Atenção, esta é uma obra de ficção e qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência.
“O homem que pretende ser sempre coerente no seu pensamento e nas suas decisões morais ou é uma múmia ambulante ou, se não conseguiu sufocar toda a sua vitalidade, um mono maníaco fanático.”
Aldous Huxley
Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesias
Acabou! A angustia do povo brasileiro foi-se embora. A família foi restaurada; a violência urbana se acabou. Os papais e mamães da sociedade de bem brasileira podem deixar seus filhinhos saírem às ruas sem problemas, pois não há mais a preocupação de um assalto, ou um sequestro. O dia seguinte ao golpe de Estado brasileiro não poderia ter sido melhor. Uma coalizão de bons homens (brancos), de famílias respeitadas, assumiram o poder, e garantiam que toda a lei que fosse aprovada, fosse cumprida à risca. Aqueles que não a respeitassem deveriam ser severamente punidos, servindo exemplarmente para todos os outros que ousassem pensar em não obedecer aos códigos sociais. A pena de morte passou a ser corriqueira, cometida institucionalmente pelo Estado e pela sociedade civil em geral. Obviamente, só os pobres morriam, pois apenas eles cometiam crimes!
Dentre as leis mais curiosas aprovadas na câmara dos deputados (que naquele momento aprovavam o que queriam) foi uma que era, no mínimo, muito curiosa. Levantada a questão de que os comunistas eram tradicionalmente conhecidos como “comedores de criancinhas”, aprovou-se que seriam punidos com pena de morte todos aqueles que comecem carne humana provenientes de pessoas com qualquer tamanho e idade. Nada podia ser mais bárbaro que o canibalismo.
No dia depois do golpe, inaugurou-se também um ótimo restaurante na cidade, apreciado por toda a alta sociedade e frequentado pelas mais ilustres figuras e celebridades. O ator de TV, o governador, a primeira-dama, o dono de jornal, e até alguns cidadãos que, sem muitas posses, acabavam guardando dinheiro o ano inteiro acabaram passando pelo L’egalité, de posse de um nobre e importante deputado. O tal restaurante era pauta cotidiana das páginas sociais difundidas pela TV, internet e revistas de banca.
Um belo dia, um cidadão, desses desavisados, que guardam dinheiro o ano inteiro para levar a família num ambiente fino daqueles que estavam na TV todos os dias, resolveu que iria conhecer a cozinha. Afinal de contas, em seu círculo social, era comum que se pergunte ao cozinheiro qual o tempero que se usa para deixar a carne com aquele gosto tão especial. E foi entrando, como era de seu costume, sem perguntar a ninguém. Porém, seu espanto não foi pequeno. Um grupo razoável de pessoas trabalhavam como animais naquele local. O cozinheiro chefe gritava o tempo todo com quem se distraísse, sendo comuns as agressões físicas. As bocas permaneciam sempre fechadas e as agressões físicas e assédios de todo tipo eram cotidianos, alguns, mesmo quando se machucavam com alguma faca, continuavam trabalhando, com o sangue escorrendo de suas mãos. Estavam todos cansados e desestruturados emocionalmente. Eram tristes, quietos, sofridos. Eram pobres aqueles que preparavam a comida que ele, com tanto esforço acabara de comer. Mais ainda – e isso lhe foi mais chocante – a carne que lhe era servida era carne humana.
Fotografou registrou gravou escreveu anotou argumentou juntou papéis e foi às ruas denunciar o que ocorria. Foi à polícia, ao governo, ao jornal, ao apresentador de TV, gritou pelas ruas e nada. Ninguém lhe dava ouvidos. Com o tempo foi diagnosticado como louco e trancafiado na clínica Bandeirante, onde apanhava todos os dias dos agentes de segurança. A todos os outros foi como se nada tivesse ocorrido. Não havia nenhuma diferença no que ocorria depois daquele fatídico dia pois, naquele instante, eram todos culpados…