Últimas Notícias
Home » colunistas » O Brasil está lascado: o que significa não termos censo em 2021?

O Brasil está lascado: o que significa não termos censo em 2021?

Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia

“O sertão está em toda a parte”

Guimarães Rosa

 

            O governo Jair Bolsonaro tinha anunciado que esse ano não haveria Censo. O governo Federal realizou um corte de 90% da verba destinada ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), inviabilizando com que o censo demográfico produza dados estatísticos sobre as condições de vida, renda, emprego, saúde, educação, moradia, entre outros, em todo o nosso país. Tenho visto alguns analistas da grande imprensa e até alguns geógrafos dizerem que tal medida se deve a uma tentativa da administração do Estado Brasileiro de encobrir o impacto da tragédia social que assola todo o território nacional. Pode-se tratar disso, também, mas acredito haver mais coisas nas profundezas de tal medida, que vão para além das verbas e dos dados, e que tem muito com projetos de nação. O povo não sabe o que perde. Porém, na tarde desta quarta-feira o ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o governo federal tome as providências para realizar o Censo demográfico. A decisão atendeu a um pedido do governo do Maranhão.

            O conhecimento geográfico do território foi, desde a colonização, fundamental nos sucessivos projetos de desenvolvimento do que chamamos hoje de nação brasileira. Bandeirantes e jesuítas, para além da exploração das riquezas, da mão-de-obra indígena e da catequização, cartografavam rios, matas e caminhos, catalogavam populações, com o claro objetivo de expansão territorial da coroa portuguesa sobre terras que, pelo tratado de Tordesilhas (1494), pertenciam à coroa espanhola. Quando da negociação do tratado de Madrid (1750), os portugueses definiram as fronteiras de acordo com cartas e mapas que haviam elaborado. A superioridade do conhecimento geográfico sobre as colônias por parte de Portugal redefiniu os limites das fronteiras em favor desta.

            O Instituto Histórico Geográfico surge, então, no período do império (1838), com a intenção de criar uma coesão nacional “civilizadora” em um território tão diverso como o nosso, conduzindo o desenvolvimento nacional hora em direção a projetos de “modernização”, com intensa exploração da mão-de-obra cativa negra, hora em projetos de branquamento populacional, política que entrou, com verniz mais “moderno” ao período da primeira República sob a alcunha de políticas higienistas (ou eugenistas). Tal concepção de nação via na própria população um obstáculo ao desenvolvimento do país, sendo necessária a importação do componente estrangeiro branco e ação do Estado contra os “inimigos internos” negros e indígenas, produzindo um apagamento destes na identidade nacional brasileira.

            A verdade é que os militares controlaram e monopolizaram o conhecimento geográfico sobre o território brasileiro até a fundação do IBGE, em 1932, e da AGB (Associação dos Geógrafos Brasileiros), em 1934. A partir de então, pensa-se o país também a partir do conceito de regiões, desenhada cada uma a partir de de paisagens mais ou menos homogêneas entre si, e que se articulariam em uma identidade nacional formada pela miscigenação. Este tipo de conhecimento é tão importante que Milton Santos, ao propor um projeto geopolítico de país a partir do protagonismo do chamado terceiro mundo, foi exilado durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Pensemos, por exemplo, que só à partir do censo de 1991 é que alguém pode se auto-declarar indígena para o recensseamento no Brasil.

            Yves Lacoste, geógrafo francês, diz que a Geografia serve, antes de mais nada, para fazer a guerra. Mas guerras não se vencem apenas com os melhores exércitos e equipamentos, ou com grandes batalhas de aviões e tanques. Se vencem especialmente com o conhecimento do território a ser dominado e pela construção de narrativas impostas ou não sobre este. Os militares nunca deixaram de estudar e produzir conhecimento geográfico sobre o território brasileiro. Porque, então, dificultar com que estes sejam produzidos de forma pública, com livre acesso de todos? O Brasil não é mera obra da natureza, e o domínio sobre seu território está em disputa em todo lugar, a todo o tempo. Determinadas ações do Estado podem apagar identidades mais vulneráveis dentro de projetos de desenvolvimento nacional de cunho mais nacionalistas. Afinal de contas sabemos que nem todo pico nevado é Sierra Maestra, assim como nem todo maciço cristalino é Serra do Mar. O Brasil está lascado.

Referências:

DA COSTA, Wanderley Messias. Geografia Política e Geopolítica: Discursos sobre o Território e o Poder. EdUSP, 2008.

MORAES, Antonio Carlos Robert. Ideologias geográficas. Annablume, 2005.

______. Geografia histórica do Brasil: capitalismo, território e periferia. Annablume, 2009.

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.