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Na rua, quem dorme por último apaga as estrelas: sobre o povo da rua e sua luta!

Coluna Pão e Pedras: Amenidades e Poesia 

Neste tempo tão difícil, povo da rua

A cidade vai ouvir, povo da rua

O grito dos oprimidos, pra justiça construir

Leva eu, povo da rua

Trecho do Hino do Povo da Rua.

Na última madrugada fez muito frio. A temperatura, neste ápice do inverno curitibano, atingiu um grau negativo. Na manhã seguinte, estampa-se nos jornais a notícia de mais uma morte por hipotermia entre as pessoas em situação de rua. A notícia diz o seguinte:

Um morador em situação de rua morreu, na madrugada desta quarta-feira, em Curitiba. O homem identificado como Adilson José Juz, de 41 anos, foi encontrado morto na Praça Tiradentes, no centro da capital paranaense, por pessoas que dormiam no mesmo local. Durante a madrugada, a temperatura chegou a -1,3°C em Curitiba, segundo o Sistema Meteorológico Simepar.

O prefeito de Curitiba Rafael Greca (PMN) fez uma postagem no Facebook falando sobre a morte do morador de rua e a atuação da FAS nesta madrugada. Segundo o prefeito, Adilson morreu “após recusar atendimento da FAS [fundação de Ação Social] por estar fortemente drogado e alcoolizado”. Ainda de acordo com o Greca, o homem morreu “num quadro de convulsões”. [1]

Este quadro, triste certamente, se repete a cada inverno, de maneira cada vez mais intensa e perversa. O número de pessoas em situação de rua na cidade tem crescido vertiginosamente. O MNPR, Movimento Nacional da População de Rua, estima que existam, hoje, 4500 pessoas em situação de rua na cidade. São muitas as histórias e as trajetórias que levam alguém com vínculos trabalhistas e familiares estáveis a dormir nas ruas, enfrentando uma série de obstáculos e violências para sobreviver. Mas é notável que o aumento no desemprego gerou um grande aumento no número de desabrigados, que aumentou em 60% desde o ano de 2008, segundo o censo do IBGE.

Se diz, no imaginário comum, que muitos vivem na rua porque querem, que usam drogas e por isso vão parar nas ruas. Esta visão generalista pouco condiz com o que se observa. Durante o período compreendido entre Agosto de 2015 e Dezembro de 2016, pude compor o corpo de educadores que trabalharam com educação popular para pessoas em situação de rua, pensando alternativas de organização no trabalho e na política. O curso, intitulado Agentes de Desenvolvimento Local, foi realizado em uma parceria do CEFURIA (Centro de Estudos Urbano Rural Imã Araújo) e o MNPR, visando instrumentalizar a população em situação de rua de seus direitos e possibilidades de organização em torno dos existentes e a perspectiva da conquista de novos.

A maior reclamação entre aqueles com os quais conseguimos conversar é a respeito da falta de oportunidade de trabalho para pessoas em situação de rua. As pessoas não confiam que eles possam ter dons e capacidades, a acabam tratando a todos como dependentes químicos. Fazer um cadastro de emprego sem um comprovante de endereço é a certeza antecipada de não ser selecionado em uma vaga de trabalho, por mais precária que seja. Morar e trabalhar são necessidades básicas que, se não supridas, degradam totalmente o ser humano, tanto fisicamente quanto psicologicamente.

Apesar de grande parte não apresentar vínculos estáveis de emprego, realizam todos os dias algum tipo de atividade remunerada. Guardam carros, fazem pintura, fazem um bico na construção civil, vendem talões de estacionamento (ESTAR), carregam caminhões de mudança, ou ficam a manguear, expressão com a qual denominam o ato de pedir dinheiros aos passantes e que, apesar de não parecer, requer muito esforço corporal para suportar tempos de sol, chuva, etc., e mental, ao ser hostilizado por parte das pessoas.

As violações são diárias. Sofre-se violências e não se sabe a quem recorrer. O discurso burocrático, que vêm por meio dos órgãos do Estado, da iniciativa privada, das ONG’s e até de alguns movimentos sociais acaba por colocá-los em uma situação de quem se vê incapaz de conhecer, de ensinar e aprender. As referências positivas surgem neste instante: o fulano que parou de “se drogar” a menina que saiu da rua, o rapaz que conseguiu trabalho. Neste momento constrói-se um horizonte de esperança onde muitos deles, em solidariedade, se veem capazes de aprender e de se transformar. Passam a saber que o policial que pratica sua violência cotidiana está violando um direito seu, e que ele, anotando os números das viaturas pode entrar com denúncia, via ministério público com auxílio o movimento. Mas não parece suficiente. Muitas vezes, após as denúncias, os agentes voltam a rotina normal de trabalho, o que faz com que, devido as constantes intimidações, denúncias de agressões deixem de ocorrer. A violência é também praticada por skinheads e tantos outros que, sem nenhum vínculo que os ligue diretamente ao Estado, acabam por agredi-los tão intensamente quanto as forças militares. A diferença é que, neste caso, não há a quem se denunciar e o anonimato vence.

Visitar parentes, ir ao teatro, ao museu, ao cinema, também lhes parece uma necessidade a suprir. A questão é que são perseguidos e expulsos destes lugares por seguranças que não lhes permitem o acesso, por mais nobres que sejam os argumentos em favor da visita. Uma visita a um amigo ou um membro da família, mesmo que dentro da mesma cidade, lhes parece uma tarefa difícil, visto a tarifa de R$ 4,25 em Curitiba e os passageiros, que não costumam ver com bons olhos alguém em situação de rua no ônibus. Os equipamentos de acolhida não parecem ser acolhedores, uma vez que sempre são vistos com desconfiança por gestores e assistentes sociais que não compreendem sua situação, muitas vezes sendo hostilizados por estes funcionários que deveriam acolhê-los. São recebidos nos Centros Pop em colchões infestados por pulgas e há relatos de pessoas que contraíram sarna ao dormir em um destes acolhimentos da prefeitura. O direito a cidade é totalmente negado a um número, pelo que mostram os dados recentes, crescente de pessoas em situação de miséria no mundo. São vistos como invasores em uma cidade que constroem cotidianamente.

São crianças agredidas e presas sem motivo algum aparente; retiradas de suas mães sem nenhuma assistência social e mesmo sem nenhum processo jurídico sequer mencionado, ou a presença do conselho tutelar, são os servidores das casas de acolhida que os tratam “como animais”. A polícia, realiza diversas violações de direitos, em especial durante a noite, longe das vistas de alguém que possa se indignar. E pra quem denunciar a polícia? A quem denunciar os servidores públicos e privados que deveriam auxiliá-los? E se depois sabem quem denunciou, haverá retaliações das piores possíveis? Como não lembrar de alguns casos reais, que tomaram proporção nacional?

Em 20 de Abril de 1997, cinco jovens de classe média atearam fogo ao indígena da etnia pataxó Galdino Jesus dos Santos, que dormia em uma praça após participar de manifestações referentes à questão indígena. Dos rapazes, um era menor de idade e cumpriu pena de três meses, enquanto os outros condenados pelo crime não foram punidos da mesma maneira que o são cotidianamente os negros e pobres nas grandes cidades brasileiras[2]. Outro caso emblemático é o da chacina da Praça da Sé, em São Paulo. Ocorrido entre os dias 19 e 22 de Agosto de 2004, provocou a morte de quinze pessoas em situação de rua. Apesar da desconfiança, da época, de ser um caso ligado a grupos de extermínio ligados à Polícia Militar, segue-se até hoje sem solução. Este segundo caso, marca, hoje, o dia de mobilização Nacional do MNPR[3], 19 de Agosto.

Tendo em vista tais questões, se estrutura, à partir de 2001, na 1° Marcha Nacional de População de Rua, em Brasília, se estrutura uma rede de organizações de pessoas em situação de Rua, com experiências de peso em São Paulo e Belo Horizonte, o que leva a um quadro que, em 2005, funda o Movimento Nacional da População da Rua, o MNPR. Hoje, o MNPR se organiza nacionalmente, propondo a projetos de educação popular com pessoas em situação de rua, organizando marchas e manifestações sobre as pautas desta população – crescente – e fazendo produção de conteúdo, tais como os jornais  Boca de Rua, de Porto Alegre, O Trecheiro, de São Paulo, o Aurora da Rua, de Salvador e o A Laje, de Curitiba, que mostram notícias, acontecimentos e produção cultural produzidos pela própria população em situação de rua.

As recentes violações que temos assistido por parte do Estado com esta população são as piores possíveis. Há tempos, em São Paulo, quem dorme na rua pode ser acordado com jatos de água gelada que partem da guarda metropolitana. Os que dormem nas galerias da rua XV de Curitiba são acordados com chutes e pontapés por parte dos seguranças de empresas particulares. E estes dois exemplos são casos recorrentes há muito tempo, apesar de terem tomado proporção midiática apenas neste inverno, com mais um José que foi assassinado por uma sociedade que não garante moradia digna e oportunidades para todos. Quem está na rua, não precisa de dó, não precisa de pena. Precisa de respeito e dignidade para não morrer de frio em uma cidade tida como modelo mundial de políticas urbanas. Não me delongo mais. O vídeo abaixo, intitulado Nós da Rua, feito pelo Movimento Nacional da População de Rua dá conta de expor, através da vóz de quem está na rua, o que ocorre na rua.

 

[1]     Jornal Extra, de 19/07/2017. Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/brasil/morador-de-rua-morre-depois-de-madrugada-com-temperatura-negativa-em-curitiba-21606516.html Acessado em 19/07/2017.

[2]     Compare-se a notícia a segui com o caso de Rafael Braga Vieira: “Em outubro do mesmo ano, o jornal “Correio Braziliense” flagrou três dos cinco rapazes bebendo cerveja em um bar, namorando e dirigindo o próprio carro até o presídio, sem passar por qualquer tipo de revista na volta. Após a denúncia, os assassinos perderam, temporariamente, o direito ao regime semi-aberto, que era o que permitia o trabalho e o estudo externos.
Mas a reclusão total durou pouco tempo. Em agosto de 2004, os quatro rapazes ganharam o direito ao livramento condicional, ou seja, estão em liberdade, mas precisam seguir algumas regras de comportamento impostas pelo juiz no processo para manter sua liberdade, tais como: não sair do Distrito Federal sem autorização da Justiça e comunicar periodicamente ao juiz sua atividade profissional.” Portal G1 em 19/04/2007. Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL23764-5598,00.html  Acessado em 21/07/2017.

[3]     Ver: http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/chacina-da-se-e-relembrada-por-movimento-de-populacao-de-rua-17y6fr60wnt655l0fvzgracpc Acesso em 21/07/2017.

About Kauê Avanzi

Kauê Avanzi é doutorando em Geografia pela FFLCH-USP, educador no Ensino Básico, poeta e músico. Gosta de escrever, se divertir e confraternizar.