Crônicas
Capitulo II
Curitiba, 25 de dezembro de 2001
Quando me formei no segundo grau, ou, como minha mãe dizia, o ginásio, no Colégio Loureiro Fernandes, não dava muita importância aos estudos. Tinha alguns percalços em Química e Matemática. Percalços porque tinha que estudar. Nas matérias de humanas só prestava atenção na aula e fazia algumas anotações, a média escolar era entre 8.0 e 9.0, nada ruim para um aluno de escola pública.
Um dos desejos mais latentes da mãe era estudar. Vestir o uniforme de jardineira e carregar a maletinha para escola. Porém, foi apenas até a segunda série do ensino fundamental. É triste o momento que vemos nossos pais despidos, longe daquela aura intocável, numa vida repleta de sonhos, mas ceifada e comprimida pelo ordinário, sonhando com o olhar distante pela janela o céu azul, o muro alto, sem poder pular, sem poder tocar as nuvens. Ela cantava como sabiá, agudo, emotivo, com seus medos e alegrias, só assim, podia ser livre, só assim, conseguia viver, cantando.
O pai era todo de se gabar mesmo sem muito estudo do tipo que batia no peito e ia quebrando, tropeçando, mas ia. Eles se completavam pela simplicidade de cada um, pelos sonhos ou pela amargura das vidas companheiras.
A música é algo presente na família, do canto da mãe na igreja, do rádio sempre ligado, então, ficar sem música em casa era um barulho ensurdecedor. O pai guardou uns trocados e comprou um Walkman Sony, foi ao Paraguai e comprou com meses de antecedência e guardou no armário. Aliás, todos os presentes para a família eram guardados no armário com as roupas, não tinha o sabor da surpresa, mas para ele existia os momentos, as datas. Não há uma formula para ser pai ou mãe, você vai aprendendo, como diz Fabiano, o Pig, “ser pai é padecer na dúvida”. De certo modo uma forma de carinho ao seu jeito, à sua maneira.
Acho que nunca dei o devido valor a uma formação, do ensino fundamental ao superior, considerava minha obrigação, mas a alegria no rosto dos pais era a recompensa, mais do que o título. Após a formatura do ensino médio cheguei em casa de madrugada e de carona, um frio, descendo a pé as ruas da Paineiras e lá estava debaixo do travesseiro o Walkman Sony embrulhado, mal embrulhado, pelo desenho dava pra saber o que era, sem dedicatória, abraços ou choros. Aos 18 anos a vida me encaminhava para ser um homem, trabalhando no Mercadorama de empacotador, tinha uma calça verde da Billie Brothers, uma menina chamada Mik e tudo pela frente, irônico.
O pai tinha um jeito estranho de ser, chorava quando me parabenizava, dava Feliz Natal ou aniversário, se escondia quando não tinha o que dar nestas datas, se envergonhava de não ter, por muitos anos e durante a adolescência eu o cobrei por coisas que nem sabia como eram ou deveriam ser. Pelo estudo, o livro, o vale-transporte, o lanche, a lancheira do Batman, a camisa falsificada do Flamengo, o Roller, ou, por coisas que apenas com uma surra e os tombos, aprendi a não ter, a abdicar.
Eu o compreendo. Queria o melhor, o quê não o teve, o tênis, a calça, o Walkman, a formação acadêmica.
O pai dizia “você estuda pra burro?”, “nunca vi estudar assim em cima da cama!” e, talvez a mais dura das responsabilidades, “você vai salvar a lavora”, palavras duras e necessárias. Com o tempo as lembranças do pai foram se esvaindo como areia sobre o vento e as ondas do mar, a mãe deixou o sabor pela comida e a música, o pai, a fibra, a dor e o caráter, ambos deixaram saudade.