- Foto de Zeca Abdala
O movimento na rua é quase nada. Há ausência de pessoas. São quase três da madrugada e a luz vermelha do farol me obriga a parar o carro no cruzamento de duas grandes avenidas.
Ouço apenas o barulho da seta ligada. Minhas pupilas se fixam no farol da frente, no sentido contrário ao que eu estou. Há poucos veículos parados.
Estou na zona sul da cidade de São Paulo. Os termômetros pelos quais passei mostravam o número 10. Dentro do carro, os vidros estão fechados e o ar condicionado ligado. Meu corpo está imerso numa temperatura bem mais elevada do que os 10 graus.
Flagro um corpo corcundo coberto por um cobertor listrado. Um homem, dono deste corpo, caminha lentamente em direção à janela dos motoristas que estão no sentido contrário ao meu. Vejo apenas seu braço direito estendido, com a mão aberta, pronto para pegar algo. – Moedas? Um trocado?
Chove fraco. É possível notar o peso do cobertor em suas costas, que pendia para baixo.
– Sim, ele está pedindo “algo”! Ele precisa de alguma coisa, algo que lhe aqueça, que possa trazer proteção ao seu corpo.
– Seus passos lentos são reflexos de seus pés congelados? Podem estar dormentes! O braço estendido significa mais do que pedir trocados. É também um pedido de ajuda.
Uma buzina dispara. O barulho constante me assusta. A luz que era vermelha está verde. Preciso avançar. Engato a primeira e sigo.
A cena segue comigo. O homem corcundo permanece lá.
– Quanta esperança ele tem? Será a vontade de manter-se vivo, que o mantém no mesmo lugar? O que pensa ele enquanto aguarda alguns minutos até que o farol fique vermelho mais uma vez?
– Há quanto tempo ele está lá? Por quanto tempo resistirá? Quem é aquele homem? O homem da madrugada fria e chuvosa? Que fim terá esta noite para ele? E que ele está pensando? O que sente, além do frio? Qual a sua esperança diante de cada janela em que ele parava? Viu-se em alguma delas?
– Pela manhã, ele poderá esquentar seu corpo com um copo de café com leite? Será que alguém lhe dará um pão com manteiga? Ele terá um cobertor seco para a próxima madrugada?
Nunca terei as respostas. É inútil perguntar! Mas a cena dói e exige uma força emocional brutal de mim. Segui meu caminho para casa. Ele não.
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Este “terrível acontecimento” ocorreu na madrugada do dia 05 de julho de 2015. O que mudou de lá pra cá? Onde está o homem corcundo com o cobertor molhado?
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Ssmaia Abdul, psicóloga há 17 anos, formada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Terapia Narrativa e Práticas Colaborativas. Pós-graduada em Jornalismo Literário. Escreve sobre o que lhe toca, e é apaixonada por histórias de vida.