Foto: Coletivo Negro
Há cerca de um ano, escrevi um artigo sobre o jovem africano, Moïse, que foi espancado até a morte por alguns brasileiros racistas e raivosos. Alguns meses depois, um segurança de um supermercado, o Carrefour, atirou cegamente em outro jovem negro. Mortes aleatórias. A barbárie do racista. O negro, na maioria das vezes, é um objeto de desejo que a consciência ocidental tenta incuravelmente reprimir. Crise institucional a ser abolida. A imagem do negro com sua cor subordinada não se perdeu completamente.
É com uma alegria infalível e com o coração firmemente agarrado ao seu destino que defendo este povo que teimosamente procura integrar-se em toda a parte. Onde ? Nos bastidores da humanidade. Não deveria ser assim.
Se o sistema quis, desde o início, dividir a espécie humana em raças distintas, é porque há uma razão para isso. A escravidão era uma prova clara. O sistema quer mãos servis. O que mudou desde aquela época? Claro, as estratégias.
Semana que vem é a Semana da Consciência Negra aqui. Uma coisa boa ? Eu me pergunto para quem. Outras linguagens para saciar a fome do negro na sua corrida por justiça ? Talvez. Um deserto. Não somos realmente convidados nem saciados pela festa. Uma soneca “trompe-l’oeil”, antes de perceber que não estamos nem no céu nem no inferno.
Aqui as portas do inferno se abrem para outras linguagens. Um ódio fabricado contra o outro para melhor empurrá-lo do alto de um precipício. Tenho uma consciência que pressente a farsa e o perigo vindos a quilômetros de distância. Essa janelinha que parece se abrir para os negros é um osso atirado ao bom cachorrinho.
De onde eu venho, no Haiti, estamos acostumados a pescar nossa liberdade, nossa felicidade. É por medo do horizonte que nos agarramos ao outro cegamente. Não reclame quando o gesto dele não o satisfizer totalmente. O primeiro interesse de um ser humano é cuidar de seu ego. Você realmente não pode reclamar de ser o fantoche dos outros. A liberdade, a autodeterminação não podem ser ganhas, devem ser conquistadas.
Linda tarde. Brisa deliciosa. Céu risonho. Abro-me aos jovens do Coletivo Negro da UNIFESP, neste bar estudantil, o “Bar da Tia ANA”, como se abre para a família depois de uma longa briga. Uma jovem negra, elegantemente, me explica o rumo do Coletivo Negro. Tantas dúvidas por enquanto. Falar sobre o futuro do Coletivo aperta minha garganta. Passamos pelas dificuldades sem tremer quando conscientemente tomamos um litrão na Tia ANA. O plano B é retomar o poder do nosso corpo inteiro, institucionalizar nosso Coletivo. O poder incondicional da inconsciência negra voltar a ser o poder de nossa ação diária e pontente.
Meu irmão, Russel, costuma ficar sempre preocupado quando um negro perde o controle do seu corpo-consciente, sua negritude. Então eu aprendi a ver em seus olhos. Aprendi a observar, a sofrer com quem foi arrancado do seu mar, da sua areia, do seu sonho, das suas raízes, da riqueza de um patrimônio extraordinário como nós.
O poder do silêncio e do trabalho
Há povos que realmente sabem crescer mesmo sob a pressão dos outros. Por exemplo, os judeus há muito deixaram de ser motivo de chacota para o mundo, a China também conseguiu recuperar seu poder imperial. Você viu recentemente um chinês sendo tranquilamente sufocado por um policial na frente das câmeras do mundo, ou um judeu sendo espancado até a morte por aí? Eles são, em algum momento de sua existência, impedidos de reclamar do passado, das zonas sombrias de sua história, eles trabalharam incansavelmente e recuperaram sua dignidade.
Li em algum lugar: “Se os aviões de papel batem recordes de velocidade, é com discrição, graças à elegância com que atravessam o muro do silêncio”. Vamos recuperar as nossas forças trabalhando o mais silenciosamente possível para construir riquezas para nós e para nossos filhos, para ter a nossa imagem recuperada. Penso com pesar na forma como nossos olhares se desviam nos corredores do Campus Baixada Santista. É o deserto que o sistema colocou misteriosamente entre nós. Minha nova consciência, meu plano B, nosso plano B, felizmente, nos devolverá o que nos foi roubado. Nossa harmonia, nossa confiança, nossa força, nossa dignidade.
Como a pura realidade da beleza das pessoas negras, reconstruir a consciência negra é essencialmente um trabalho negro. Eu não sabia disso até me sentir totalmente negro. Como se o conhecimento sobre meu povo fosse essencial, vital para minha respiração, com certeza, quando estou no fundo do poço. Basta nos deixarmos levar para o outro sem o choque insuspeito da indiferença.
Se eu abordo desta forma, crua, mas com uma elegância de criança que não consegue filtrar os seus pensamentos, ao meu povo e ao coração humano, é porque já não queria ser um outro, e porque sei que “Black Friday ” não foi inventada para negros, mas para provar que negros é sinonimo de: não têm muito poder de compra.
Não é por acaso que se chama “Black Friday”. Vem de longe, da própria época da escravidão, é simbólico, estratégico, um trabalho cognitivo para dominar a consciencia negra, para preparar a consciência da sociedade ao fato de que o negro está na escada mais baixa, mais vulnerável da sociedade, e deve ficar lá para sempre. O tema “Black Friday” foi inspirado na realidade de: “Break-Black-Friday”. Foi um break, uma pausa que o senhor-colono concedeu aos escravos, na noite de sexta-feira, para que se encontrassem entre eles, também eram obrigados a acasalar com o objetivo de criar outros braços/escravos para trabalhar nas roças.
Ultimamente, me acostumei a raspar a história do meu povo, a do mundo real. Não é aquela história que contamos nas midias ocidentais, ou a que o intelectual “branco” Achille Mbembe conta sobre a historia do povo negro, ah peraí, ele é negro! Na verdade, nem sei a verdadeira origem dele, como não me importo. Mas, sei que o Fanon tinha um coração negro, humano, isso importa. Ele não tinha uma pele negra e uma máscara branca. Era um grande inimigo de negros alienados.
Não nos enganemos sobre a realidade. O mundo adulto-ocidental continua a ser um lugar hostil onde a espécie humana é dividida em raças, onde cada raça tem seu lugar na sociedade e onde cada um está em competição incondicional com o outro. Não é por acaso que os negros vagam, na maioria das vezes, na prisão, ou povoam as periferias pensando que lá é o seu lugar, onde desaparecem diariamente sem que ninguém se responsabilize. Então, o que realmente mudou, apesar das campanhas e verbas que o outro investe todos os anos, em momentos específicos, para nós, impulsionando nossa causa e nossas cabeças negras para frente? Só muda o fato de que, a gente se sente mais confortável na pobreza.
Nada é por acaso, lembre-se disso. Bora fazer uma balada histórica por aí. Estranhamente, descobri que minha linda cor de pele, por ser a origem de tudo, pagou um preço altíssimo para poder reconquistar o direito de olhar para o sol novamente. Centenas de milhões de vítimas da escravidão todos escondidos na sombra da história, também têm eles: Malcom X, Martin Luther King, Thomas Sankara, Marcus Garvey, Patrice Lumumba, Ruben Um Nyobè, Félix-Roland Moumié; Toussaint Louverture, Sanite Bélair, Dutty Boukman, Jean Jacques Dessalines; ainda poderia me divertir citando, citando, citando centenas, miliares de nomes cujos corpos foram friamente assassinados por terem defendido a causa real dos negros, da verdadeira liberdade do mundo, mas cujo espírito permanece eternamente vivo no coração da humanidade. E, o George Floyd, acho que ele morreu gratuitamente.
Então, basta mergulhar um pouco na história real do mundo para perceber que o sistema nunca faz as coisas por acaso, nunca dá presente de natal aos negros. O conceito “negro” foi inventado para diminuir aquele que tem pele preta e para explorá-lo como mão de obra gratuita. Convido você a ser cuidadoso e lúcido ao participar de uma mesa redonda onde falamos sobre negros. Na maioria das vezes, é só um show, fumaça, diversão para acalmar a verdadeira consciência–negra. Lembra, o plano B, temos de mudar de dinâmica, o jogo.
¡Viva la revolución de la verdadera-conciencia-negra!
Carlile Max Dominique Cérilia