Texto e fotos: José Pires
A Cidade Industrial de Curitiba (CIC) ganhou uma nova ocupação no último dia 16/10. A Vila Nova Guaporé já tem mais de cem famílias e fica na região periférica da Cidade Industrial onde é vizinha das comunidades Dona Cida, Tiradentes e 29 de Março. No terreno de 11 mil m² e que estava há cinco anos sem uso, segundo os coordenadores da ocupação, funcionava um almoxarifado da empresa Odebrecht, conglomerado empresarial atuante em diversas frentes como construção civil e energia.
A nova ocupação se junta a outras 453 que existem em Curitiba. Nelas, segundo um levantamento da Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab), mais de 40 mil famílias moram em residências precárias, sem documentação, sem luz e água regularizadas, sem esgoto e demais infraestruturas necessárias. Segundo a Cohapar (Companhia de Habitação do Paraná) existe, no estado, um déficit de 511.746 domicílios. Ou seja, cerca de 2 milhões de paranaenses ou não têm um teto, ou moram em situações de precariedade.
A nova ocupação teve início na noite de 16/10. Nos dias seguintes, quem liderava começou a se impor pela força e não conseguiu consolidar a distribuição dos terrenos. O Movimento Popular por Moradia (MPM), organização de trabalhadores sem-teto que luta pela Reforma Urbana e busca uma solução para o grave problema da moradia em Curitiba e Região Metropolitana, foi então chamado para assumir a organização da nova vila. uma das lideranças do MPM destaca que mais de cem famílias já estão adastradas. Parte delas já recebeu um terreno, a outra está numa fila de espera. “A preferência é para famílias com crianças pequenas, com idosos e com pessoas com deficiência”, explica.
Na nova ocupação estão famílias que vivem em condições difíceis. De acordo com o estudo Síntese de Indicadores Sociais (SIS) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, cerca de 305 mil pessoas estavam vivendo abaixo da linha extrema da pobreza no Paraná. Em Curitiba, a miséria se instala nas periferias. Regiões como a CIC, onde residem mais de 170 mil pessoas segundo o Censo do IBGE de 2010, comportam grandes áreas carentes, onde falta infraestrutura básica e sobra violência. Para estas pessoas, o sonho da casa própria é uma realidade que se concretiza apenas por meio de ocupações.
Esquecidos pelo estado
Quem mora em ocupações carrega diversos rótulos. Para o estado eles são um problema, para os candidatos a um cargo público são sinônimo de votos e ficam bem nas fotos de campanha e para parte da sociedade são invasores da propriedade alheia. No entanto, as quase 200 mil pessoas que vivem em ocupações na capital paranaense são aqueles cujos direitos básicos lhes foram negados desde sempre. Sem acesso à saúde, à educação de qualidade, sem emprego, eles se arriscam sob sol e chuva, se espremendo embaixo de lonas, dividindo o pouco que possuem com vizinhos e conhecidos na esperança de fincar raízes e conseguir a casa própria. Na Ocupação Vila Nova Guaporé o que existem são centenas de vidas. Histórias marcadas pela injustiça social e carregadas de tragédias pessoais.
O choro acompanhou boa parte da vida de Dona Geselda Gonçalves dos Santos, de 54 anos. E ela chora porque dói. Não dói apenas a perna sequelada por um grave acidente de moto, nem a mão que precisa de uma cirurgia depois de ser esfolada por uma muleta durante quatro anos. O que mais dói é a dor da vida. Dói ter criado cinco filhos sozinha. Dói ter perdido uma filha assassinada. Dói lembrar que o neto, menino de 13 anos, escolheu ir ao encontro da mãe falecida anos antes. E a dor é tanta que ela chora por toda a família. Chora pelas netas que não tem leite pra beber, chora pelo genro que foi despejado no início de outubro, chora pela filha cujos os pertences de uma vida se resumem a cacarecos.
Na tarde de sábado, dia 24 de outubro, Dona Geselda chora depois da chegada de uma viatura do 23º Batalhão da Polícia Militar do Estado do Paraná à Ocupação. De dentro do carro eles ameaçam, dizem que se houver tráfico na nova vila a cavalaria vai ser chamada e as famílias despejadas. A visita é um lembrete de como a vida dói e, diante de mais essa dor, Dona Geselda desaba. Ela chegou na ocupação no dia 16 acompanhada de duas filhas e o genro. Até o dia 24 ainda não tinha ganhado seu terreno, mas chorava mesmo é com a possibilidade de o genro e a filha perderem o que tinham conseguido. “Pela primeira vez minha filha tem a oportunidade de conseguir uma casa pra eles. Eu nunca consegui e talvez não consiga aqui também. Mas fico satisfeita se eles conseguirem. Pensar que eles, que nunca tiveram nada, podem perder o pedaço de terra que conseguiram na última semana dói demais”, diz.
Muitas vidas, como a de Katia de Freitas, parecem renascer em uma vila como a Nova Guaporé. Pessoas que nunca encontraram seu lugar no mundo agora sonham em ocupar um quinhão de terra que mede 6mx12m. Katia não lembra a própria idade, mas jura que tem documentos. O que ela não esquece é a trombose, a artrose, a varicose, as convulsões e um câncer no estômago que a acompanha em todos os lugares. Catadora de reciclados ela consegue pagar um aluguel e também precisa de doações de alimento pra comer o mínimo necessário ao longo do mês.
Quem também precisa de ajuda pra se alimentar e dar de comer às duas filhas é Edneia Silva. Ela tem uma renda de R$ 171 por mês, ou seja, pouco mais de R$ 5 por dia para alimentar e vestir as crianças. A renda, fruto do Bolsa Família, não é suficiente nem pra alimentação e pra quem não tem dinheiro a porta da rua é a serventia da casa. Edneia e as filhas foram despejadas da Ocupação 29 de Março pela Prefeitura de Curitiba.
A prefeitura é muito incisiva nos despejos, mas não é quando o assunto é Regularização Fundiária. Historicamente, o direito à moradia nunca foi tratado como prioridade pelas gestões municipais curitibanas. Desde a instituição da política habitacional do município de Curitiba em 1964 (Lei Municipal nº 2515) e a criação da Companhia de Habitação Popular de Curitiba, os investimentos para a produção de habitação de interesse social e regularização fundiária nunca foram maiores que 0,2% ao ano do orçamento municipal.
Nos últimos 4 anos, segundo o Movimento Mobiliza Curitiba – que é formado por 26 instituições – a Prefeitura investiu, anualmente, cerca 0,1% do orçamento municipal para tratar a questão, demonstrando absoluto descaso com as pessoas que mais necessitam de políticas públicas para concretizar o direito fundamental social à moradia adequada e à uma vida digna. Segundo o Movimento, em 2019, as ocupações irregulares em Curitiba contavam com cerca de 50.409 domicílios, número maior do que o divulgado pela Cohab.
Considerando a média de 3,85 pessoas por domicílio, utilizada no Plano da Habitação de 2008, chega-se a uma população estimada de 194.075 habitantes. Isso equivale a 10% da população de Curitiba, ou a toda população dos bairros Água Verde, Boqueirão, Capão Raso e Pilarzinho.
O Parágrafo 2 entrou em contato com a Prefeitura de Curitiba para questionar quantos imóveis foram regularizados na gestão de Rafael Grega (DEM) e quanto do orçamento municipal é investido anualmente em Regularização Fundiária. A Prefeitura não nos respondeu.
Os moradores da Vila Nova Guaporé, uma população formada por crianças, adultos e idosos, incluindo diversos imigrantes haitianos, precisam de doações. Tudo é bem bem-vindo, desde alimentos, roupas, materiais de limpeza e matérias de construção. O contato para as doações é o telefone da Kelly, liderança do MPM: (41) 99682-1376. As doações podem também ser levadas pessoalmente na Ocupação que fica ao lado da Estação de Tratamento de Água da Sanepar na Rua dos Palmenses no Bairro São Miguel na Cidade Industrial de Curitiba.