte de contos eróticos. Um puta cara gente fina aquele apertador de parafusos. Realmente os humanos nos provocam surpresas às vezes.

Sentei-me no ônibus, desamassei o papel e reli com mais atenção a vaga de emprego da loja de departamentos. O ônibus acelerou e partiu. O humano apertador de parafusos já havia retorno à sua função quando pude sentir o cheiro de cerveja grudada no sapato ser substituído pelo odor de combustível e fuligem dos automóveis e espaçonaves daquela manhã congestionada. Tudo aquilo era uma imensa loucura!

Então, após refletir naquela manhã conturbada, cheguei à minha decisão: eu também escolheria apertar parafusos.

About Jesse Gomes

Jesse Gomes é escritor, autor de "A Trajetória dos Condenados". Trabalhou em revistas e passou brevemente pelo jornal Gazeta do Povo. Vê nas palavras uma forma de transformação social.